45 dias de norte: dois punks brasileiros sem dinheiro pela Europa – dia 1

Dia 1: Clima quente, contato humano frio e solidão

Saindo da estação, perguntei – em “italiano” – pra primeira mulher que encontrei sobre a via Litta Modignani. Nem olhou na minha cara. A segunda foi mais simpática, falava inglês, mas não era da região. Olhou na placa do ponto de ônibus e me indicou ao menos pra que direção era. Disse obrigado e andei pra lá. Na esquina encontrei um senhor e perguntei de novo em “italiano” sobre a via Litta Modignani. Me apontou que era a perpendicular dizendo “paralella” e eu segui pensando que ou em italiano paralela siginifica perpendicular ou eu entendi errado ou ele entendeu a pergunta errado. Nada, era aquela rua mesmo, mas paralella em italiano significa paralela mesmo, então nem sei.

Nenhuma placa de numeração, 18kg nas costas. Tinha que escolher um lado. Claro que escolhi o errado. Andei até achar alguma pessoa ou numeração. Um senhor disse que não falava inglês. Percebi que eu não tinha nem idéia de números em italiano e falei “sessenta” em português mesmo, apontando com a mão. O cara entendeu e me apontou o outro lado. Soltei um “caralho” e comecei a rir lembrando do Davi[1] me imitando. Andei pro lado certo até encontrar o squat, Villa Vegan squat.

Era um portão de ferro, fechado com cadeado. Haviam me instruído a pular o portão nesse caso. Me preparei para isso, um puta calor. Quando coloquei as mãos no portão, percebi que ele estava só encostado. Logo após o portão estava um quintal enorme, meio bosque, e as casas lá no fundo. Ninguém à vista, só uns motorhomes estacionados e uma cachorra – a Dubia – latindo desconfiada. Me aproximei aos poucos das casas, gritando “olá”, sem obter resposta. Escolhi uma delas e entrei. Lá estava Ivana[2], italiana de 37 anos, escrevendo algo num papel. Me apresentei e ela me disse que eu dormiria ali, explicou brevemente sobre o squat, tudo meio distante. Quando saí pra ir ao banheiro, encontrei o Walter, que era com quem tinha me comunicado primeiro. Ele colocava tomates plantados ali mesmo para secar no sol. Conversamos um pouco sobre o funcionamento do squat, política na Itália, curiosidades randômicas. Chegou a mãe dele com compras, uma outra menina apareceu e se apresentou – Francesca – e eu fui tomar banho. Walter e Ivana eram meio frios, distantes, assim como um outro cara – Rick, acho – que chegou, cumprimentou todo mundo menos eu e nem se importou em tentar descobrir quem eu era ou o que fazia ali. Todos os ocupantes do squat eram brancos.

O squat era como uma pequena propriedade rural. Dois cachorros, Giambo, um pitbull de 14 anos, cego e com muita dificuldade em andar, e a Dubia, resgatada de um dono que a utilizava pra caçar. Três gatas, Amanda, Ludovica e Tagina, e um gato, Occhiolino, que não tem um olho. Várias galinhas libertadas de uma fazenda de criação de animais e um coelho que visitava de vez em quando, vindo da mata adjacente. O Zé morreria em 20 segundos ali, tamanha a integração entre humanos e animais por todos os espaços. Dei risada pensando nisso. Havia também pernilongos, MUITOS pernilongos, que infernizaram o tempo todo. O quarto onde dormi tinha uma tela contra eles e ainda assim Ivana acendia um treco pra espantá-los toda noite.

Além dos bichos, o squat contava com um palco com instrumentos, uma horta, uma oficina livre para bicicletas chamada Suicycle Tendencies (nas terças, ficava aberta ao público, e com isso muita gente aparecia no squat do nada), um porão onde também rolam sons, um free shop onde você pode pegar e deixar o que quiser e, claro, a cozinha e os banheiros, além dos quartos e de regras claras: não trazer nada não-vegano pro espaço, nem produtos químicos que sejam testados em animais; o squat não é hostel, então ajudar no que for possível; não jogar papel no vaso, NUNCA; se possível cagar no banheiro natural existente atrás da casa, pra sua merda virar adubo. Quase ninguém ali trabalhava fora, salvo ocasionalmente caso o squat precise de grana. Havia um mapa na parede dos melhores lugares próximos pra fazer “skip”, que é como se chama na Europa “pegar comida do lixo” ou simplesmente fazer a chepa.

Já eram 14 anos dessa forma. Como era verão, havia algum medo de que a polícia aproveitasse a pouca presença de pessoas pra tentar desalojar os squats[3]. Grande parte dos ativistas italianos estava no acampamento em Valsuza do protesto chamado de No TAV[4], sendo TAV uma sigla para trem de alta velocidade, projeto que está em vias de acontecer. Essa questão e a imigração eram os dois principais debates políticos no país. Perguntei por que a cidade estava vazia além do fato de ser verão, e Walter respondeu que ninguém aguenta Milão por muito tempo. Ironizei que isso era porque não conheciam São Paulo.

Como nenhum dos habitantes me convidou pra algo, mesmo eu tendo dito que gostaria de participar do cotidiano do squat, pedi licença e disse que daria uma volta pelo bairro pra conhecer. Queria também achar um telefone ou algum lugar com internet pra avisar no Brasil que tinha chego. Saí a esmo e encontrei um campo de futebol pra jogar com uns 7 em cada lado, grama natural. Comércios locais e mais nada. Voltei até o metrô e comprei um cartão telefônico. Precisava agora achar um orelhão. Resolvi passar para o outro lado da linha de trem. Por lá havia mais gente, bares, um supermercado.

Entrei no supermercado, tinha fome. Mas não comprei nada. Saí e avistei um telefone público. Três, na verdade. Tentei usar, nenhum funcionou. Parecia cada vez mais o Brasil. Entrei numa lanchonete – cujas funcionárias eram chinesas – e lutei pra conseguir comer um sanduíche sem carne. Italiano é bem mais difícil do que se imagina. Além do sanduíche tomei uma cerveja, e enquanto isso “li” um pouco da Gazzeta Dello Sport, o bastante pra ficar assombrado com o fato de que a linha defensiva da Roma para esta temporada é Stekelenburg; Taddei, Burdizzo, Castán e Dodô. TRÊS brasileiros titulares na linha de defesa de um dos principais times do país do cattenaccio! É, o futebol mudou MESMO.

A cerveja me deixou um pouco bêbado, então comecei a voltar pro squat. No meio do caminho achei uma quadrinha com uma molecada jogando e pensei que na volta da Inglaterra ia falar pro Allan pra gente colar lá e pedir pra jogar. Parei na praça onde estava o campo de futebol que citei antes e sentei no banco, imaginando um jogo qualquer ali. Cochilei levemente e percebi que era hora de descansar, já que meu fuso estava todo errado e no avião tinha dormido pouco.

Cheguei no squat por volta de 19h, não vi ninguém, entrei e dormi. Acordei por volta de 22h com Francesca e um casal desconhecido batendo na porta pra me dizer que eu ficaria sozinho na casa porque eles estavam indo pra algum lugar com uns amigos. Quis pedir pra ir junto, mas foram tão pouco convidativos até ali que não consegui. Me vesti e resolvi dar outra volta pelo bairro, tentar comer algo. Estava meio triste, sozinho na Itália sem ter muito o que fazer. Voltei pro centro comercial do bairro. Entrei numa sorveteria e perguntei por algum lugar com internet. Disse que por perto, aberto, àquela hora, não tinha. Saí de lá e pedi uma pizza margherita numa cantina próxima que vendia pizza e kebab. Kebab e comida árabe estão por todo lado. A pizza mais um suco saiu por 5 euros. Comi a pizza inteira com os provavelmente libaneses do local me observando e conversando entre si.

Resolvi voltar pro squat. Na esquina da via Litta Modignani, um espaço que eu já tinha notado mas não sabia o que era estava agora aberto. Era um bar, ligado a um hostel. Entrei e perguntei se tinham internet wi-fi. Disseram que sim. Voltei até o squat pra pegar o computador e encontrei o Walter. Ele me disse que estava usando a internet ainda – sim, havia internet no squat, 3G – mas que eu poderia usar no dia seguinte. Respondi que tinha achado um bar com internet ali junto ao hostel e fui pra lá.

No bar, pedi uma cerveja e tentei me conectar. A senha estava certa, mas a configuração de algo não funcionava. Me pedia pra reiniciar o modem. Mas como se o modem nem era meu? Desliguei o computador, frustrado, terminei a cerveja. Havia um telefone no bar. Não era público, provavelmente era do bar. Sem perguntar se podia, tentei ligar pro Brasil e consegui! Avisei minha mãe que estava vivo e voltei pro squat. No quarto encontrei Ivana, que me disse que teria que acordar cedo no dia seguinte. Perguntei por que e ela disse que iria ao tribunal, pois aconteceria o julgamento de alguns imigrantes, não entendi direito por que razão. Perguntei se eu poderia ir junto, e ela disse que sim, que seria ótimo, e que ela tinha uma amiga brasileira que vivia em Milão há 15 anos que poderia conversar e me explicar melhor as coisas.

Combinado feito, finalmente eu tinha um rolê pra dar na Itália. E bem o tipo de rolê que eu gosto: nada de turismo sem sentido. Se você me perguntar sobre o centro de Milão ou o Duomo, eu não vou saber te dizer (quase) nada. Mas se quiser saber sobre o CIE da via Corello e o tribunal de justiça de Milão, posso te contar alguma coisa.

Fui dormir.

[1] Amigo-irmão que se fosse comediante seria um dos melhores do mundo. Mas resolveu ser professor. Sorte de quem tem aula com ele.

[2] Quase todos os nomes neste diário foram trocados. Em alguns casos, foi mantido apenas o primeiro nome.

[3] Pelo menos até abril de 2020, o squat continuava lá.

[4] Até abril de 2020, o TAV não tinha rolado. Saiba mais (em espanhol): https://es.wikipedia.org/wiki/No_TAV

sempredesobedecer.wordpress.com

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agência de notícias anarquistas-ana

Palmeiras ao vento
Ao sol sempre reluzente
Gaivotas voam.

Victor Tsakeridis Pastorelli – 15 anos