Por Renato Dias
· Varlam Chalamóv foi preso por distribuir testamento de Lênin.
· Presos de consciência trabalhavam mais de 16 horas por dia, relata.
· Detidos comiam uma sopa e dormiam apenas quatro horas por noite.
· Autor enfrentou as dores de vinte anos nos campos de Stálin e Béria.
‘Um tempo onde somente era possível sobreviver por acaso.’
‘Não prevíamos a nossa vida nem para o dia seguinte.‘
‘Não nos preocupávamos nem mesmo em preservar a vida’
Varlam Chalamóv
Assim Varlam Chalamóv relata em ‘Contos de Kolimá’, volume I, com apresentação de Boris Schnaiderman e tradução e notas de Denise Sales e Elena Vasilevich, em 303 páginas, pela Editora 34, os horrores do Gulag, campos de trabalhos forçados à época do ditador comunista Josep Stálin. Um tempo onde somente era possível sobreviver por acaso. Não preocupávamos nem mesmo em preservar a vida, dispara o escritor russo, um entusiasta da revolução de 1917.
– Um testemunho da tragédia!
Ironia da História
A placa oficial da porta de entrada do Gulag tinha a seguinte frase:
‘O trabalhador é sinônimo de honra, glória, bravura e heroísmo.’
Montado por Lavrenti Beria, o temido chefe do NKVD, a polícia política secreta da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS], o Gulag era a prisão onde ficara Varlam Chalamóv, um filho de um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa, cuja iniciação marxista ocorrera na própria biblioteca do pai. Em 1924, ano da morte de Vladimir Ilich Ulianov, codinome Lênin, ele era estudante do curso de Direito da Universidade de Moscou.
Por distribuir cópias do testamento de Lênin, que pedia o afastamento de Stálin da Secretaria-Geral do PCURSS, ele acabou preso. O seu caminho era enfrentar o terror. Os seus contos são autobiográficos, anuncia Boris Schnaiderman. É a literatura do Gulag, atira. Esses contos enquadram-se, com toda a certeza, entre os documentos humanos mais fortes que o atribulado século XX nos legou, informa o especialista no Brasil em cultura russa.
Horror total
‘Contos de Kolimá’ foi muito bem equilibrado na precisa balança da intuição criativa, aponta Irina Sirontínskaia. Um horror que se tornou total e ordinário, explica. Com que facilidade o homem se esquece de ser um homem, anota o autor. A primeira prisão durou três anos. Varlam Chalamóv encontrou depois força para passar uma segunda vez por aquele inferno, escrevendo e vencendo o inferno com a sua criação. É impiedosamente verídico, frisa.
– Pior é achar que escrever signifique para o artista afastar-se da dor.
O autor nasceu em 18 de janeiro de 1907. Com a revolução de outubro de 1917, a sua família caiu na miséria. O irmão foi morto. O pai ficou cego. Varlam Chalamóv aderiu ao slogan ‘Abaixo Stálin’. O Estado Totalitário lhe condenou a três anos de prisão: 1929, 1930 e 1931. Com o terror deflagrado com ‘Os Processos de Moscou’, mais 17 anos sem liberdade. De 1937 a 1951 nos campos de concentração e de 1951 a 1956 no exílio.
– Em 1953 começou a escrever Contos de Kolimá.
Nada mais, nada menos do que 20 anos compondo esta epopeia, registra Irina Sirontínskaia. “Impregnada por sua vida, suas ideias, por seus sentimentos, por seu talento, por sua alma, pela lembrança dos vivos e dos mortos. Passaram-se outros 15 anos antes que, em 1989, saíssem na Rússia os primeiros livros de ‘Contos de Kolimá’: A Margem esquerda, 1989; A Ressurreição do lariço, 1989; Contos de Kolimá, 1991 e 1992; Obras reunidas, 1998”, frisa.
– Os campos de concentração não pertencem apenas ao passado.
Carrascos
Carrascos, a função dos carcereiros era vigiar os condenados pelo Artigo 58, Código Penal soviético de 1922, relativos a crimes políticos por atividades contrarrevolucionárias, narra Varlam Chalamóv. Trabalho diurno: na mina. Trabalho noturno: depois da mina, era preciso serrar árvores e rachar lenha para um dia. Antes de dormir, o faxina despejava em seus caldeirõezinhos uma sopa fria com um pedaço de pão.
– Comíamos no escuro.
No Gulag, o frio penetrava o corpo até os ossos:
– O cuspe congelava no ar.
Nunca havia lenha bastante, recorda-se o escritor. O frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe em gelo no ar, atingia a alma humana. Um dia resumia-se a 16 horas de trabalho braçal. “Não tinha vontade de comer (…) Comia porque via os outros comendo”, fuzila. Os presos de Josep Stálin viviam encharcados de água. Há muito estávamos encharcados, não posso dizer até a roupa de baixo porque não tínhamos roupa de baixo.
– Não podíamos sair dos poçocs, senão seríamos fuzilados!
Morte & vida
Faminto e irritado, eu sabia que nada no mundo me faria cometer suicídio, escreve. Acomodava apenas raiva, o sentimento humano mais duradouro, afirma. Tínhamos compreendido que a morte não é nem um pouco pior do que a vida e não temíamos nem uma nem outra, observa. Com os anos passados no campo [De trabalhos forçados e de redução política aos cânones do totalitarismo], expiávamos todos os nossos pecados”, relata.
– Aprendemos a nos satisfazer com pouco, a nos alegrar com pouco!
Capturávamos ratos, corvos, gaivotas, esquilos, informa. Segundo ele, a carne de qualquer animal perde seu odor específico quando é enterrada antes de ser comida. Trocando em miúdos: Varlam Chalamóv entende que só era possível sobreviver por acaso. É como se “o ser humano se alegrasse com a própria capacidade de esquecer”. Além disso, tinha o ar pestilento da cela da prisão, que cheirava a fenol e suor humano, relembra o autor em ‘Contos de Kolimá’.
– No inverno, tudo congelava. (…).
Trabalhávamos dezesseis horas, registra. As cotas eram calculadas para dezesseis horas, frisa. Para o sono, sobravam quatro horas, emenda. Preto no branco: o não cumprimento das cotas era castigado com restrições de ração, diz. O escorbuto era generalizado, assim como a desinteria, pois comiam tudo o que encontravam. “Na tentativa de encher o estômago doído de fome, catando restos de cozinha e dos montes de lixo cobertos de moscas”, pontua.
– O ar livre dos Gulags era mais perigoso para a saúde do que a prisão. (…) Vi muitas mortes humanas…
Os músculos dos braços e das pernas de Varlam Chalamóv eram “finos como barbantes”. Doíam surdamente, recorda-se. Já os dedos congelados comichavam. O cansaço, porém, era mais forte do que a dor. Ao término de sua pena nos campos de trabalhos forçados, ele fez um curso de enfermagem. Mas as feridas da alma não cicatrizavam tão facilmente.
– Não cicatrizaram nunca.
As tradutoras
Denise Regina de Sales é doutora em Literatura e Cultura Russa na Universidade de São Paulo [USP] e trabalha atualmente como professora de Língua e Literatura Russa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Já Elena Vasilevich nasceu na Rússia, em São Petersburgo, e vive no Brasil desde o ano de 2007. É formada em Letras pela Universidade Estatal de Leningrado, em que também defendeu a sua dissertação de mestrado baseada na obra de A. P. Tchekhov, além de ter trabalhado como arquivista em Ialta, na Crimeia.
Serviço:
Livro: Contos de Kolimá
Volume: I
Número de páginas: 303
Autor: Varlam Chalamóv
Apresentação: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Tradução e notas: Denise Sales e Elena Vasilevich
Fonte: http://www.dm.com.br/politica/2016/01/a-tragedia-nos-gulags-a-epoca-do-stalinismo.html
agencia de notícias anarquistas-ana
Mesmo molhado.
Resplandece ao pôr do sol,
o campo de algodão.
Paulo Franchetti
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!