Revisitando Always Coming Home de Ursula Le Guin, por John Clark
Recentemente, o Anarchist Political Ecology Group (o Grupo APE) [Grupo Anarquista de Ecologia Política] leu e discutiu o livro de Ursula Le Guin Always Coming Home. Embora seja uma obra que revisito com frequência, esta foi a primeira vez que a li inteira em cerca de 35 anos.
Descobri o trabalho de Le Guin pela primeira vez quando li The Dispossessed [Os Despossuídos] em meados dos anos 1970. O livro teve um grande efeito nos membros do grupo anarquista do qual fazia parte na época, o Black Pearl Mutual Aid and Pleasure Club [Clube de Apoio Mútuo e Prazer Pérola Negra] de Nova Orleans.
Inspirado em parte por essa obra, alguns de nós formaram um grupo pequeno de afinidade dentro do grupo maior. Nós nos consideramos Odonianos, seguidores da filosofia cooperativa antiproprietária de Laia Odo, a grande filósofa social anarquista do planeta anarquista de Le Guin, o Anarres.
Quando Always Coming Home apareceu, uma década depois, o grupo Black Pearl não existia mais e aspirar a criação de e a vida em uma subcultura Odoniana começou a parecer um sonho de juventude, mas a nova obra de Le Guin me inspirou ainda mais do que seu clássico anterior tinha feito, ajudando-me a recuperar minha fé na comunidade livre e me dando um senso renovado de direção.
Em meados dos anos 1990, escrevi sobre o livro para uma coleção na qual cada contribuinte descrevia múltiplos livros que os tocaram mais profundamente. Disse que Always Coming Home, “de uma forma inteiramente incomparável, cria um mundo — um mundo distante que se torna intimamente presente para nós, já que mexe com os anseios mais profundos de nosso ser.”
Enalteci Le Guin pelo que revela através da personagem central do livro, “Stone Telling,” mais tarde chamada de “Woman Coming Home.” [Mulher Vindo para Casa] (“Stone Telling” — um nome cosmicamente dialético, reminiscente do pronunciamento famoso de Hegel, “The stones cry out and lift themselves up to Spirit”! [Em tradução livre, As pedras gritam e se levantam em direção ao Espírito!])
A originalidade da Stone Telling (sua singularidade universal) vem da experiência de viver em, e de compreender profundamente, duas culturas radicalmente diferentes. Através dessa experiência, ela “ganha a habilidade de revelar a verdadeira natureza de cada uma.”
Essas duas culturas ficcionais representam os dois mundos que podemos habitar e vir a compreender, o mundo manipulativo da dominação em que nos encontramos, e o mundo cooperativo de liberdade que somos capazes de criar. O que me pareceu mais marcante foi o retrato de Le Guin desse mundo, do cooperativo e anárquico Kesh, e sua cultura de “lar”, o oikos.
A grande conquista de Le Guin, concluí, foi que ela “nos dá um relato inspirador e emocionante de uma comunidade bonita, amável, criativa e feliz.”
Quando olho para trás, estou mais convencido do que nunca de tudo isso. Contudo, penso que, ao mesmo tempo, subestimei muito a densidade e a complexidade da proeza de Le Guin. Mais tarde, desenvolvi uma (ainda sendo evoluída) teoria de transformação social, estressando as pré-condições necessárias para a mudança revolucionária.
Localizei essas condições na esfera social institucional, a socio-ideológica, a social imaginativa, a ética-social e a interação dialética entre todas elas. Em Always Coming Home, Le Guin explora profundamente todas essas esferas. Na realidade, sei que nenhum livro lhe conta mais sobre como todas elas interagem e, assim, criam um mundo social — ou, potencialmente, destroem-no.
Todo detalhe de sua obra revela o funcionamento desses modos de determinação. Isso conclui brilhantemente estórias idealizadas, rituais, cerimônias, mitos, lendas, obras dramáticas, poesias e outros gêneros literários, arquitetura, paisagens, jardins, espaços comunais, roupas, relações de parentesco, hospedagens, sociedades, artes, artesanatos, ferramentas, mapas, culinária, medicina, música, instrumentos musicais, danças, brincadeiras, estruturas de caráter, sensibilidades, traços psicológicos e, talvez acima de tudo, linguagem.
E essa descrição deixa muito de fora. Tudo isso, nas mãos mitopoéticas de Le Guin, revelam a natureza de modos de determinação, seja como modos de dominação e separação, ou como modos de libertação e solidariedade.
A natureza de todos esses determinantes e das esferas de interação maiores da determinação que constituem molda o tipo de mundo no qual vivemos – ou, nos termos da Le Guin, determina se vivemos no Mundo ou não. E, na verdade, não vivemos. O mundo dominante do arché (“governar,” no sentido de dominação) é na realidade um modo de escapar e de negação do Mundo. É um não-Mundo e um anti-mundo de necrofilia e niilismo.
Em seu nível mais profundo, Always Coming Home é uma crítica de “viver fora do Mundo.” E é uma crítica que se direciona a nós, ao ponto de vivermos na cultura dominante (e não nos enganemos sobre o grau do quanto realmente estamos inseridos nela) até que não estejamos mais em casa ao estar no Mundo. Os resultados de viver fora do Mundo se tornaram torturantemente óbvios desde que o livro foi escrito.
O que pode ter sido pensado mais de trinta e cinco anos atrás, mas que agora grita conosco de suas páginas, é o fato de que é endereçado a nós, aqueles do passado trágico que moraram fora do mundo e que o devastaram.
A Stone Telling de Le Guin tem uma voz profética porque morou em ambos os mundos e teve uma profunda experiência de ambos. Ela se torna a Woman Coming Home porque sua viagem para outro mundo acaba por levá-la para casa, para o oikos, para o Mundo – o que ela então aprecia mais profundamente. A sua é uma jornada mística, uma viagem paradigmática por todos nós e, para seguir seu exemplo, devemos começar a experimentar nossos lares tão profundamente quanto a falta de um; isso significa que temos que começar a viver o aqui e o agora como se estivéssemos no Mundo.
Muitos anos atrás, sugeri que o livro de Le Guin “mexe com os desejos mais profundos de nosso ser.” Contudo, falhei em compreender adequadamente a necessidade de lê-lo de uma forma que permita que nosso ser seja “mexido” da forma mais praticamente crucial, da forma mais mundana, uma forma que libera o nosso espírito de criatividade social engajada.
Se o lermos em tal espírito de criação social, de poética comunal (criatividade radical), não iremos meramente pensar sobre, ou ainda, celebrar formas sociais libertárias, mas também começar a criá-las — por grupos de afinidades, comunidades de base, ecovilas e além.
Apenas tal criatividade comunal é capaz de unir o que restou no Mundo e de finalmente trazê-lo de volta em sua plenitude, ou, para invocar o imaginário Kesh, de dançar o Mundo de volta. Devemos entrar em uma temporalidade e uma espacialidade, um tempo e espaço realizados, em que não mais existimos fora do Mundo, mas vivemos no e com o Mundo.
Talvez possamos ter fé de que o grande anarquista comunitarista Gustav Landauer estava certo quando previu que, se criarmos comunidades nas quais a vida é verdadeiramente boa e nas quais tudo verdadeiramente floresce, isso criará um tipo de “inveja positiva” naqueles que as observam. Podemos chamar tal efeito de “inspiração”, a propagação pelo mundo inteiro do que Landauer chamou de Geist ou Espírito. De acordo com seu amigo Martin Buber, esse Espírito é algo encontrado em todos os centros descentralizados da comunidade livre.
Estamos agora na Necrocena, a nova era da morte na Terra, e está mais do que na hora de nós entrarmos no que pode ser chamado de Poeticena, uma nova era de nascimento, renascimento e criatividade na Terra. Essa transição dependerá da reemergência da comunidade carismática, um movimento do Espírito Livre; é muito tarde para a pré-figuração, é hora da transfiguração.
>> John Clark é um ativista anarquista comunitário e teórico. É diretor do La Terre Institute for Community and Ecology [Instituto La Terre para a Comunidade e Ecologia], o qual patrocina programas educacionais e organizacionais em Nova Orleans e em um local de 88 acres em Bayou La Terre, na floresta da Costa do Golfo do Mississippi. Seu último livro foi Between Earth and Empire: From the Necrocene to the Beloved Community, da PM Press.
Fonte: Fifth Estate # 410, Fall, 2021
Tradução > Sky
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Sopra o vento
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Na pétala da flor.
Rodrigo de Almeida Siqueira
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!
Um puta exemplo! E que se foda o Estado espanhol e do mundo todo!
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Eu queria levar minha banquinha de materiais, esse semestre tudo que tenho é com a temática Edson Passeti - tenho…
Edmir, amente de Lula, acredita que por criticar o molusco automaticamente se apoia bolsonaro. Triste limitação...