O que segue não é jornalismo, mas sim a opinião de um anarquista em Atenas, Grécia. Provavelmente haja erros, já que, embora eu me baseie em informações confiáveis, sou bastante ignorante e preguiçoso em geral, então certamente cometi erros. Ainda assim, estou chocado e queria informar meus camaradas fora da Grécia sobre o que aconteceu.
Na manhã de hoje (15/11) ocorreu um fato extraordinário e horrível. Um grupo de 150 maoístas, chamado ARAS, reuniu-se vindo de toda a Grécia para emboscar e espancar brutalmente entre 20 e 30 jovens anarquistas na Universidade Politécnica de Atenas, no 52º aniversário da revolta politécnica contra a ditadura militar.
Isso não foi a violência política “normal” entre facções… essa violência foi tão extrema que, sem exageros ou histeria, pode ser descrita como homicida. Jovens foram perseguidos dentro de edifícios, trancados em salas e ali espancados sem misericórdia até ficarem atordoados. Dezesseis foram hospitalizados; um garoto precisou de mais de trinta pontos na cabeça. Uma jovem foi nocauteada e continuaram a espancá-la enquanto estava inconsciente. Pessoas tentavam escapar pelas janelas, mas membros da ARAS as esperavam do lado de fora. Os membros da ARAS formaram um cordão de segurança em torno da área para impedir que alguém fugisse ou que pessoas de fora interferissem.
O que segue é um contexto para compreender melhor esse incidente chocante e repugnante de extremo “canibalismo social”, cujas repercussões apenas começam a se manifestar enquanto escrevo estas linhas.
A REVOLTA
Breve história. Em 1973, ocorreu uma revolta popular contra a ditadura militar grega — a junta militar — na Universidade Politécnica de Atenas, no bairro de Exarchia. Essa revolta, que envolveu uma mistura de anarquistas, comunistas e vários estudantes e trabalhadores cansados de viver sob a brutal ditadura apoiada pela CIA, foi esmagada quando o exército grego arrebentou os portões da universidade com um tanque e abriu fogo contra os que estavam dentro.
A junta militar manteve-se no poder até 1974, mas, para a opinião pública, essa revolta e o massacre com que foi reprimida marcaram o começo do fim da junta. Todo ano, em 17 de novembro, aniversário do massacre, ele é comemorado em toda a Grécia, com especial ênfase no campus da Universidade Politécnica de Exarchia. Até mesmo os políticos mais tradicionais sabem que devem, ao menos verbalmente, homenagear o aniversário.
Além disso, nos dias que antecedem essa data, a Politécnica recebe diversos eventos, painéis, debates, reuniões etc. No próprio dia 17, são realizadas marchas, e em Atenas uma marcha multitudinária segue até a embaixada dos Estados Unidos.
Por causa do trauma coletivo da repressão estatal à revolta, após a queda da junta militar a polícia grega teve sua entrada proibida nos campi universitários. Isso permaneceu até 2019, quando o recém-eleito governo de direita da “Nova Democracia” revogou o asilo universitário. Muito poderia ser escrito sobre a gravidade dessa mudança para o movimento anarquista grego, e não é exagero afirmar que ela transformou o panorama político — não apenas em Exarchia, onde por décadas existiram centros anarquistas ocupados (com oficinas, cozinhas coletivas, recursos para refugiados, rádios piratas etc.) dentro da Politécnica.
Nos últimos anos, a repressão nos campi gregos se intensificou, piorando progressivamente desde seu início. O atual grupo acadêmico-administrativo de direita chegou ao extremo de trancar portões, instalar guaritas com seguranças, refletores, câmeras etc. Em toda a Grécia, a maioria das ocupações universitárias foi despejada. No entanto, perto do aniversário da revolta, todo novembro, os anarquistas conseguem acessar o campus da Politécnica de Exarchia e ocupam temporariamente um ou dois prédios, onde realizam oficinas, apresentações, palestras, reuniões e homenagens aos mortos.
O ANIVERSÁRIO
Esse aniversário costuma ser marcado por tensões. Em 1985, por exemplo, a polícia matou a tiros o anarquista Michalis Kaltezas em frente à Politécnica de Kiev. 1995 e 2006 também foram anos memoráveis por confrontos de grande escala entre anarquistas e a polícia, com feridos. E, claro, em períodos de intensa atividade política, as comemorações do aniversário também se intensificam.
Durante a própria revolta, os stalinistas recorreram a manobras sujas para desestabilizá-la e “capturá-la”, algo que pode ser parcialmente lido aqui: https://medium.com/@mot1613/two-perspectives-on-the-polytechnic-uprising-of-1973-e9aedacd3e92.
Em menor grau, persiste nos últimos anos uma tensão sobre a quem “pertence” o aniversário de 17 de novembro. Há duas posições. De um lado, estão aqueles que se mantêm fiéis ao registro histórico, que descreve a revolta, como qualquer levante geral, como uma mistura de pessoas — algumas mais politizadas, outras menos… alguns estudantes, alguns sindicalistas, alguns trabalhadores, alguns comunistas revolucionários, alguns anarquistas. De outro lado, está a revisão histórica do comunismo de Estado, que o apresenta como um empreendimento puramente comunista. Essa tensão se manifesta de várias maneiras, geralmente tão pequenas quanto o uso de alto-falantes comunistas para abafar atividades anarquistas.
Nos anais da tensão “comunistas vs. anarquistas” na Grécia, a Politécnica não tem sido um ponto central, em parte porque há um respeito geral pelo próprio aniversário por todos os lados.
Desde que o Estado intensificou a repressão contra a atividade política nos campi, os comunistas (que, vale notar, acreditam na validade e necessidade do Estado) mantiveram-se discretamente afastados… Nos últimos anos, sua presença na Politécnica era praticamente nula em comparação com o passado. Este ano, no entanto, eles apareceram em grande número.
O ATAQUE
Na manhã de hoje, dia 15, um grupo de 30 jovens anarquistas e antiautoritários, muitos deles do clube anarquista da universidade, estava preparando suas mesas e materiais para os três dias de atividades planejadas na Politécnica. Por algum motivo, a porta próxima ao prédio Gini, que os anarquistas costumam ocupar, estava trancada. As únicas portas abertas estavam do outro lado do campus, onde cerca de mil jovens comunistas já estavam reunidos. Ainda assim, duas portas abertas pareciam melhores que nenhuma.
Um grupo de aproximadamente 150 membros da ARAS, vindos de toda a Grécia para esse propósito, chegou cedo ao campus sob comando de seu líder — muito mais velho do que eles. Estavam bem organizados, com proteção sob jaquetas combinando, capacetes e cassetetes. Quando um deles começou a filmar, a ARAS formou um cordão fechado, braços entrelaçados, ao redor dos cerca de 30 anarquistas, encurralando-os, e começaram a acusá-los (falsamente) aos gritos de carregar facas, coquetéis molotov etc., para garantir que outros esquerdistas no campus ouvissem, gritando: “Não se abaixem!”.
Isso já era um comportamento estranho, atípico e, no mínimo, inapropriado. Então, o líder da ARAS gritou “Capacetes!”, e as tropas da ARAS colocaram seus capacetes de proteção e lançaram seu ataque contra os estudantes anarquistas desprevenidos e desarmados.
Ao longo dos anos, anarquistas e comunistas ocasionalmente entraram em confronto em ruas ou festas. Sou anarquista, mas não gosto da mentalidade de “torcida organizada” que alguns têm sobre isso. É uma vergonha que isso aconteça, mas mesmo segundo quem testemunhou alguns dos piores confrontos, nunca tinha sido tão violento, unilateral e prolongado quanto hoje de manhã.
Às vezes, o “confronto” se resume a empurrões: durante uma manifestação que vira tumulto, alguns anarquistas fugindo de uma linha policial que os encurrala podem encontrar comunistas de braços dados bloqueando sua passagem. Então os comunistas se afastam e deixam a polícia bater nos anarquistas. Isso não ocorre recentemente, mas já foi comum.
Houveram confrontos mais graves, com hematomas e golpes na cabeça. Nesses casos, ambos os lados chegam sabendo o que os espera. Por exemplo, durante uma insurreição em grande escala, os anarquistas queriam tomar o parlamento e os comunistas queriam impedir; isso levou a uma grande briga nos arredores do parlamento. Não minimizo esses episódios vergonhosos (e sabemos de quem é a vergonha), mas quero contextualizar a violência desta manhã: não foi uma briga entre oponentes, mas um ataque unilateral de intensidade, gravidade e duração sem precedentes, que incluiu vários episódios de golpes contra pessoas já inconscientes. Foi um frenesi de violência que realmente poderia ter matado alguém.
Os centenas de esquerdistas presentes nada fizeram. Pessoalmente, não os julgo muito, pois provavelmente a maioria não fazia ideia do que estava acontecendo, já que era algo insano. Para piorar, por razões que só podemos imaginar, os membros da ARAS usavam patches idênticos em capacetes e jaquetas dizendo “ASSOCIAÇÃO DE ESTUDANTES”. A maioria dos grupos de esquerda provavelmente tem medo da ARAS; além disso, havia um cordão de segurança da própria ARAS impedindo que qualquer pessoa chegasse perto da área do campus onde tudo ocorria.
O ataque durou muito tempo. No final, quando a ARAS se cansou de bater nos corpos dos estudantes anarquistas, nenhuma ambulância conseguiu chegar ao local… porque, lembremos, o reitor da universidade havia trancado a porta da “zona anarquista” do campus. Assim, os anarquistas, feridos e ensanguentados, tiveram de ser carregados por longas distâncias, através de todo o campus, um por um, em uma espécie de desfile repugnante, sob o olhar atônito dos esquerdistas e das fileiras de ARAS que gritavam e riam. Houve dedos e membros quebrados, concussões, um rapaz perdeu a memória de curto prazo… Foi, como já disse muitas vezes, uma violência infernal.
ARAS
A ARAS é um caso interessante. É uma pequena parte do vertiginoso e complexo ecossistema da esquerda grega, sem destaque por ideologia específica — são maoístas genéricos —, mas conhecidos por sua facilidade em recorrer à violência. Ao longo de sua existência, ficaram conhecidos principalmente por brigar com outros grupos comunistas, inclusive com aqueles com quem supostamente eram aliados. Talvez vocês tenham visto vídeos curiosos de multidões com capacetes de moto batendo umas nas outras com cabos de machado com bandeiras vermelhas durante protestos.
Se comunistas me pedissem minha opinião, eu diria que prefiro que lutem contra patrões, capitalistas ou polícia, e não entre si — mas, no fim, se querem brigar entre eles, é problema deles.
Até mesmo nas reuniões da ARAS, eles brigam para resolver disputas, o que chega a ser cômico. Quando eu era um delinquente apolítico, saía com meus amigos nos fins de semana procurando briga, e quando não encontrávamos, brigávamos entre nós. Então, repito, sua suposta brutalidade não me incomoda tanto. Mas há uma grande diferença entre uma briga de punhos e o que aconteceu esta manhã.
A ARAS é, tematicamente, um pequeno “clube da luta”, quase uma seita, comandada por uma figura paternalista, e usam violência para competir por sua aprovação. Isso é saudável? Não. Mas não julgo o estilo de vida dos outros. Sempre considerei a ARAS um exemplo da forma política “gangue de rua”, à qual — seja comunista ou anarquista — não me oponho por princípio. É uma forma imperfeita, claro, mas vivemos num mundo imperfeito. Meu problema com eles não é sua forma organizativa.
Ironia das ironias, a ARAS faz parte do partido político MeRA25, uma agrupação esquerdista tediosa que recebe uma fração minúscula dos votos gregos — uma agrupação ligada à mão refinada, culta e educada do ex-ministro das Finanças Yanis Varoufakis. Não gosto de Varoufakis, mas ele é inteligente e diz coisas sensatas sobre a Palestina, por exemplo. Ele rapidamente emitiu uma declaração repudiando a violência na Politécnica — outra resposta inteligente. Será essa a única resposta do MeRA25? O partido está confortável assumindo responsabilidade pelas ações dos seus membros? Resta ver como outros grupos de esquerda reagirão.
Há tantas perguntas. A ARAS reaparecerá na Politécnica? Tentarão participar da marcha do dia 17? Muitos anarquistas clamam por vingança. Já que estou escrevendo e posso dar minha opinião, digo que uma vingança sectária contra outro grupo anticapitalista não me entusiasma. Se eu visse o líder, teria algo a dizer a ele, mas sua gangue de jovens desorientados me inspira mais pena e desprezo. Mas, ao sustentar essa opinião moderada, acho que estou claramente em minoria entre meus camaradas. Há uma enorme raiva, totalmente justificada.
POR QUE DIABOS ELES FARIAM ISSO?
Deixando de lado os aspectos éticos, políticos e humanos da brutal violência desta manhã, parece muito imprudente atacar membros de um movimento muito maior que, em grande medida, está livre da doença do pacifismo. Sabemos quem são todos esses caras, individualmente. E simplesmente não são tantos! Todo o grupo ARAS, em nível nacional, tem apenas algumas centenas de membros, enquanto há dezenas de milhares de anarquistas.
Por que a ARAS faria isso? Agora entramos no terreno da especulação. A ARAS vem há anos se enfrentando com anarquistas, principalmente nas universidades. Alguém generoso poderia ver isso como brigas territoriais por recursos limitados. Às vezes, anarquistas também brigam entre si por casas ocupadas — algo que também considero lamentável. Mas, principalmente, a ARAS vem se enfrentando com a KNE, o poderoso braço juvenil do KKE, o relativamente forte partido comunista grego. O KKE é o venerável dinossauro stalinista do século XX, ainda dominante no comunismo grego, e diferentemente de outros grupos comunistas, tem assentos no parlamento.
Pessoas mais brilhantes que eu sugeriram que essa violência extraordinária foi uma espécie de tentativa de golpe interno. Certamente foi premeditada: praticamente todos os seus membros se reuniram antes do amanhecer, vindos de toda a Grécia, e o ataque foi planejado e coordenado com precisão. Mas, considerando aspectos como a recusa da ARAS a um pedido anterior de ajuda para desativar câmeras do campus, as portas seletivamente trancadas e a estranha ausência de intervenção estatal, pode-se perguntar se esse ato atroz foi encenado para demonstrar aos administradores da universidade que, ao contrário da KNE, a ARAS tem o que é necessário para expulsar os anarquistas do campus — e se o objetivo desse ataque desprezível era ganhar o favor das autoridades universitárias.
Não posso nem começar a explicar a mentalidade de quem leva eleições universitárias tão a sério — para mim isso é totalmente alienígena —, mas muitos, à esquerda e à direita, levam-nas muito a sério. Agora, levariam TÃO a sério a ponto de infligir um grau inaudito de “grave dano físico”, sem provocação alguma, numa proporção de 5 contra 1? Com outras pessoas, eu zombaria dessa ideia, mas com a ARAS… infelizmente, é plausível. Dado que a violência é sua arma preferida e que não possuem número ou apoio popular, essa obscena “demonstração” poderia ter sido projetada para elevá-los acima de seus competidores de esquerda aos olhos dos poderosos.
Então… quem sabia disso de antemão? Seria fascinante saber. Enfim, quem sabe mais do que eu certamente terá muito mais a dizer em breve. E logo haverá repercussões que não posso prever. E agora talvez você também saiba algo.
Essa ação seria vergonhosa em qualquer momento e lugar. Mas, neste momento e lugar em particular, foi também um insulto imperdoável à memória dos valentes lutadores da Politécnica de Atenas.
Fonte: https://www.anarchistnews.org/content/thoughts-maoist-group-seriously-injuring-anarchists-athens-polytechnic?sfnsn=mo
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
a cigarra anuncia
o incêndio de uma rosa
vermelhíssima
Dalton Trevisan
Obrigada por compartilhar! Tmj!
opa, vacilo, vamos corrigir... :^)
compas, ollas populares se referem a panelas populares, e não a ondas populares, é o termo usado pra quando se…
Nossas armas, são letras! Gratidão liberto!
boa reflexão do que sempre fizemos no passado e devemos, urgentemente, voltar a fazer!