por Lupe Cajías – jornalista e historiador
[No último 19 de agosto, o libertário Líber Forti completou 95 anos que festejou em seu lar cochabambino tomando mate com artistas, dramaturgos, gestores culturais, jornalistas e amigos que durante décadas gozaram de sua palavra lúcida e plácida.]
Ainda que ele rechace as homenagens, as elegias e meus artigos sobre sua trajetória – e por isso me desculpo de início – é uma esperança coletiva recordar que ainda existem seres humanos que viveram quase um século com os mesmos ideais dos anos mais moços, o amor pela cultura como instrumento de libertação, e com iniciativas para promover a ternura entre a humanidade.
De Tupiza a San Pedro
Líber é filho de um militante ítalo-argentino anarquista que, como muitos outros, teve que escapar da Argentina, perseguido por suas atividades sindicais. A mãe era uma lutadora dona de casa. Tinham uma livraria, um dos ofícios mais apreciados pelos anarquistas (gráficos, livreiros, impressor, bibliotecários) porque o contato com as letras impressas fomenta o conhecimento e a difusão das ideias revolucionárias.
Para Tomás, como para seu filho, facilitar a circulação de livros, folhetos, panfletos, era parte de uma opção de vida que une a estética da arte com a ética da opção pelos desterrados.
Líber aprendeu a ler e escrever em sua terra de adoção, Tupiza, localidade que desde o século XIX se distinguiu como centro cultural com a publicação de novelas, poemas, investigações e ensaios históricos, biografias e obras de teatro.
A recordação dessas primeiras letras o acompanhou sempre, enquanto lutava em outros países ou vivia como “croto” – aqueles mendigos que não pedem esmola e fazem da contemplação o maior exercício da liberdade – similar aos sufies.
Ao retornar a sua pequena pátria encontrou na estação de Sud Chichas o aviso do Club The Strongest para a apresentação de uma obra de teatro. A cumplicidade com outro ácrata, Alipio Medinaceli, floresceu na etapa mais doce da vida de Líber, a fundação do elenco teatral “Nuevos Horizontes”.
Depois, Líber viveu na região de San Pedro, em La Paz, fomentando veladas literárias radiais com outros companheiros e ali conheceu a jovens inquietas pela poesia como Chela Pando e Beatriz de La Veja. Começou seu trabalho de gerir espaços culturais nos sindicatos urbanos e rurais, que recém começavam a organizar-se no país, em fins da década dos anos 40.
Assessor cultural da COB
Faz algumas semanas dizia o presidente uruguaio, José Mujica, em Santa Cruz, que a principal tarefa do revolucionário é não cair na mesma mentalidade de acumulação de resíduos do capitalista – assim que tenham muitos ingressos econômicos – e melhor mudar o mercantilismo por uma visão humanista e respeitosa pela natureza. Com sua vida cotidiana, ainda dentro do poder, Mujica mostra que é possível ser austero e simples.
Líber fomentou entre os proletários a importância de unir à luta por melhores salários com a luta pessoal por ser livre de ataduras materiais, abertos ao saber e à arte, essência que distingue ao ser humano de outros mamíferos.
Ele sempre dizia que os dirigentes que chegaram ao combate desde a poesia ou desde o teatro eram menos suscetíveis ao clientelismo, à corrupção, à ambição.
Encontrou campo propício entre os mineiros, então operários ilustrados que davam horas livres à leitura coletiva de autores russos como Máximo Gorki, e outros escritores sociais e vanguardistas. Com “Nuevos Horizontes” percorreu os acampamentos desde Catavi a Villamontes e comprovou que o público de escassos recursos econômicos entendia perfeitamente complexos temas como os expostos em “Um trem chamado desejo”.
Com seu impulso, a Federação de Trabalhadores Mineiros da Bolívia convocou em 1963, e até os anos de repressão militar, congressos culturais, onde aqueles rudes e belicosos operários pediam aulas de xadrez, melhores filmes nos cinemas de suas localidades, programas culturais para sua rede de emissoras… Nenhum outro movimento sindical teve essas características na América Latina e quiçá em nenhuma outra parte do mundo. Juan Lechín e Victor López apoiaram sempre essas iniciativas gloriosas da época de ouro do proletariado boliviano.
Durante décadas, Líber foi, ademais, assessor cultural da Central Operária Boliviana (COB) e redigiu muitos de seus manifestos e comunicados, nos que é possível encontrar sua pegada porque junto ao protesto não deixa de mencionar a necessidade do abraço fraterno.
Incansável gestor
Depois da crise dos anos 80, Líber esteve em diferentes países do mundo. Retornou a lugares que o haviam acolhido nas épocas de exílio como Tacna no Peru ou em Paris, na França.
Também visitou sua terra natal, Córdoba, onde ainda vivem sua irmã e outros familiares. Voltou a Bolívia e voltou a Tupiza e finalmente estabeleceu sua casa (um dormitório e muitos livros) em Cochabamba.
Ao longo destas décadas não deixou de publicar a revista Teatro e de projetar diferentes espaços para a cultura. São gerações e gerações de artistas que o buscam para encontrar seu conselho, seu apoio. Ainda que ele identificou o Teatro dos Andes como seu herdeiro sempre respaldou a dezenas de jovens dramaturgos.
O amor livre
Como seguidor do ácrata espanhol-paraguaio Rafael Barret, sempre difundiu a ideia do amor livre, não em seu sentido de libertinagem ou falta de compromisso, mas em seu profundo significado de que o amor, se é amor de verdade, somente pode ser livre.
Durante boa parte de sua vida foi sua companheira a radialista Ana Santiago. Viúvo, se uniu a Nuria, editora espanhola. Agora, nonagenário enamorado, comparte suas tardes com Gisela Derpic, ex-prefeita de Potosí e alma sensível que alivia estes anos de velhice.
A nota feia
Infelizmente, em que pese todas as homenagens de Tupiza a Fortí, por algum projeto materialista, o município destruiu a famosa casa da rua Bolívar, na qual funcionou “Nuevos Horizontes” e a sala de espetáculos, que estreou a mais moderna cenografia de artes cênicas da Bolívia.
O consolo é que o ministro de Culturas, Pablo Groux, anunciou aos residentes tupiceños em La Paz que o Estado reparará de alguma forma este golpe.
Fonte: Página Siete
Tradução > Caróu
agência de notícias anarquistas-ana
chuva torrencial
sob a laje de concreto
um casal de pardais
Jorge Lescano
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!