Por António Araújo | 15/12/2021
“Este é, sem exagero, um dos acontecimentos editoriais do ano. Desde logo, porque a vida e a obra de Emma Goldman (1869-1940) têm merecido escassa ou quase nula atenção entre nós: à parte um pequeno opúsculo saído há vários anos (O indivíduo e a sociedade, Maquinetas, 1987) e uma biografia da autoria de Carla Queirós (Se não puder dançar esta não é a minha revolução, Assírio & Alvim, 2008), só no ano passado foi publicada uma coletânea de escritos seus, numa cuidada edição conjunta Livraria Letra Livre/A Batalha (Anarquismo e outros ensaios, 2020).
Dar à estampa a sua esmagadora autobiografia, num volume de quase mil páginas, é um gesto de grande audácia e coragem editorial, tanto mais louvável quanto, mesmo no estrangeiro, poucos são os que se atrevem a publicar a versão integral de uma obra nuclear da história do movimento anarquista e do pensamento libertário. Em língua francesa, por exemplo, só em 2018 foi editado o texto original na íntegra, numa tradução esmerada de Laure Batier e de Jacqueline Reuss, cujo labor de investigação e o apoio são, de resto, reconhecidos por Luís Leitão, que assina a versão portuguesa, impecável e de grande apuro, como tudo quanto sai, desde há décadas, sob a esclarecida chancela da Antígona.
“A minha vida — vivi-a nos seus altos e baixos, no sofrimento mais pungente e na alegria extasiante, no desespero mais negro e na esperança fervorosa. Bebi a taça até à última gota. Vivi a minha vida. Oxalá tenha tido o talento para pintar o quadro da vida que vivi!” É com estas palavras que Emma termina a sua autobiografia, uma narrativa que, começando com a sua chegada a Nova Iorque, em Agosto de 1889 (“com cinco dólares e uma pequena mala de mão”), termina sensivelmente em 1928, quando a autora se fixa no sul de França para, durante dois anos, redigir as suas memórias. De fora ficam, portanto, os tempos agrestes da infância e juventude na Lituânia natal, então pertencente ao Império Russo, e as primeiras experiências de confronto com o peso esmagador e opressivo da autoridade e da ortodoxia, plasmado no tratamento cruel dado aos camponeses e aos serviçais e aos que, como ela, eram de origem judaica (diz-se que, muito nova, Emma assistiu ao chicoteamento de um camponês na praça pública, em Papile). De fora ficam também os derradeiros anos de vida (morreu em Toronto, em 1940, com 70 anos), a década em que, por três vezes, se deslocou a Espanha para apoiar a República aí nascente e em que, em Abril de 1939, viajou para o Canadá para angariar fundos em prol dos exilados espanhóis. Quis ser enterrada no Cemitério de Waldheim, em Chicago, junto às campas dos anarquistas executados em 1887, na sequência dos tumultos de Haymarket, em Maio do ano anterior, quando um protesto pacífico de trabalhadores que pugnavam pela jornada laboral de oito horas resultou num massacre com várias vítimas, de parte a parte, episódio que teve influência decisiva no movimento operário norte-americano e no lançamento do Dia do Trabalhador.
Contudo, para a trajetória biográfica de Emma Goldman o turning point decisivo terá sido outro, o encontro casual num café de Nova Iorque com Alexander Berkman, que a iniciou nos meios anarquistas da cidade, junto dos que defendiam a tese da “propaganda pelos fatos” (propaganda par le fait), nos termos da qual um gesto violento e chocante desencadeia sempre uma reação igualmente violenta por parte das autoridades, gerando a partir daí uma revolta em larga escala, capaz de pôr termo à opressão exercida pelo poder nas suas mais variadas formas. À luz dessa doutrina, entre os finais do século XIX e os alvores do século XX multiplicaram-se, muitas vezes com êxito, as tentativas de assassinato de figuras políticas ou de grandes industriais e, após outros tumultos laborais sangrentos (em Homestead, na Pensilvânia, em Julho de 1892), um trio composto por Alexander Berkman, Emma Goldman e Modest Aronstam decide atentar contra a vida do industrial e financeiro Henry Clay Frick, que hoje recordamos como o patrono e mecenas da Frick Collection. O capitalista sobreviveu por um triz à tentativa de homicídio perpetrada à bala e à faca, em resultado disso Berkman foi condenado a 22 anos de prisão, dos quais cumpriu 14, sendo libertado em 1906. Reencontrou-se com Emma, sua amada, a qual tinha prosseguido, entretanto, diversas ações conspirativas e de propaganda (v.g., a fundação da revista Mother Earth; um tour pela América em defesa do anarquismo, do amor livre e do controle de natalidade), que lhe valeram estar sob permanente vigilância das autoridades policiais. Serão presos e condenados em 1917, por fazerem propaganda contra a conscrição militar imposta pela entrada da América na Grande Guerra. Dois anos depois, foram deportados e enviados para a Rússia, onde o confronto com a realidade da opressão bolchevique fez com que Emma perdesse o entusiasmo que a Revolução de Outubro nos seus alvores lhe merecera. Deu à estampa, em 1923, o livro My Disillusionment in Russia e, no ano seguinte, My Further Disillusionment in Russia. Naquela que é uma das partes mais aliciantes de Viver a Minha Vida, descreve-se pari passu essa experiência russa e os encontros com as elites soviéticas, Lenine e Zinoviev incluídos, bem como o trauma daí advindo, nascido dos “males e injustiças que via a cada passo” (acrescenta: “e estes iam aumentando de dia para dia, fatos desagradáveis que se encontravam em completo desacordo com o que a Rússia vinha proclamando ao mundo. Tentava evitar olhá-los de frente, mas eles espreitavam em cada canto e não podiam ser ignorados”).
Após uma passagem por Berlim, fixou-se em Londres, onde teve pouco sucesso na denúncia da tirania dos sovietes: a intelectualidade inglesa de esquerda, que assistia às suas conferências, e onde avultavam nomes como Bertrand Russell ou H. G. Wells, não quis dar-lhe ouvidos e, em certos casos, ridicularizou até o seu idealismo anarquista (“A posição de Bertrand Russell desiludiu-me muito”, dirá Emma nas suas memórias). Desiludida, escreveu a Berkman: “Estou terrivelmente cansada, tão sozinha e distante. É um sentimento horrível, este de voltar para cá, paras as palestras, e não encontrar uma alma amável, alguém que se importe se estamos vivos ou mortos”. Em 1927, viajou para o Canadá, onde acompanhou o julgamento de Sacco e Vanzetti em Boston, revoltada por não poder juntar-se às manifestações que na América se faziam em protesto pela execução dos dois infortunados anarquistas.
Com o apoio de alguns admiradores e amigos, entre as quais a milionária Peggy Guggenheim, alugou uma casa de veraneio em Saint-Tropez, onde começou a redigir as suas memórias. Nelas, refere que foram os mártires de Haymarket que a fizeram abraçar a causa anarquista, não surpreendendo, pois, que haja pedido para ser enterrada junto deles, em Chicago. Pelo caminho, uma vida extraordinária, digna de muitos filmes, começada na penúria e num meio familiar opressivo, prosseguida com tremendo esforço e admirável autodidatismo, atravessada por amores vários e outras tantas rupturas, sentimentais e políticas. Trabalhou como costureira, foi caixeira de uma loja de espartilhos, envolveu-se em conspirações inúmeras, arriscou até ao limite. Fez conferências, pugnou pela liberdade dos mais fracos, defendeu o amor livre e a homossexualidade, apelou a um maior respeito pelas mulheres e seus direitos. Perante uma biografia tão cheia, tão prenhe de sonhos e de sobressaltos, será descabido perguntar se Emma Goldman terá sido feliz. É inegável, porém, que lutou e sofreu para que os outros o fossem, mais felizes e mais livres, pugnando por aquilo a que chamou o “direito de todos usufruírem de coisas e belas coisas”. E isto, só por si, justifica que a conheçamos melhor, lendo-lhe agora as memórias, tão extraordinárias como ela.”
Viver a Minha Vida
Autor(es): Emma Goldman
Tradução de Luís Leitão
Editora: Antígona
1000 págs., 35€
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