[Espanha] Ursula K. Le Guin, realista de outra realidade

Artigo publicado em Rojo y Negro nº 397, fevereiro de 2025

Hoje, 22 de janeiro de 2025, data em que escrevo isto, completam-se exatamente sete anos da ocultação – para dizê-lo à maneira dos patafísicos – da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin. Três anos antes, quando já se encontrava no último trecho de sua vida, Le Guin havia sido agraciada com a Medalha da Fundação Nacional do Livro por sua Destacada Contribuição às Letras Norte-americanas. No dia 19 de novembro de 2014, ela proferiu o discurso de aceitação do prêmio, que durou apenas uns cinco minutos, mas que, como reconheceu mais tarde, lhe custou um par de meses para redigir, tudo com o único objetivo de torná-lo o mais conciso possível. O resultado é uma pequena obra-prima, um alegato claro e incisivo em favor do poder transformador da escrita.

Le Guin começou reivindicando o lugar de seus colegas escritores de fantasia e ficção científica. “Escritores da imaginação – disse –, que durante cinquenta anos viram esses belos prêmios irem parar nas mãos dos chamados realistas”. Depois, alertou sobre os tempos difíceis que estavam por vir e lançou um desafio às novas gerações de literatos: precisamos de escritores – acrescentou – dotados de imaginação e memória, cujas vozes sejam capazes de encontrar alternativas à forma como vivemos hoje e, ao mesmo tempo, possam recordar o que é, o que era, a liberdade. “Poetas, visionários, realistas de uma realidade mais vasta”, os chamou.

Em sua última entrevista, realizada em várias sessões ao longo de três anos com o jornalista David Streitfeld, ela esclareceria que, é claro, não estava prevendo o fenômeno Trump – “os escritores de ficção científica não somos bons em fazer previsões”. E, no entanto… “Por todos os santos, eu vinha dizendo há trinta anos que estamos tornando o mundo um lugar inabitável! Quarenta anos!”. Shelley estava certo ao afirmar que os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, havia dito Le Guin algum tempo antes, mesmo que raramente vejam suas leis promulgadas e aceitas pela comunidade.

No momento atual, continuou dizendo em seu discurso, precisamos de escritores que conheçam a diferença entre a produção de uma mercadoria e a prática de uma arte. Os livros não são, ou não deveriam ser, simples mercadorias, e a arte não deveria se submeter sem mais à lógica do lucro. Vivemos no capitalismo – constatou –, e seu poder parece inexorável. “Mas também parecia o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser enfrentado e mudado pelos seres humanos. A resistência e a mudança frequentemente começam na arte. Muitas vezes em nossa arte, a arte das palavras”. Os escritores devem exigir o que lhes corresponde – concluiu –, mas o nome de “nossa bela recompensa não é lucro. Seu nome é liberdade”.

Quarenta anos atrás, em 1974, quando a literatura de gênero ainda não era considerada verdadeira literatura, Le Guin havia ganhado os prêmios Hugo e Nebula de ficção científica com um mesmo romance: “Os Despossuídos”. Antes – reconheceria em outra entrevista em 2015 –, ela havia passado um par de anos pesquisando sobre o anarquismo pacifista. Começou lendo os teóricos da não-violência, como Gandhi ou Luther King, e isso a levou a Kropotkin e companhia, “e fiquei fascinada”. Naquela época, em Portland, a cidade onde vivia, havia uma centena de livrarias independentes. Em uma delas, “bastante política”, se você conhecesse o livreiro, podia passar para o fundo da loja, onde havia material anarquista, “maravilhoso e muito difícil de encontrar naquela época”. Le Guin combinou a leitura dos clássicos anarquistas com a leitura de literatura utópica e descobriu que havia uma utopia para qualquer orientação política que se pudesse pensar, exceto para o anarquismo. “Bem, talvez eu devesse escrever uma – pensou –. Então, tive que reler e ler algumas coisas para planejar como diabos uma sociedade anarquista se organizaria, o que era muito divertido, mas também muito complicado”.

Em “Os Despossuídos”, Le Guin apresentava um pequeno planeta chamado Anarres, onde a utopia libertária finalmente se tornara realidade, onde o dinheiro e as leis haviam sido abolidos, onde não existiam mais prisões nem pronomes possessivos e onde a propriedade individual havia sido reduzida ao mínimo necessário. Seu oposto exato era o planeta Urras, a própria representação do Estado capitalista. No breve prólogo do conto “O Dia Antes da Revolução”, uma espécie de prequel do romance publicado no mesmo ano, Le Guin esclarecia: “Meu romance “Os Despossuídos” trata de um pequeno mundo povoado por pessoas que se chamam de odonianos. […] O odonianismo é o anarquismo. Não aquilo das bombas nos bolsos, que é terrorismo, independentemente do nome com que se tente dignificá-lo; tampouco o darwinismo social do ‘libertarianismo’ econômico da extrema direita; mas o anarquismo tal como aparece prefigurado na filosofia taoísta primitiva e exposto por Shelley e Kropotkin, Goldman e Goodman. O principal alvo do anarquismo é o Estado autoritário (capitalista ou socialista); seu objetivo prático-moral principal é a cooperação (solidariedade, ajuda mútua). É a mais idealista e, para mim, a mais interessante de todas as teorias políticas”.

“Os Despossuídos” logo se tornou uma obra de referência para o movimento libertário. No entanto, Le Guin sempre achou um pouco embaraçoso que os anarquistas a reconhecessem como uma deles. “Porque – desde que sejam dos meus, pacifistas – eu os amo, mas sou uma dona de casa burguesa, não pratico o anarquismo”. Parecia-lhe falso ou fácil demais descrever-se como anarquista porque lhe faltava o componente ativista. É como aquelas pessoas – observava – que dizem ser parte cherokee. Mas o que é um anarquista? A protagonista de “O Dia Antes da Revolução” oferecia a chave: “Alguém que, ao escolher, aceita a responsabilidade de sua escolha”.

Diego Luis Sanromán

Fonte: Rojo y Negro

Tradução > Liberto

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sonho colorido
o sol dança com a lua
você comigo

Carlos Seabra

[EUA] Nova Zine: Anarquia e a Arte de Viajar de Carona

Introdução: Por Que Eu Amo Viajar de Carona

Os povos nômades têm historicamente representado as maiores ameaças e sido os mais difamados pelos poderes estatais. Piratas, bárbaros, ciganos e beduínos, entre outros grupos transitórios, têm estado historicamente em conflito com as forças civilizadoras e os sistemas de poder devido à sua ilegibilidade e à dificuldade em controlar essas populações. Viajar de carona não é apenas divertido, mas também uma estratégia para escapar das restrições do poder estatal e da repressão que é um componente intrínseco da sedentarização forçada. Quando aprendi a pedir carona, um mundo de possibilidades se abriu para mim. Aprender e abraçar essa modalidade me ajudou a ver que nenhum dos caminhos traçados para nós, que ditam como devemos navegar pelo mundo, é inevitável. Eu poderia transformar a vida em uma história do tipo “escolha sua própria aventura” ou RPG, em vez de ficar profundamente deprimido por estar confinado às trajetórias normativas que me foram impostas. No mundo das viagens, se viajar em trens de carga é uma ciência, então pegar carona pode ser considerado uma arte. Viajar de trem requer muita precisão e cálculos cuidadosos, enquanto pegar carona é profundamente complexo, inter-relacional e imprevisível. Também não há uma maneira objetivamente boa ou ruim de fazer isso. Assim como na arte, pedir carona tem muito a ver com estilo e preferência pessoais.

As pessoas costumam temer pela minha vida quando me veem pedindo carona na estrada, pois acham que minha morfologia e aparência me colocam em grande risco. Eu escolho pedir carona mesmo assim, por me recusar a desempenhar o papel de vítima, por meu compromisso em me defender e por um sentimento de rebeldia contra a ideia de que devo deixar o medo ditar como me movo no mundo. Acontece que a grande maioria das pessoas dispostas a correr o risco de dar carona a um pedestre está entre as pessoas mais gentis que já conheci. São quase sempre pessoas dispostas a correr um risco pessoal por um estranho. São pessoas com quem eu nunca teria interagido de outra forma, e aprendo muito com as pessoas que decidem me dar carona. Viajar dessa forma me ensinou muito mais do que qualquer aula jamais poderia ensinar. Pedir carona também teve alguns efeitos positivos inesperados, mas profundos, na minha vida, como superar um desejo intenso e duradouro de restringir a alimentação e perder peso.

O mundo da recuperação de distúrbios alimentares frequentemente afirma que esses diagnósticos têm a ver com controle, e não com estética. Por muito tempo, achei que havia algo errado com essa narrativa de controle e tinha um grande problema com a forma como o tratamento parecia se concentrar em dessensibilizar as pessoas para a realidade de não terem nenhum controle sobre suas próprias vidas. A maioria desses programas parece tratar mais da obediência à autoridade do que do cultivo da libertação corporal ou da alegria. Não era controle que eu desejava, era autodeterminação. Nenhuma quantidade de positividade corporal, amor próprio ou terapia aliviava as obsessões que me consumiam. Em vez disso, a primeira vez na vida em que não senti uma sensação perpétua de estresse e hipervigilância em relação ao meu corpo foi quando comecei a viajar de carona. Viver de forma nômade e de uma maneira que se desvia radicalmente dos roteiros sociais prescritos me permitiu relaxar e me sentir verdadeiramente livre. Aprender a transcender as regras sociais e quebrar ativamente a quarta parede da civilização me ajudou a exercitar o músculo mental que me permitiria quebrar minhas próprias regras também. Pedir carona e viver com uma mochila abriu portas que levaram a possibilidades completamente transformadoras. Pedir carona evoca uma sensação de ruptura em relação aos modelos normativos da dinâmica interpessoal. Permite conexões fugazes que muitas vezes inspiram uma maior sensação de autenticidade e abertura, devido à percepção de que será uma interação passageira (mas, de alguma forma, inerentemente íntima). O texto a seguir é um breve guia para encontrar formas anárquicas de liberdade e conexão através das caronas.

Faça o download da zine completa aqui: https://warzonedistro.noblogs.org/files/2025/12/Anarchy-the-Art-of-Hitchhiking.pdf

Tradução > transanark / acervo digital trans-anarquista

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Ainda que morrendo
o canto das cigarras
nada revela!

Matsuo Bashô

[Grécia] Cartaz | 10 anos de Organização Política Anarquista – Federação de Coletividades

10 anos de Organização Política Anarquista – Federação de Coletividades

Diante do ataque total e organizado do mundo podre do Estado e do capital, que local e internacionalmente não tem mais nada a prometer além de guerra e fascismo, a única esperança para as sociedades reside nas barricadas dos explorados e oprimidos e na organização política, social e de classe da luta na direção da revolução social e da emancipação.

A Organização Política Anarquista, desde a sua formação há 10 anos, continua a ser um apelo aberto aos anarquistas que se referem à luta organizada e coletiva e à revolução social, uma proposta constante para a formação ideológica, política e organizacional do movimento anarquista, uma posição de combate e coesão firme nas ruas ao lado daqueles que questionam a barbárie do poder. Com consistência e continuidade nas frentes de luta de classe e sociais que colocam barreiras à degradação contínua de nossas vidas no presente e tendo como perspectiva a conquista da única vida que vale a pena ser vivida: a vida nos conselhos populares da revolução social.

Organização e luta pela revolução social, anarquia e comunismo libertário

apo.squathost.com

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Sem rei, sem profeta,
a seara balança ao vento—
livre e desgrenhada.

Liberto Herrera

[Espanha] Lançamento: “Hilaria. Relatos íntimos para un feminismo revolucionario en el siglo XXI”, de Irene.

Desde suas origens, o feminismo insistiu na importância do relato íntimo ou, mais concretamente, na necessidade de conceber novos relatos onde o pessoal e o político, o cotidiano e o histórico se religuem e mudem nossa visão da sociedade e da luta necessária para sua transformação. Partindo desta premissa, Irene articula a escritura deste livro lúcido e valente a partir da vida de sua tataravó Hilaria, de modo que o que poderia parecer um exercício de recuperação da memória familiar se desdobra e, já desde as primeiras páginas, se converte, também, em um manifesto, uma reflexão e uma invocação para pensar e armar os movimentos feministas contemporâneos. Assim, descobrimos que Hilaria foi uma proletária basca, uma mulher forte que ficou viúva muito cedo e criou só seus filhos. Teve que confrontar a tragédia política e o caos social da Espanha dos anos trinta, mas nada de todo o vivido (incluído seu atroz encarceramento) minou seu entusiasmo ilimitado pela vida e seu desejo indomável de construir um mundo melhor.

Claro, o exemplo de Hilaria é uma inspiração necessária para nosso tempo, pois cada dia é mais urgente chamar as coisas por seu nome: o feminismo liberal daquelas que se contentam com ter uma chefe, uma presidenta do Governo e uma extensa coleção de brinquedos sexuais não és mais que uma manobra de distração. Neste sentido, todo feminismo que defende o capital é um feminismo contra as mulheres, pois o capitalismo é o responsável último de sua opressão. Portanto, devemos perder o medo de criticá-lo, pois a sororidade não pode ser incondicional. Não queremos um feminismo que reivindique a igualdade no seio de um sistema baseado na exploração. Hoje mais do que nunca, com o auge geral de todo tipo de autoritarismos, necessitamos voltar ao feminismo de Hilaria: um feminismo popular e radical, ao mesmo tempo antifascista e anticapitalista.

Hilaria. Relatos íntimos para un feminismo revolucionario en el siglo XXI

Autora: Irene

Tradução: Iballa López Hernández

Número de páginas: 176

19,00€ IVA incluído

erratanaturae.com

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A fúria é semente.
Da rachadura no asfalto,
nasce o novo trigo.

Liberto Herrera

[Espanha] Documentário: “Mi patria es la libertad”. El Cabrero

Comecei fazendo corridas

Por atalhos e veredas muito estreitas para mim, e diziam meus vizinhos que estava no caminho errado longe do rebanho.

Sempre fui essa ovelha negra que soube se esquivar das pedras que lhe atiravam, e quanto mais passam os anos mais me separo do rebanho

Porque não sei aonde vai.

.

Letra de Como o vento oeste (1996)

José Domínguez Muñoz, mais conhecido como El Cabrero (Aznalcóllar, província de Sevilha, 19 de outubro de 1944), cantor flamenco…

“Mi patria es la libertad” é o retrato de um artista que transcendeu sua arte, de um ícone imperecível, de raivosa atualidade. A história de uma das carreiras artísticas mais fulgurantes e atípicas de um cantor flamenco clássico e retumbante em suas convicções. É impossível separar o que canta do que é e vice-versa.

A sua não só era, e é, uma voz necessária porque o que reclama é uma vida justa e humana, mas que, também, sua integridade e honestidade se manteve impoluta, negando-se a servir de alto falante de outros interesses ou rechaçando reconhecimentos com os que pretendiam comprá-lo.

Tão grande era sua figura que não é de estranhar que agora sintam sua falta em milhares de lugares: no prado e na trincheira, no auditório, nas convicções e na alma.

Por isso, ouçamos sua voz porque é o grito do povo.

Fonte: https://loquesomos.org/documental-mi-patria-es-la-libertad-el-cabrero/

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Disseram-me algo
a tarde e a montanha.
Já não lembro mais.

Jorge Luis Borges

[Indonésia] Declaração dos presos anarquistas da FAAF (Associação Livre de Fogos Autônomos)

ACENDENDO UMA CHAMA NA ESCURIDÃO

Nós, anarquistas da Indonésia, enfrentamos uma grande tempestade. Mais de uma dúzia de anarquistas foram presos e torturados, e o Estado tenta nos disciplinar instilando medo. Mas para nós, tudo isso não é nada, porque nós mesmos somos a tempestade, a catástrofe personificada. Aqui estão os companheiros do BlackBloc Zone, Palang Hitam Anarkis Indonesia, Contemplative, Katong Press e outros coletivos.

Nossos companheiros têm a forma de tempestades envoltas em chamas. Alguns consideram este momento o clímax, mas não é nem o começo nem o fim. Estamos reunindo todas as chamas que nos cercam, as chamas que o Estado tentou extinguir.

Quantas vezes precisamos repetir? “Podemos viver sem o Estado!” Dane-se a sociedade! A sociedade é a ferramenta mais preciosa do Estado para preservar sua própria existência. Odiamos a sociedade com todo o nosso coração.

Acreditamos que o amanhecer da fome chegará mais cedo ou mais tarde, e isso marcará o início da era da destruição do Estado.

Para aqueles que estão fora: resistam, reúnam todas as faíscas que puderem. E para aqueles que estão atrás das grades ou se sentem prisioneiros, vocês não estão sozinhos.

Lutem! Lutem! Dane-se a vitória ou a derrota! O importante é que nossos olhos continuem brilhando em cada batalha.

A todos: espalhem a notícia! Morte ao Estado! Viva a anarquia!

FAAF (Associação Livre de Fogos Autônomos)

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Carro em chamas—o fogo
limpa a peste do luxo
que o povo sustentou.

Liberto Herrera

[Uruguai] O vermelho e preto das ruas: alguns apontamentos sobre território e imaginário

Todo projeto anarquista é territorial. Isto no sentido de que é situado, que se planeja sobre um território específico, com sua história, cultura, momento político, condições materiais, relação de forças, etc. Nós, anarquistas, agimos baseando-nos, para a ação, na análise prévia e surgida da prática e do projeto concreto que desejamos realizar em um terreno específico. Seja uma ação em particular, uma sabotagem qualquer, uma ação propagandística ou um jornal virtual, há sempre uma “adaptação territorial” necessária. Assim, as características de cada intervenção dependem das forças próprias, dos princípios e, obviamente, também do contexto e da oportunidade. Neste sentido, a interpretação vinculada ao imaginário desempenha seu papel inevitavelmente.

É certo que muitas vezes a coisa começa por um símbolo; o símbolo costuma ser mais ou menos geral, e quando se aposta em projetos amplos e ambiciosos, mais ainda. As assembleias anarquistas de tal ou qual lugar não tentam impor um signo ideológico a todo o território, mas utilizam conscientemente o nome territorial para mostrar suas intenções projetuais. Isto não é obrigatório, mas tampouco representa algo ruim; ruim (fraco) é agir sem projeto. Uma e outra vez temos falado sobre a importância de uma projeção para uma zona e a necessidade de “fazê-lo bem”. Os projetos propriamente territoriais costumam gerar mais frustrações nos militantes do que ganhos, se realizados pela metade ou como repetição inconsciente. Pensar global e agir local implica um equilíbrio difícil, mas possível. Além disso, toda ação é sempre, de alguma maneira, localizada.

Neste ponto, quero ser muito cauteloso; não creio que haja uma regra, cada companheiro, cada grupo e cada projeto concreto deve definir seus limites e as tensões internas e externas que seu projeto pode assumir. Agora, apenas tento falar de diretrizes gerais. Neste caso, a diretriz é a da necessidade dos símbolos na luta pelo imaginário social. Não apenas para o grupo de companheiros, mas para a sociedade, esvaziada de sentidos coletivos e atomizada por simbologias capitalistas e governamentais. Parto de algo simples: são necessários símbolos, o movimento anarquista deve recuperar a primazia social onde a tinha ou criá-la onde não a tinha. Não há possibilidade de pensar sequer na insurreição, na revolução, sem um imaginário insurrecional ou revolucionário, anarquista, antiautoritário, transformador. Quem não consegue dar nomes, história, materialidade, tensões, às suas ideias, lutará por um fantasma, e ao primeiro sinal de mudança, quando a realidade se mostrar mais complexa, se retirará ou escolherá negá-la. Outra coisa muito diferente é a explosão social, inevitável e imprevisível, talvez, mas todo anarquista sabe que o combate se trava desde antes.

O paradoxo atual do crescimento das ideias antiautoritárias e a perda da rua

Atualmente, desde, pelo menos, a queda do chamado socialismo real, o antiautoritário ganhou muito terreno, sobretudo na academia e no mundo da cultura, mas também nos movimentos sociais. Desde os anos sessenta e setenta, o antiautoritário em sentido amplo (talvez muito amplo) impôs-se nos movimentos sociais, que se tornaram relutantes com mesas executivas ou com a anulação da horizontalidade em prol da antiga postulada “eficácia marxista”. Exemplo disso são os descentralizados movimentos ecologistas e feministas. No entanto, este crescimento, salvo exceções, não se traduz na influência dos grupos ou organizações anarquistas na rua, uma e outra vez arrasados pela recuperação politicista ou pela repressão.

Ao paradoxo anterior – de que, em termos gerais, haja muito mais espaço para as ideias antiautoritárias em certos âmbitos enquanto a influência de rua quase não existe –, devemos somar a expansão de uma revolução autoritária e neoconservadora bombeada a partir das redes capitalistas. A rua é nosso lugar e, como aconteceu outras vezes, as ideias antiautoritárias, se não criarem raízes, logo são arrasadas pelo poder. A luta pelo imaginário é parte do confronto geral de forças contra o capitalismo. As potências da auto-organização, do apoio mútuo e da solidariedade estão aí, mas também precisam circular pela imaginação das pessoas para se instalarem fortalecidas como uma opção quando o imposto se enfraquece. Em definitivo, os símbolos devem ser mantidos, encarnados e fortalecidos pelas práticas concretas. O que em algum momento é apenas imaginário um dia se converte em senso comum, mas para que isso aconteça são necessárias práticas concretas e sua inteligibilidade em símbolos.

Um problema que muitos companheiros têm colocado é o da recuperação pelo reformismo de nossos símbolos. Como se trata de uma relação de forças, muitas vezes isso poderá acontecer, mas também o contrário. Em muitos lugares, Barcelona por exemplo, “o antifa” (que não vem do anarquismo) não tem um signo revolucionário claro, e muitas vezes (embora nem sempre) quando se vê uma bandeira vermelha e preta antifa, quase com certeza se trata de um lugar reformista ou de um partido político de fato. Podem usar o ACAB, o 1312 ou o que seja, mas depois tentam ter, ou já têm, representantes que pactuam com as forças da ordem. No entanto, em Atenas, por exemplo, ainda que possa haver por trás algum grupo mais partidário-político, também o movimento anarquista impulsiona bastante a questão antifascista e seus símbolos, tornando muito mais possível que, se você encontrar uma bandeira vermelha e preta antifa, não haja especuladores políticos por trás. Não há uma essência nos símbolos, não há uma maldição stalinista da frente única ligada à simbologia antifascista, mas sim uma relação de forças concretas que une setores mais ou menos antiautoritários e ideias emancipatórias versus ideias de recuperação. Não é minha ideia recomendar, como já disse, o que cada grupo deve fazer em seu território, apenas refletir acerca da necessidade de símbolos claros atados às práticas.

Tentativas de trabalhar sobre o imaginário social anarquista na sociedade houve muitas nos últimos tempos, sem dúvida. Como anarquistas, nunca marcharemos atrás de uma única cor ou sigla, o que vem de nosso ser refratário. No entanto, acreditamos que se deve tentar, em cada lugar onde for possível, criar pontes para que as pessoas, fora de nossos âmbitos, possam unir signo à prática. No final das contas, signo significa comunicação. Não se trata de agir unidos à força ou mostrar uma falsa ideia de unidade, mas de ampliar a capacidade de influência em tempos de fragmentação criada pelas redes capitalistas. Contrariamente ao que creem vários companheiros, o territorial não deveria necessariamente significar a redução da intervenção anárquica. Estratégica e taticamente seria um erro agir apenas em um local, isso é certo, mas o erro é confundir difusão com atuação ou reduzir intervenção a localismo. A difusão é apenas uma parte da ação e nem toda ação é difusão; sempre se baseia na ética, sim, mas nem sempre se faz com fins de difusão.

Arquipélagos, não ilhas

Diante da necessidade de unir simbolicamente nossas ações à ideia (dizemos simbolicamente pois ação e ideia são a mesma coisa), da necessidade de impulsionar o anárquico como resposta concreta, acessível, e de povoar o imaginário com as práticas reais e possíveis do anarquismo, temos que conseguir transcender nossas redes. Não digo nada que muitos companheiros já não façam, mas quero chegar àqueles que não o consideraram. O erro histórico da organização de síntese, como modo organizativo, talvez, foi querer unir o que era demasiado desigual. Cada tentativa de unir tudo o que não está pronto, ou é antagônico, sempre fracassará. O movimento anarquista deve aprender a lidar com a diversidade, pois a própria ideia anárquica trata da generalização possível das relações sociais não dominadas, portanto, diversas. A união anárquica é voluntária, como nossa ideia de comunidade de luta, mas é preciso conseguir que o diferente se potencialize. Não significa que todos devemos ser amigos, ou nos enquadrarmos numa mesma estratégia, mas sim impulsionar a ideia social por excelência, a anarquia, para além de nossos círculos. O erro histórico da tática da sigla de ataque, talvez, foi assumir a generalização mecânica e não prever ou analisar as diferenças dos territórios de ação, a relação movimento específico e social, repressão, etc.

Outrora, os movimentos anarquistas disputavam o imaginário social com o mundo instituído. Em alguns lugares, os companheiros chegaram a publicar jornais que influenciavam mais do que a mídia burguesa sobre uma população que não havia sido inserida no consumo aparatoso de hoje. O poder foi se adaptando, mudou, obrigado pela luta social, mas o que não mudou foi o domínio que exerce sobre a população e a devastação que provoca sobre o vivo. Propomos, para começar, mudar a atitude de derrota, mesma atitude que se espalhou sobre nossas populações.

Quando analisamos algo, no nosso caso, é para transformá-lo.

R.

Fonte: https://periodicoanarquia.wordpress.com/2025/08/26/el-rojo-y-negro-de-las-calles-algunos-apuntes-sobre-territorio-e-imaginario-2/

Tradução > Liberto

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Borboleta branca
Pousa em minha janela —
Dou-lhe cores vivas

Tony Marques

[Espanha] Lançamento: “Demonios y nihilistas. El Dostoyevski político”, de Costas Despiniadis

Demonios y nihilistas. El Dostoyevski político.

Costas Despiniadis

Calùmnia, Garaje, FAL-Aranjuez, Piedra Papel Libros, Volapük

138 páginas, 22×15, rústica con solapas. Madrid, diciembre 2025.

978-84-129699-6-2, 13 euros

volapukediciones.blogspot.com

Tradução > Sol de Abril

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No azul do mar
golfinhos saltam –
parecem brincar

Eugénia Tabosa

[EUA] Católicos podem ser anarquistas?

Neste episódio do podcast, a jornalista e trabalhadora católica Renée Roden discute a história do anarquismo cristão.

Para muitas pessoas, o termo “anarquia” remete a caos, desordem, até violência. No entanto, alguns anarquistas são pacifistas. E alguns são, inclusive, cristãos. As primeiras comunidades cristãs, segundo alguns estudiosos, apresentavam certas tendências anarquistas, como a tomada de decisões por consenso do grupo, em vez de uma hierarquia vertical. Mais tarde, é claro, a Igreja tornou-se mais estruturada e hierárquica. Mas esses fios anti-institucionais da tradição nunca desapareceram completamente. Nos séculos XIX e XX, quando o conceito de anarquia foi formalizado, surgiram diversos grupos que se identificavam explicitamente como anarquistas cristãos, na Rússia, na Europa e nos Estados Unidos.

Embora o anarquismo possa funcionar para grupos cristãos menos estruturados, como anabatistas ou quakers, ele parece se encaixar de forma desconfortável no catolicismo, dada a ênfase da Igreja em regras e hierarquia. Isso significa, então, que católicos não podem ser anarquistas? E como seria, afinal, um anarquismo católico?

Neste episódio de Glad You Asked, os apresentadores conversam com a jornalista e trabalhadora católica Renée Roden sobre a possibilidade de católicos serem anarquistas. Roden escreveu extensivamente sobre o movimento Catholic Worker, bem como sobre movimentos econômicos e trabalhistas. Ela é colaboradora frequente da U.S. Catholic, além de publicar em The Nation, Religion News Service, The Associated Press, Washington Post, Commonweal, Sojourners, America e Notre Dame Magazine. Ela também escreve regularmente para o site catholicworker.org e para seu boletim, Roundtable.

Você pode aprender mais sobre este tema e ler alguns textos de Roden nos links a seguir:

• “O anarquismo cristão é tão antigo quanto o próprio cristianismo”, de Renée Roden

• “O anarquismo do Catholic Worker”, de Renée Roden

• “Uma breve história do anarquismo religioso”, de Kevin Daugherty

• “A revelação divina leva à revolução”, de Alice Camille

>> Escute o podcast aquihttps://uscatholic.org/articles/202510/can-catholics-be-anarchists-renee-roden/

Tradução > Contrafatual

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Uma cigarra
Embala meu sono.
Mas se forem dez…

Ailton Bedani

Romper com a conciliação!

ÀS RUAS PELOS DIREITOS DO POVO E CONTRA OS TRÊS PODERES DOS PATRÕES!

A extrema direita é um desdobramento radicalizado do Estatismo. O bolsonarismo expressou esse desdobramento em especial quando esteve no poder de Estado, buscando aprovar leis que subsidiassem a violência do Estado sobre o povo.

As manifestações do domingo (07/12) contra a violência patriarcal e misógina colocaram na rua milhares de mulheres contrárias ao conservadorismo da extrema direita e à violência misógina a qual as mulheres em geral são vítimas, mas em especial as mulheres trabalhadoras. Em que pese a característica policlassista em geral destes atos, a FOB levantou a pauta em defesa da mulher trabalhadora, principal vítima da opressão machista e exploração capitalista.

Nos dias que se seguiram o Congresso Inimigo do Povo entrou em contraofensiva aprovando o PL da dosimetria e o Marco Temporal, garantindo tratamento privilegiado aos golpistas do 8 de janeiro de 2023 e atacando frontalmente o direito ao território dos Povos Originários.

A esquerda governista, renovada (PSOL/UP) ou degenerada (PT/PcdoB/PDT) rapidamente convocou novas manifestações para o dia 14/12, desta vez com a palavra de ordem “SEM ANISTIA”. Entendemos que esta palavra de ordem é o reforço do Estado burguês, em especial, da repressão estatal. É de fundo, defender o recrudescimento das instituições burguesas sobre o povo, que de acordo com a correlação de forças e avanço das lutas do povo pobre e explorado, se voltará contra as camadas populares em luta e contra os revolucionários.

Esta leitura não significa que a FOB defende a pauta da anistia, pelo contrário. A ação do congresso expressa aquilo que o hino dos trabalhadores já denunciou há mais de um século “o crime do rico a lei o cobre, o Estado esmaga o oprimido, não há direitos para o pobre, ao rico tudo é permitido.” Que as elites realizam grandes acordos, e modificam as leis visando seus interesses, como o grande acordo que envolveu as frações do parlamento, judiciário e executivo na aprovação do PL da dosimetria. Ou seja, os interesses da extrema direita envolvem o recrudescimento do Estado penal apenas para a população pobre, não pros de “colarinho branco”, como a corja golpista.

Para virar o jogo nosso papel não deve ser reforçar o Estado repressor e construir manifestações visando apenas alterar o coeficiente eleitoral como vem fazendo as frações governistas, mas levar às ruas pautas concretas para a nossa classe como o combate ao marco temporal e contra a escala 6×1, defendendo a 4×3 com no máximo 30 horas semanais. Estas bandeiras atendem aos povos oprimidos e explorados pelo grande capital, em especial as mulheres que sofrem com a jornada de trabalho e a jornada do “cuidado” doméstico devido a tradição patriarcal.

Em algumas cidades os atos estão sendo convocados com shows, inviabilizando a possibilidade de manifestações combativas. Novamente a esquerda reformista repete a tentativa de controlar a fúria popular através de manifestações festivas. As manifestações são instrumentos de demonstração de insatisfação com algo, no caso, com a tentativa de salvar o bolsonarismo e atacar o acesso dos povos originários às suas terras. Portanto as manifestações são instrumentos de potencial explosão de indignação popular. Já as festas tem por objetivo agregar as pessoas pela música e sociabilidade.

Ao reformismo é interessante misturar ambas as coisas, pra tirar o possível caráter de combatividade e de autonomia popular de uma manifestação, conduzindo os afetos e interesses das massas para a sociabilidade festiva, apresentando como saída a disputa pela balança eleitoral que venha a desfavorecer a extrema direita mesmo que para isso setores da direita tradicional sejam favorecidos. Já para os revolucionários é um processo que deseduca às massas a lutar, entregando aos “políticos profissionais” a responsabilidade de representar o povo, cabendo a estes serem apenas massa de manobra das elites políticas.

Orientamos a denúncia e combate à lei da dosimetria e ao Marco Temporal. Combatemos a extrema direita com as armas do proletariado, com pautas que contestem o sistema econômico capitalista, como a escala 4×3 de no máximo 30h/s, o direito à terra dos povos originários. Estas pautas sendo arrancadas através de organização popular que vão amadurecendo e realizando manifestações que acumulem para uma Greve Geral que possa emparedar os capitalistas através do combate classista!

Camaradas, ao trabalho e às ruas!

Fim da escala 6×1. Em defesa da escala 4×3 de até 30 horas semanais!

Contra o Marco Temporal! Pelo direito à terra dos povos originários!

Construir a Greve Geral!

lutafob.org

agência de notícias anarquistas-ana

ao seu voo rápido
borboletinha amarela
o mais é cenário!

Gustavo Terra

[Espanha] Antonia Maymón. Anarquista, professora, naturista

Antonia Maymón (Madrid, 18 de julho de 1881 – Beniaján, Murcia, 20 de dezembro de 1959) foi uma pedagoga racionalista, militante naturista e anarcofeminista espanhola. Fez parte do Comitê Nacional contra a guerra do Marrocos. Dedicou sua vida à criação e promoção de escolas racionalistas e pôs toda sua energia em praticar uma docência de acordo com seus pensamentos. Escreveu em numerosas publicações tanto libertárias como generalistas.

Foi apontada, perseguida, desterrada e encarcerada, e apesar de exílios e prisões, nunca abandonou sua rebeldia nem sua vontade de acompanhar os mais jovens em sua formação como pessoas livres, autônomas e com espírito crítico.

Difundir a biografia e a obra de Antonia Maymón foi um projeto pessoal de Pilar Molina Beneyto. A redação deste livro estava finalizada nos últimos meses de 2007. Em fevereiro de 2008, a falta da correção definitiva, Pilar decidiu deixar-nos. Durante os anos transcorridos desde então, publicaram-se diferentes e valiosas obras que tratam sobre Antonia ou algum dos âmbitos de seu trabalho. Poderíamos ter modificado a redação, acrescentando novas citações, incorporando alguns dados ou mudando outros, isto teria sido possível, mas não seria já a obra que conheceu Pilar. Por isso, decidimos conservá-la tal e como ela a deixou. Agradecemos sua colaboração a todas as pessoas que se envolveram neste projeto.

Mª Carmen Agulló Díaz

M Pilar Molina Beneyto

>> Baixar o livro [PDF]https://www.solidaridadobrera.org/ateneo_nacho/libros/M%20C%20Agull%C3%B3%20y%20M%20P%20Molina%20-%20Antonia%20Maym%C3%B3n.pdf

agência de notícias anarquistas-ana

Família: prisão
com papel de parede
de flores falsas.

Liberto Herrera

[Espanha] Nova edição: Durruti na Revolução Espanhola, de Abel Paz.

Buenaventura Durruti é uma das principais figuras do anarquismo espanhol, o que equivale a dizer dos últimos cento e cinquenta anos da nossa história. Porque, apesar das tentativas de subestimar, desprezar, quando não ignorar, a extensão, persistência e enraizamento das ideias anarquistas em nossa sociedade, qualquer observador que se aproxime do nosso passado mais recente não poderá deixar de notar a presença de mulheres e homens que, a partir de diferentes organizações e abordagens, defenderam as ideias libertárias.

Esta biografia não pretende mitificar o militante ácrata, nem elevá-lo ao panteão dos filhos ilustres mortos pela pátria ou pela revolução.

Mas isso não significa que devemos jogar no esquecimento personagens que, por suas qualidades pessoais ou pelas circunstâncias concretas que lhes coube viver, podem representar outros milhares de homens e mulheres anônimos e sintetizar acontecimentos que devem ser lembrados além da história oficial, daquela elaborada pelo Poder. Como instrumento de luta, como elemento de resistência à desinformação imperante, reedita-se “Durruti na Revolução Espanhola”.

DURRUTI en la Revolución Española

Abel Paz

Madrid, 2025

ISBN: 978-84-127509-9-7

773 págs (+ 5 cadernos interiores com fotografias). PVP: 28 euros

fal.cnt.es

agência de notícias anarquistas-ana

Órgãos sem Estado,
prazer sem fronteiras—o corpo
é território livre.

Liberto Herrera

[Grécia] Vídeo | “Para Alexis, por Exarchia”: Ataques simultâneos e sucessivos a todas as unidades da polícia de choque

Os vídeos foram coletados por fotojornalistas, moradores e frequentadores que estavam em diferentes pontos de Exarchia, em Atenas, nas primeiras horas da manhã de sábado, 20 de dezembro de 2025, pouco depois da meia-noite.

Segundo testemunhas, os ataques às unidades de choque da MAT e da OPKE ocorreram simultaneamente e, em alguns casos, em ondas nas ruas Tzavella e Themistokleous, Metaxa, Tsamadou, Metaxa e Messolongiou, Themistokleous e Koletti, enquanto relatos também mencionam um ataque com pedras às unidades que guardam os escritórios do PASOK (Movimento Socialista Pan-helênico – partido político grego de esquerda) na rua Charilaou Trikoupi.

Os ataques de sábado em Exarchia ocorreram após cerca de um mês de tensão por parte da polícia no bairro, após a dissolução violenta de 2 marchas, uma em 1º de novembro de 2025 na marcha em memória do anarquista Kyriakos Xymitiris e outra em 6 de dezembro de 2025 na marcha em memória do estudante anarquista Alexis Grigoropoulos.

Indicativo do motivo dos ataques é o fato de que em um vídeo-documentário dos locais dos confrontos, ouvem-se os reunidos gritando: “Para Alexis, por Exarchia”.

Observação: o carro que está pegando fogo na rua Stournari é um veículo da OPKE.

>> Veja o vídeo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DvW-go_rNVA

agência de notícias anarquistas-ana

No clube burguês,
o champanhe tem gosto
de suor alheio.

Liberto Herrera

[Espanha] Todo por Hacer encerra um ciclo de 15 anos de imprensa anarquista

Já se passaram mais de quinze anos desde que a primeira edição do Todo por Hacer – um monográfico sobre a greve geral de setembro de 2010 – viu a luz. Alguns meses depois (em fevereiro de 2011), decidimos embarcar na aventura de começar a publicar um novo jornal a cada mês, que, como escrevemos em nossa apresentação, era fruto da “ilusão e do esforço de várias companheiras para levar adiante um projeto autogestionado que contribuísse para dar visibilidade às nossas posições em um formato – o papel – que, longe de ter se tornado obsoleto e anacrônico, sentimos que tem suas próprias vantagens: uma certa durabilidade, a difusão ‘de mão em mão’, a presença física na rua, etc.

Naquela época, muitas anarquistas madrilenhas víamos que nossas ideias e ações não encontravam eco entre as pessoas fora do nosso círculo e que, embora fosse um momento de variada e boa contrainformação na rede, entendíamos que era necessário dar um passo a mais e nos dirigir a um público mais amplo. Por isso fundamos um jornal gratuito, no qual o dinheiro não fosse um impedimento para nos conhecermos, que fosse encontrado em nossos locais de referência (centros sociais, sindicatos, manifestações, etc), mas que também estivesse em bares, no metrô, em bibliotecas, associações de bairro… com o objetivo de alcançar o maior número possível de pessoas.

Desde então, levamos adiante 179 edições – incluindo algumas que, por causa da pandemia de 2020, não pudemos imprimir – repletas de artigos de análise e de opinião, tratando neles “de dar difusão a notícias que fossem além de uma mera manchete, que nos inspirassem e mantivessem seu vigor mesmo com o passar das semanas“. E é agora, com muita tristeza, que anunciamos que este projeto está chegando ao fim.

Um dos motivos pelos quais decidimos fechar – talvez o principal – se deve ao cansaço que carregamos. O Todo por Hacer é formado por um pequeno grupo de amigas que todos os meses brigamos com os elementos para arrancar tempo da nossa vida pessoal, familiar, laboral e de militância para encontrar tempo para escrever artigos, buscar fotos, diagramar a edição, levá-la aos nossos pontos de distribuição habituais, distribuí-los em manifestações ou outros eventos, enviá-los pelo correio às nossas assinantes e divulgar o conteúdo pelas redes sociais. Nos últimos quinze anos, nossas circunstâncias vitais mudaram em muitos sentidos – tivemos filhos, entramos em empregos novos, passamos por várias mudanças, etc – e a cada mês que passa vamos sentindo o esgotamento que isso supõe. Simplesmente, não vemos como sustentável continuar com o mesmo ritmo. E é que precisamente, embora o fato de sermos “um pequeno grupo de amigas” próximas e afins seja uma das razões pelas quais conseguimos chegar até aqui, também tem sido uma faca de dois gumes que dificultou a incorporação de novas pessoas ao projeto de forma duradoura, ficando sem uma renovação natural para o projeto.

Por outro lado, o contexto em que nasceu este projeto mudou radicalmente. No final de 2010 e início de 2011, estávamos imersas em uma grande crise econômica e se respirava inquietude nas ruas, a raiva contra o sistema político e financeiro supurava e parecia que a qualquer momento poderia ocorrer uma grande explosão social. Alguns meses depois, começaria o 15-M, ocorreriam manifestações massivas e duas greves gerais e, com isso, sentíamos que de alguma forma a classe trabalhadora poderia superar o sistema tradicional de democracia representativa parlamentar. É neste contexto que concentramos nossos esforços em nos dirigir às pessoas que não se identificavam necessariamente como anarquistas, mas que participavam dos movimentos sociais da época, para mostrar-lhes o que a organização coletiva, horizontal e assemblearia poderia conseguir à margem dos representantes públicos. Em outras palavras, nossa intenção não era fazer um jornal de anarquistas para anarquistas (o que teria estado mais centrado na teoria ou no debate interno), mas sim gerar uma ferramenta para que nossas ideias ou interpretação da atualidade pudessem ser visíveis em uma manifestação pela saúde pública, no mercado do bairro ou em nosso local de trabalho, tudo isso para contribuir para a formação de ideias antiautoritárias, críticas e transformadoras.

No entanto, três lustros depois, com exceção de alguns movimentos como o pró-palestino, o feminismo e, de vez em quando, o de moradia, em geral os movimentos sociais estão em declínio e a receptividade às nossas ideias, também. O assentamento das ideias da extrema-direita no senso comum coletivo, as apostas institucionais de experimentos fracassados como o Podemos e o Sumar que desmobilizaram o assemblearismo horizontal, a repressão aos movimentos em geral e ao anarquismo em particular e a erradicação de espaços como centros sociais ocupados, associações de bairro cedidas, bibliotecas populares, etc. reduziram consideravelmente nosso âmbito de influência.

É um fato que cada vez menos gente nos lê. Em nossa “época dourada”, a tiragem de nossas edições em papel podia chegar a 3.500 exemplares em alguns meses e os artigos de nossa página web tinham cerca de 6.000 leitores (números que, além disso, dispararam durante os meses que durou a pandemia e estávamos confinadas). No entanto, a forma de acessar notícias – ou mesmo se pode falar em consumi-las – mudou drasticamente nos últimos anos e cada vez se lê menos. Os podcasts e os vídeos nas redes estão deslocando os artigos na internet e, em maior medida, no papel. Por esta razão (unida talvez a uma deterioração na qualidade de nossos artigos e uma diminuição de nossa atividade nas redes), atualmente nossa tiragem em papel é de 1.500 unidades e nossos artigos recebem no máximo 300 visitas. Não é tanto que pensemos que o formato papel tenha ficado obsoleto (embora talvez para grande parte da geração mais jovem esteja), pelo contrário, acreditamos que ainda tem seu lugar. No entanto, o esforço requerido hoje para difundir o projeto e fazer a publicação chegar a mais gente é maior do que há alguns anos (a nível de redes sociais, por exemplo) e nossas forças e nossa rede de apoio diminuíram: estamos nos aproximando dos 40 anos e estamos cada vez mais desconectadas dos movimentos e coletivos mais jovens e de seus espaços. Além disso, as manifestações multitudinárias nas quais distribuíamos o jornal todos os meses, agora não são tão frequentes. Por tudo isso, queremos dar passo a uma nova geração que pode comunicar ideias antiautoritárias de formas diferentes, alcançando um público mais amplo, através dos formatos que considerarem oportunos.

Apesar de tudo, não queremos ser derrotistas e pensar que não tem nenhum eco tudo o que fizemos até agora. Ainda assim, hoje em dia continuam sendo muitas as pessoas e coletivos que apoiam o Todo por Hacer de muitas maneiras: escrevendo ou propondo artigos, enviando-nos resenhas, distribuindo o jornal, doando dinheiro… Depois de passar anos suando a camisa para conseguir grana fazendo shows, rifas e o que nos ocorresse, finalmente conseguimos que o projeto se autofinanciasse por meio das assinaturas, que além disso fizeram com que a distribuição de mais da metade da tiragem saísse por esta via, e que continuaram somando espaços de distribuição até o último momento, com mais de 30 espaços de todo tipo onde se pode encontrá-lo fora de Madri (centros sociais, livrarias, bibliotecas, bares, comércios, etc). Gente que continua nos escrevendo para agradecer, para rebater, para contribuir… Muita gente e muitos projetos sem os quais nunca teríamos conseguido esta constância e que continuaram ali até o último momento. Um enorme OBRIGADO não é suficiente para transmitir as forças que vocês nos deram e o que nos fizeram sentir. Quando pensamos em quem nos ajudou a levar adiante este projeto nos vem à mente uma letra do cantor Producto Interior Bruto: “Eu os vi se esforçarem por aquilo em que acreditam, e que com o passar do tempo ali permanecem. Eu os vejo dando voltas em como melhorar, pensando em certos temas que realmente lhes preocupam. […] Eu os vi criando aquilo que querem criar, ou pelo menos tentando com força e vontade. […] E sei que tenho sorte de tê-los perto; não encontro beleza naqueles que nunca se rebelam“.

O fato de estarmos dando um passo atrás não quer dizer que não estejamos orgulhosas de tudo o que fizemos ao publicar, de forma ininterrupta, 179 edições de nossa publicação, nas quais abordamos debates importantes, informamos sobre lutas sociais, colaboramos com campanhas urgentes e proporcionamos um alto-falante a assembleias de moradia, a sindicatos de base, a sindicatos de bairro, a assembleias de vizinhança, a coletivos contra a gentrificação, a organizações feministas, antirracistas, de defesa dos direitos LGTBIQ+ e das pessoas trans, antifascistas, a grupos antirrepressivos e anticarcerários, etc. Tudo isso escrevendo artigos que bebiam de influências muito diversas, com estilos e ideologias distintas e com as quais podemos ter nossas diferenças, mas com os quais encontramos espaços comuns – como o antifascismo, a solidariedade contra a repressão, o feminismo, a defesa dos direitos conquistados, etc – para trabalhar de forma coletiva e horizontal para dar respostas coletivas aos problemas mais graves de nossos ambientes (despejos, demissões, batidas racistas, repressão policial, etc).

Com o orgulho de tê-lo feito da melhor maneira que soubemos, anunciamos o iminente fim deste projeto. Não queríamos fechá-lo sem avisar previamente, uma vez que não gostamos de finais abruptos; pensamos que é preferível avisar com um mínimo de antecedência e informar sobre nosso processo interno. Publicaremos nossa última edição (que será a de número 180) no próximo mês de janeiro, quando completaremos exatamente quinze anos. Assim nos despedimos com um número redondo. Gostaríamos de ter chegado aos 200, mas isso suporia aguentar quase dois anos mais e não temos vida para isso.

Talvez este adeus não seja totalmente definitivo. Não nos vemos capazes de continuar com o ritmo da publicação mensal, mas nossa intenção é ir publicando, de vez em quando, algumas edições monográficas dedicadas a temas relevantes. E, em qualquer caso, continuaremos nos vendo nas ruas e em nossos espaços próximos.

Quando publicamos a edição número 150 do Todo por Hacer em julho de 2023, escrevemos que “para que qualquer projeto surja e sobreviva, é necessário acreditar nele e ir adiante com constância e dedicação. Também, e para evitar o pessimismo e a sensação de inutilidade ou de derrota, acreditamos que é importante sermos conscientes de que as lutas e as militâncias têm ciclos, momentos de explosão e de refluxo e que com isso devemos conviver e nos adaptar, tratando de seguir vivas nos momentos em que parece que não temos incidência para estar sempre preparadas para quando chegar nosso momento“. Como já dissemos, já não temos forças para continuar com a mesma constância e dedicação de antes, mas adoraríamos que surgisse outro projeto similar ao nosso e continuasse com este trabalho. Porque insistir e insistir, criar laços solidários com outros projetos e pessoas e traçar objetivos que sejam realizáveis no curto prazo, mas belos e motivadores no horizonte, pode ajudar a que nossos projetos sejam duradouros e que possam ser um exemplo de que uma sociedade livre e igualitária é possível.

www.todoporhacer.org

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Vejo o tempo
que passa.
Cabelos grisalhos.

Aprendiz

[EUA] Alternativas às Vidas de Miséria

por Rui Preti

Fifth Estate #417, Inverno de 2025

Uma resenha de Jobs, Jive, & Joy: An Argument for the Utopian Spirit, de Bernard Marszalek (Ztangi Press e Charles H. Kerr, 2024)

Certamente, enfrentar a catástrofe climática e o colapso da civilização exige uma revolução cultural à altura da devastação diante de nós.” – Bernard Marszalek

Os estresses ambientais, de saúde, sociais, econômicos e políticos das últimas décadas impulsionaram a formação de um número crescente de grupos de ajuda mútua voltados ao compartilhamento de recursos e solidariedade. Especialmente desde o surgimento da pandemia de Covid, muitas pessoas vêm refletindo sobre como mover suas vidas para além dos empregos humilhantes, entediantes e insalubres do mundo atual.

Não é, portanto, surpreendente que cada vez mais pessoas busquem inspiração nos sonhos de sociedades melhores e mais socialmente gratificantes que floresceram em tempos difíceis ao longo dos séculos.

Bernard Marszalek, autor de Jobs, Jive, & Joy, tem uma longa trajetória de exploração e defesa do espírito utópico na vida cotidiana. Participante da insurgência global anarquista/antiautoritária das bases nos anos 1960, ele foi um dos fundadores da Solidarity Bookshop, em Chicago, em 1964. Junto a seus camaradas, lia, compartilhava e discutia com entusiasmo publicações e ideias de anarquistas de várias partes do mundo, bem como dos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW) e do movimento surrealista.

Como parte dessa exploração, Marszalek colaborou na reedição em inglês de O Direito à Preguiça, de Paul Lafargue, anteriormente publicado em 1907 pela Charles Kerr & Co. Embora Lafargue fosse genro e aliado de Marx durante os debates da Primeira Internacional, nesse livro ele divergia da visão marxiana de que o trabalho seria uma dimensão positiva da não alienação e expressão da essência humana. O Direito à Preguiça ridiculariza com orgulho a ética burguesa moderna do trabalho.

Lafargue escreveu:

Uma estranha ilusão possui as classes trabalhadoras das nações onde a civilização capitalista exerce seu domínio. Essa ilusão arrasta consigo os males individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Essa ilusão é o amor ao trabalho: a furiosa paixão pelo trabalho, levada até a exaustão da força vital do indivíduo e de sua descendência.

Marszalek continuou essa investigação ao longo dos anos. Jobs, Jive, & Joy é um exame ricamente detalhado de parte do pensamento utópico mais significativo dos últimos três séculos. No livro, ele destaca perspectivas alternativas que rejeitam a ética do trabalho e a mercantilização dos seres humanos e de outras criaturas vivas, bem como negam a inevitabilidade das hierarquias e da exploração pelas elites.

Ele explora as diferenças de paradigma que ajudaram a criar as condições culturais e políticas prevalecentes em diferentes sociedades. Por exemplo, o tempo foi compreendido e medido de formas muito distintas em eras passadas e na modernidade. Nas sociedades pré-industriais, o tempo era geralmente entendido em termos da duração das tarefas realizadas por indivíduos ou grupos. Artesãos e camponeses medievais não calculavam horas gastas, mas pensavam em termos de resultados de qualidade adequada.

As épocas do ano não eram medidas em unidades abstratas de tempo, mas marcadas pelas estações, pelas fases da lua e pelos rituais religiosos, sinalizados por sinos, cornetas ou cantos altos.

Na sociedade moderna, o tempo é compreendido em função da exploração monetária do trabalhador e do lucro dos donos da indústria. Foram necessárias várias décadas para que os trabalhadores esquecessem o tempo pré-industrial e internalizassem, ainda que a contragosto, os horários de trabalho impostos pelos empregadores, aceitando-os como justos e vendo o “trabalhar duro” como virtude moral. Essa mudança de paradigma foi o que possibilitou o desenvolvimento da moderna ética do trabalho.

Hoje, está claro que as perspectivas utópicas são as únicas capazes de desafiar de modo abrangente as contradições da sociedade industrial, entre a necessidade do trabalho e o desejo por uma vida prazerosa e plena.

Marszalek entrelaça discussões sobre aspirações e projetos utópicos do passado com experiências de trabalho próprias, de sua mãe e de outras pessoas. Ele ressalta que, embora nenhum exemplo histórico ou contemporâneo ofereça soluções definitivas para os impasses atuais, as situações em que as pessoas têm controle sobre suas próprias atividades são as mais satisfatórias e as que mais favorecem a criatividade.

Ao mergulhar no legado de diversos utopistas, Marszalek incentiva o leitor a refletir sobre quais aspectos ainda podem ser relevantes hoje. Esses utopistas afirmavam a força da imaginação e da criatividade apaixonada das pessoas como forças transformadoras da vida cotidiana.

Por exemplo, Charles Fourier, escrevendo antes das grandes consolidações industriais e agrícolas do século XIX, compreendia que alcançar a liberdade individual e social autêntica exigiria abolir a escravidão econômica e a necessidade de trabalhar para sobreviver. Só então as pessoas poderiam contribuir para o bem comum nas formas em que fossem mais capazes.

Fourier também reconhecia que a experiência e a compreensão do trabalho são moldadas pelo contexto social. O labor útil pode ser gratificante quando quem o realiza é reconhecido e valorizado como contribuinte para o grupo, e quando o trabalho é compreendido como meio para um fim prazeroso. Para ele, as relações entre liberdade, trabalho e prazer precisavam ser entendidas como uma totalidade, firmemente entrelaçadas.

O livro de Marszalek também explora as ideias de William Morris, que enfatizava a relação entre liberdade e trabalho satisfatório. Na segunda metade do século XIX, Morris testemunhou e se opôs à centralização e mecanização da indústria, ao empobrecimento da vida pessoal e à crescente degradação ambiental gerada pela produção diária.

Morris via o capitalismo e o lucro como forças corrosivas da autoexpressão e da cooperação. Argumentava que uma sociedade verdadeiramente livre deveria basear-se na alegria, na criatividade e no respeito mútuo, compartilhando arte e cultivando o equilíbrio com a natureza.

No final do século XIX, alguns progressistas começaram a defender programas estatais de bem-estar social que garantissem as necessidades básicas em troca da aceitação de uma regimentação centralizada e eficiente. Um deles foi Edward Bellamy, autor do popular romance utópico Looking Backward, que idealizava tal sociedade. Morris respondeu com uma crítica direta, escrevendo seu próprio romance utópico, News from Nowhere.

Morris acolhia a mecanização de tarefas tediosas e cansativas, mas ficava horrorizado com a natureza destrutiva da tecnologia moderna e a brutal organização hierárquica da vida que ela engendrava. Recusava-se a aceitar a engenharia mecânica como a expressão máxima da realização humana, e muito menos como razão para abdicar da autonomia.

Hoje, alguns dos piores aspectos do autoritarismo moderno estão empurrando o mundo para o desastre e é preciso convocar os mais altos sentimentos de solidariedade e ajuda mútua para enfrentá-los.

Marszalek examina diversas propostas de solução para o impasse atual, denuncia algumas como engodos e demonstra esperança em outras. No conjunto, o livro presta um serviço valioso ao lembrar a grande variedade de perspectivas utópicas alternativas que rejeitam o autoritarismo e as relações sociais capitalistas.

Como afirma Bernard Marszalek com precisão:

O ímpeto de superar a miséria da vida cotidiana, para que as expectativas diárias de deleite possam ser vividas, é a base de toda futura atividade social transformadora.

Rui Preti é amigo de longa data do Fifth Estate e grande defensor do valor do questionamento contínuo dos paradigmas culturais.

Tradução > Contrafatual

agência de notícias anarquistas-ana

Dança da mulher molhada
Ao vento o galho
Orvalho nas pétalas.

Silvia Mera

[Espanha] Entrevistas | Francisco Cuevas Noa | Autor de Anarquismo e educação. A proposta sociopolítica da pedagogia libertária

Anarquismo e educação tornou-se um pequeno clássico da literatura pedagógica de caráter ácrata. Que motivações te levaram a escrever o livro na época?


O livro foi fruto de uma pesquisa pessoal que iniciei na minha época de estudante na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Sevilha, no final da década de 1990. A busca por modelos pedagógicos alternativos me levou, junto a um grupo de colegas, a convidar professores ativistas da época, e até criamos um Seminário de Pedagogia Libertária que funcionou por uns 3 ou 4 anos. Nossa principal referência era a Escola Paideia, em Mérida, mas também Summerhill e o legado de Paulo Freire.


Ao concluir a graduação, propus-me a fazer uma tese de doutorado nesse campo; cheguei a apresentar a dissertação (que foi o texto-base do livro), mas nunca concluí a tese — embora o aprendizado e a pesquisa tenham sido enormes.


O resultado foi um texto simples e organizado (segundo me dizem), que teve sucesso em sua difusão graças ao trabalho editorial da Fundação Anselmo Lorenzo.

O livro se tornou uma porta de entrada para debates sobre modelos pedagógicos para muitas pessoas interessadas no tema. Considerando tua experiência como autor, acreditas que as editoras do meio libertário podem contribuir para ampliar esses debates além dos círculos militantes interessados na questão?


Acredito que sim, que nossas editoras podem se conectar com esse campo de debate, embora isso possa ser difícil, já que normalmente não se movem nesse ambiente. As libertárias perderam conexão com o mundo estudantil e acadêmico, e ainda mais com as profissionais da educação.


As experiências de educação libertária diminuíram muito; pouquíssimas sobrevivem, e nem mesmo as teorias anarquistas da educação inspiram educadores e educadoras.


Seria necessário repensar como recomeçar um trabalho de difusão e diálogo com os setores sensíveis a essas questões — setores que talvez hoje estejam mais atentos a propostas amplas de pedagogia antifascista, mas que quase esqueceram o discurso libertário.

Já se passou muito tempo desde a publicação, mas os debates sobre pedagogias alternativas continuam despertando interesse entre docentes e militantes da esquerda política e sindical. Achas que o debate sobre os modelos de escola ganhou mais vigor nos últimos anos?


Acredito que não, ou pelo menos não tanto em nosso contexto. A maioria dos docentes e professores mal questiona o modelo escolar; talvez o debate tenha ficado restrito à dicotomia público–privado, que ganhou força com o movimento “Marea Verde”, mas em geral não se vai além disso.


Talvez na América Latina esse debate esteja mais vivo, com o peso da chamada Educação Popular; porém, na Europa, com um sistema estatal bastante consolidado e acomodado, também se gerou uma acomodação entre os profissionais e a esquerda — que, insisto, luta pela Escola Pública, mas raramente se aprofunda em outros aspectos.


Por outro lado, observo grande interesse por questões metodológicas (aprendizagens ativas, etc.) e por áreas como a educação emocional — mas muitas vezes descontextualizadas de fatores como classe social e contexto cultural.


Será que nossos jovens dos bairros operários periféricos podem realmente praticar “coaching emocional” com base na psicologia norte-americana? Ou suas emoções — e, sobretudo, sua expressão — não teriam direito de ser diferentes e de se desenvolver com aceitação nas escolas?

Considerando as óbvias dificuldades para generalizar a prática da pedagogia libertária em uma sociedade capitalista como a atual, qual é o papel que atribuis aos sindicatos, ateneus e outros espaços de cultura libertária na construção de uma alternativa formativa de caráter contra-hegemônico?


O papel continua sendo fundamental — ainda mais diante da emergência social —, pois a dissolução dos espaços comunitários se acelerou muito. É vital que nossos “redutos” de luta continuem tendo projetos educativos que proponham nos “deseducar” de tantas coisas que deturparam nossa essência livre e comunalista.


Se na escola convencional não aprendemos outras coisas e de outras formas — e se nela tampouco se trabalha minimamente a capacidade crítica —, só nos restam os momentos de convivência e luta no sindicato, no ateneu, no centro social etc.


São espaços nos quais ainda podemos contar com garantias mínimas de autonomia, independência e autogestão — e isso é vital para desenvolver projetos de educação anarquista.

Sabemos que os debates pedagógicos raramente penetram entre as famílias das classes populares. Que maneiras te ocorrem para suscitar esses debates entre as famílias da classe trabalhadora?


Uff, aí o trabalho é árduo. Submersas no esforço pela sobrevivência, poucas famílias têm serenidade para refletir sobre que tipo de educação querem para seus filhos e filhas.


Penso que, voltando à questão anterior, os sindicatos e centros culturais poderiam criar espaços de encontro e debate onde se possa conversar com calma sobre o modelo educativo de que precisamos.


Porque evidentemente não basta estender a escolarização às classes populares — precisamos de uma educação útil (funcional à classe trabalhadora), que nos permita alcançar autonomia e caminhar para uma maior justiça social.


Nesse sentido, o debate sobre a Escola Pública é positivo, mas devemos ir além: discutir também a qualidade (os “bons” estudos continuam sendo acessíveis apenas aos ricos) e as possibilidades de autogestão nos contextos escolares.

Tu és docente e, nos últimos anos, tens visto como as administrações vêm deteriorando a escola pública de forma gradual. Sabemos que é uma pergunta ampla, mas gostaríamos de saber tua opinião sobre o papel que a escola pública deve desempenhar em sociedades ameaçadas pelas consequências da mudança climática.


Se considerarmos a escola pública tal como o Poder atual a concebe, ela já cumpre sua função. Trata-se, na verdade, de uma escola estatal, que “acolhe” as crianças e as prepara lentamente para posições subalternas no mundo produtivo (para as posições hegemônicas já existem a escola particular e a conveniada). E faz isso com cada vez menos investimento e mais desânimo.
Agora, se a considerarmos a partir de nosso ponto de vista, a escola pública deveria centrar-se numa ação educativa que sensibilize para outro tipo de relação socioeconômica, distante do extrativismo capitalista — em geral, uma educação “verde”.


Os anos de escolarização são decisivos para que nossas crianças desenvolvam essa sensibilidade ecológica e de reconexão com os ciclos da Terra.

Por fim, podes recomendar três livros que consideres imprescindíveis para se aproximar dos debates sobre pedagogias alternativas?


Para começar, não podemos esquecer um clássico: Tina Tomassi, Breviario del pensamiento educativo libertario (Nossa y Jara editores, 1988), que esclarece as ideias e situa muito bem o contexto histórico da elaboração gradual das propostas educativas anarquistas, fortemente vinculadas ao pensamento dos teóricos do anarquismo do fim do século XIX.


Outro clássico é Jesús Palacios, La cuestión escolar (Laia, 1989), uma obra muito completa sobre as transformações educacionais ao longo da história, recorrendo aos seus textos fundamentais de referência. Tanto este livro quanto o anterior podem parecer um pouco “antigos”, mas nos oferecem uma visão trans-histórica essencial para entender que o que temos hoje é fruto de grandes esforços coletivos e de contribuições maravilhosas que foram aceitas e generalizadas.


E, por último, algo mais atual: Enrique Javier Díez Gutiérrez, Pedagogía antifascista (Octaedro, 2024), que, embora se situe em parâmetros marxistas, oferece diretrizes imprescindíveis para resistir, desde a escola, à generalização da agenda reacionária.

Anarquismo e educação. A proposta sociopolítica da pedagogia libertária foi escrito por Francisco Cuevas Noa e reeditado pela Fundação Anselmo Lorenzo em 2024.

Fonte: https://fal.cnt.es/entrevista-a-jose-cuevas-noa-autor-de-anarquismo-y-educacion/

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

velho haicai
séculos depois
o mesmo frescor

Alexandre Brito