
Por Raúl Zibechi | 14/07/2025
Na cultura popular ainda ressoa aquele refrão cantado na Espanha republicana e revolucionária durante a guerra civil: “Que a tortilha vire, que os pobres comam pão e os ricos comam merda, merda”. Em muitas outras expressões da cultura popular rebelde aparecem imagens semelhantes, como em “O sonho do pongo”, de José María Arguedas.
A ideia de inverter a pirâmide tornou-se senso comum, tanto para quem quer escalar ao poder para usufruir dos benefícios de estar no topo, quanto para amplos setores populares que não veriam problema em uma inversão das coisas. Até mesmo no pensamento crítico progressista e de esquerda, esse modo de pensar se tornou senso comum, o que é muito mais grave, pois denota pouca vontade de transformar verdadeiramente o mundo, e não apenas ajustar alguns detalhes.
O recente comunicado do EZLN, “De gatos e pirâmides”, mostra a profundidade das reflexões, dos processos de transformação e da vontade de construir um mundo completamente novo que o zapatismo carrega. O raciocínio é impecável e profundamente radical, no sentido de ir à raiz dos problemas que enfrentamos.
“A pirâmide invertida é a base das propostas das vanguardas, das transformações, das evoluções e das revoluções”, lê-se na parte central. Virar a pirâmide, diz o comunicado, “soa bem”. Mas como a base da pirâmide é povoada por muitas pessoas, estas não podem tomar decisões, “então aparece a representação, e para isso existe a vanguarda, o partido político”.
Conclui-se afirmando que a pirâmide não se vira dessa maneira, mas sim reproduz outra nomenclatura: “as burocracias transformadas em partidos políticos”. Em resumo, apenas “uma troca de capatazes”.
Acredito ser necessário que as organizações populares e os militantes reflitam sobre essa análise, por várias razões.
A primeira é que o zapatismo, na prática, faz um balanço de um século de revoluções que, com o tempo, transformaram seus organismos coletivos em novas pirâmides. Portanto, essa “troca de capatazes” se repete incessantemente, gerando novas e dolorosas opressões, agora em nome da revolução, dos novos líderes e de um Estado-nação apenas maquiado.
Basta revisar o que cada uma das revoluções “vencedoras” fez para confirmar essa tese. Alguns analistas, como Immanuel Wallerstein, chegaram à mesma conclusão. Mas nunca antes um movimento que está transformando o mundo foi capaz de enxergar as coisas dessa maneira. Não é a mesma coisa uma análise teórica, por mais acertada que seja, e o fato de um movimento de milhares de pessoas questionar as formas piramidais de organização.
A segunda razão é que o zapatismo toma distância das vanguardas. Mas não apenas distância política; sobretudo ética, porque não quer reproduzir a mesma lógica de mandar no povo, de impor caminhos sem consultar, de tomar decisões em nome de quem não é considerado, mas paga com sangue a irresponsabilidade dos mandões. Aqui também aparece um balanço do que foi feito durante décadas pelas vanguardas latino-americanas.
Em terceiro lugar, as pirâmides são funcionais ao capitalismo. Como destacou Cornelius Castoriadis, o sistema pode ser resumido em um conjunto de pirâmides, a ponto de considerar as hierarquias como obstáculos para o desenvolvimento da autonomia individual e coletiva. O sistema capitalista pode negociar e concordar com pirâmides, mesmo que se digam revolucionárias, porque, do topo, o mundo é visto da mesma maneira. Os de cima se sentem confortáveis com outros que estão no topo.
Por último, e mais fundamental: uma das maiores grandezas do zapatismo reside no fato de estar trabalhando, aqui e agora, para construir novos mundos sem criar mais pirâmides. Uma coisa é pensar, dizer, proclamar. Outra, muito diferente, é fazer, com coerência e ética, para não repetir a “troca de capatazes”.
A mudança radical realizada ao pôr fim aos municípios autônomos e às juntas de bom governo, claramente explicada nos comunicados de dezembro de 2024 e janeiro de 2025, nos Encontros de Resistências e Rebeliões, ao destacar como estruturas criadas para funcionar de modo não vertical acabam se tornando pirâmides. Alguém poderia argumentar que o Exército Zapatista funciona de modo vertical. É verdade, como todo exército. Mas ele não impõe seus métodos aos governos locais e só intervém se for solicitado.
A capacidade de mudar o mundo ficaria muito limitada se não incluísse a transformação das próprias pessoas e coletivos que participam do esforço. Embora muitas vezes tenham mencionado o “homem novo”, as vanguardas agiram como se bastasse mudar o exterior, sem que elas e seus membros estivessem incluídos nessa transformação.
O zapatismo é o oposto disso. Seu enorme esforço para se transformar como pessoas e como força organizada continua sendo uma bússola para outras pessoas e forças anticapitalistas. Sua imensa capacidade de escuta contrasta com as organizações dispostas a “ditar regras” a todo momento e em todo lugar.
Fonte: https://desinformemonos.org/la-radicalidad-de-suprimir-las-piramides/
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Canta o bem-te-vi
no galho da goiabeira:
mesma saudação!
Ronaldo Bomfim
Um grande camarada! Xs lutadores da liberdade irão lhe esquecer. Que a terra lhe seja leve!
segue a página: https://urupia.wordpress.com/
Como ter contato com a comuna?
entra neste site: www.imprimaanarquia.com.br
Parabéns, camarada Liberto! O pessoal da Ana poderia informar como adquirir a obra. Obrigada!