
A crítica à paralisia do anarquismo no Brasil não é nova, mas permanece urgente. Enquanto o capitalismo avança, o Estado endurece suas garras e as desigualdades se aprofundam, parte do movimento anarquista local parece ter se enclausurado em uma bolha de teorização infinita. Essa “paralisia reflexiva”, como alguns a nomeiam, revela um descompasso entre a produção intelectual e a ação direta. Não se trata de rejeitar a teoria — essencial para a crítica radical —, mas de questionar por que tantos coletivos e indivíduos anarquistas se satisfazem em discursar sobre a revolução enquanto reproduzem dinâmicas hierárquicas e passivas típicas da academia.
A assimilação da cultura acadêmica pelo anarquismo é um fenômeno perverso. Nas universidades, a produção de conhecimento frequentemente serve à carreira individual, à competição por reconhecimento e à legitimação de hierarquias intelectuais. Quando anarquistas adotam essa lógica, transformam-se em “teóricos da revolução” que prescrevem fórmulas abstratas, distantes das lutas concretas. A linguagem hermética, os debates intermináveis sobre nuances doutrinárias e a fetichização da teoria como fim em si mesma são sintomas de um academicismo que desarma a práxis. Não é surpresa que muitos desses grupos, embora críticos do poder, reproduzam a dinâmica da academia: pensar para os oprimidos, nunca com eles.
Historicamente, o anarquismo brasileiro floresceu nas fábricas, nos sindicatos e nas comunidades, articulando teoria e ação. No início do século XX, operários anarquistas organizavam greves, editavam jornais militantes e criavam escolas livres, entendendo que a transformação social exigia presença, não apenas reflexão. Hoje, parte do movimento parece ter trocado as assembleias populares por simpósios universitários. Claro, a academia pode ser um espaço de resistência, mas quando a teoria não retorna às ruas, não dialoga com as necessidades imediatas do povo, ela se torna um exercício de autocelebração — e, pior, uma forma de neutralizar o potencial revolucionário do anarquismo.
O academicismo não é inocente: é uma ferramenta de domesticação. Ao confinar o pensamento crítico a artigos indexados e debates entre pares “esclarecidos”, a academia coopta a radicalidade anarquista, transformando-a em objeto de estudo inofensivo. Quando militantes aderem a essa lógica, reforçam a ideia de que a mudança social é tarefa de “especialistas”, não do povo organizado. Pior: essa postura alimenta uma divisão de classe dentro do próprio movimento, onde intelectuais acadêmicos — majoritariamente brancos e de classe média — ditam as pautas, enquanto trabalhadores, negros, indígenas e periféricos permanecem como meros “casos de estudo”.
É preciso resgatar o caráter popular e prático do anarquismo. Isso exige descer do pedestal teórico e mergulhar nas lutas cotidianas: ocupações urbanas, resistência indígena, greves, coletivos antifascistas, ações mutualistas durante crises. A teoria anarquista deve nascer dessas trincheiras, não de referências bibliográficas europeias descontextualizadas. Questionemos: quantos coletivos hoje estão nas quebradas, construindo hortas comunitárias ou enfrentando a polícia ao lado dos moradores? Quantos priorizam a formação política horizontal em vez de palestras com linguagem inacessível? A revolução não será um artigo bem-referenciado — será um processo construído nas brechas do sistema, com suor e solidariedade.
Superar a paralisia exige autocrítica e coragem. Não basta denunciar o academicismo; é necessário romper com a comodidade dos círculos fechados e assumir riscos. O anarquismo não é um clube de debate, mas um projeto de transformação radical. Se queremos honrar nossa história e enfrentar os desafios do presente, precisamos substituir a “performance revolucionária” por ação direta, vinculada às urgências do povo. Que nossas teorias sejam armas, não ornamentos. E que nosso maior legado não sejam teses, mas territórios livres, relações descolonizadas e a certeza de que, enquanto houver opressão, haverá anarquistas dispostos a combatê-la — não apenas nas páginas de livros, mas nas ruas, onde a história realmente se escreve.
Liberto Herrera.
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agência de notícias anarquistas-ana
Pra que respirar?
posso ouvi-la, fremindo,
maciez de noite.
Soares Feitosa
ESTIMADAS, NA MINHA COMPREENSÃO A QUASE TOTALIDADE DO TEXTO ESTÁ MUITO BEM REDIGIDA, DESTACANDO-SE OS ASPECTOS CARACTERIZADORES DOS PRINCÍPIOS GERAIS…
caralho... que porrada esse texto!
Vantiê, eu também estudo pedagogia e sei que você tem razão. E, novamente, eu acho que é porque o capitalismo…
Mais uma ressalva: Sou pedagogo e professor atuante e há décadas vivencio cotidianamente a realidade do sistema educacional hierárquico no…
Vantiê, concordo totalmente. Por outro lado, o capitalismo nunca gera riqueza para a maioria das pessoas, o máximo que ele…