O Centro Social Autônomo Klinika [Autonomous Social Centre Klinika], que ocupa o prédio de uma antiga clínica em Praga, tem atraído um grande número de apoiadores e recebeu um prestigioso prêmio. No entanto, seu futuro permanece incerto.
Desde 1987, a Charter 77 Foundation tem concedido anualmente o František Kriegl Prize na República Tcheca. O prêmio é uma lembrança da brava atitude do político František Kriegl, da Tchecoslováquia, que se recusou, como único membro da elite política da época, a assinar o Protocolo de Moscou depois que o país foi invadido pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 1968, e, assim, a legitimar a ocupação da Tchecoslováquia pela União Soviética. A missão atual do prêmio é destacar atos exemplares de coragem expressados por indivíduos ou instituições cívicas na busca da defesa dos direitos humanos e civis e da tolerância política. Seus resultados são anunciados a cada ano no dia 10 de abril, dia do nascimento de František Kriegl. Nesse ano, o prêmio foi dado ao coletivo do Centro Social Autônomo Klinika, localizado no distrito de Žižkov, em Praga.
Seus ativistas agora estão ao lado de figuras tais como o dissidente tcheco Jaroslav Šabata, a principal estudiosa dos Roma [um povo cigano], Milena Hübschmannová, ou o anarquista Jakub Polák, todos os quais receberam o prêmio anteriormente. Sem dúvida, ele é uma das provas mais reveladores da importância e necessidade social do Centro Social Autônomo. “Klinika vive, a luta continua”, diz o slogan do movimento que surgiu em torno do Klinika no ano passado. Mas apesar do prêmio e da forte impressão que o Klinika deixou, o futuro do centro, simbólica e fisicamente conectado ao prédio de uma antiga unidade de saúde em Žižkov, na cidade de Praga, ainda é incerto.
Ao fim de novembro de 2014, um grupo de ativistas conduziu a ocupação do prédio de uma antiga clínica de pulmões em Žižkov. A antiga área de classe operária se tornou, assim, a acolhedora de um centro social autônomo ligado ao movimento anarquista tcheco. Uma série de centros similares a esse já haviam existido em Praga, e a chegada dos okupadores em Žižkov construiu também simbolicamente as atividades dos anarquistas de Žižkov no início do século XX. Nessa época, o coletivo Black Hand ocupava apartamentos vazios e os entregavam para famílias de trabalhadores. Na era pós-1989, a mais famosa okupa tcheca era provavelmente o Ladronka, que existiu no parque Břevnov, em Praga, por sete anos. Os despejos de okupadores em 09 de novembro de 1999 basicamente acabou com a era dos “dourados anos 1990” da cena subcultural de Praga. O Centro Social Autônomo Klinika (que significa “clínica” em tcheco) trouxe mudança ao movimento tcheco das okupas. Os tempos dos centros culturais mente aberta dos anos 1990, cujas existências foram muitas vezes justificadas apenas pelo ethos da cultura rave e pela luta pelo “direito de festejar”, já se foram. Como resultado, a cena se tornou muito mais politizada.
Na última década, a relação da cena política tcheca com as okupas foi marcada principalmente pelas severas medidas repressivas e pelo inescrupuloso comportamento da polícia. A convicção de que a inviolabilidade da propriedade privada é o pilar principal (ou praticamente o sintoma) de uma sociedade livre certamente também teve seu papel. Mesmo a okupa com a mais longa duração, o Milada, próximos aos dormitórios universitário em Trója, pôde durar mais de 11 anos apenas por conta de uma falha administrativa, de acordo com a qual o prédio na verdade não existia legalmente. Ativistas conseguiram ocupar alguns outros prédios, ainda que a ocupação de apenas um deles – o “castelo” de Cibulka – sobreviveu mais do que alguns dias, graças às negociações com seu dono. Mas mesmo Cibulka está hoje vazio há um ano.
No final do verão de 2013, um evento de um dia com o nome Memórias do Futuro foi realizado em Praga, e dele participaram alguns coletivos autônomos, incluindo aquele que hoje forma o núcleo do Klinica. Oito prédios abandonados foram simbolicamente ocupados por um dia e hospedaram uma programação cultural variada. Os ativistas, assim, chamaram atenção para o fato de que há um número de prédios valiosos em localizações lucrativas no centro de uma das mais ricas cidades europeias, cujos donos estão deliberadamente deixando cair em desuso para justificar sua demolição, o que permite que prédios comerciais sejam construídos no seu lugar. O acontecido voltava-se principalmente para o problema da especulação imobiliária, problema com o qual Praga vem sofrendo há alguns anos.
Os ativistas construíram seu argumento a partir de um trecho da constituição que diz que “a propriedade é obrigatória” e não é possível deixar prédios – que muitas vezes são propriedades protegidas como patrimônio histórico – entregues ao seu destino. Um importante tema subjacente ao evento era também o aumento do número de pessoas sem abrigo. A discrepância entre o número de edifícios vazios e de moradores de rua, que podem encontrar pelo menos um refúgio temporário nessas propriedades, tornou-se uma questão atraente retomada pela grande mídia tcheca. A reputação dos okupadores como “vagabundos e drogados imundos que vão se acumular nas salas das pessoas assim que elas saírem de férias” começou lentamente a mudar.
A ocupação do Klinika em novembro de 2014 trouxe uma nova reviravolta. A propriedade ocupada pertence ao Estado, o que enfraqueceu a posição do argumento da propriedade privada. O edifício abandonado da antiga unidade de saúde na rua Jenesiova tem estado sob os cuidados do Instituto de Representação do Governo em Assuntos de Propriedades e a casa tinha ficado vazia desde 2009. De fato, a anarquistas ocupadores que chegaram perigosamente próximos das opiniões de alguns libertários, que vêem o Estado como um obstrutor instrumento de burocracia, incapaz de lidar efetivamente com a propriedade. Talvez seja também por isso que o assunto ressoe dentro da sociedade tcheca com uma intensidade sem precedentes. Figuras significativas da vida cultural tcheca saíram em apoio ao coletivo Klinika nos seus primeiros dias – por exemplo, Vratislav Brabenec, da lendária banda underground Plastic People of the Universe, ou o diretor de cinema Petr Zelenka.
Nos primeiros dez dias durante os quais a casa foi ilegalmente ocupada, ela passou por uma visível transformação. Os ativistas compraram contêineres de resíduos e juntaram forças para limpar a propriedade. O que anteriormente era uma ruína cheia de excrementos e seringas se tornou um espaço habitável, que passou a oferecer uma programação diária – de leituras de poesia até palestras, shows e exibições de filmes. Mesmo os residentes locais estavam no centro das coisas, e, pela primeira vez em muito tempo, praticamente qualquer pessoa podia vir experimentar por si mesmos o que os ideais abstratos do movimento dos okupas realmente significavam.
Essa mudança das táticas, mesclada à mudança da retórica, deu seus frutos. Depois de um despejo inicial dos ativistas, a primeira manifestação em apoio ao Klinika atraiu mais de 1.000 pessoas. A administração local da Praga 3, onde o Klinika está localizado, e particularmente o líder atual do Partido Verde tcheco, Matěj Stropnický, participaram das negociações sobre o futuro do uso da propriedade. As atividades anteriores de Stropnický já indicavam que ele pretendia lutar contra a influência de grupos de poder – em particular os construtores – no seu distrito e assim permitir aos residentes que participassem dos processos de tomada de decisão sobre seu ambiente imediato. É também graças a Stropnický que os ativistas puderam, depois de um mês de negociações, começar a conduzir o Centro Social. Praga 3 ainda firmou um contrato de um ano com os ativistas, legalizando temporariamente a ocupação da antiga clínica.
Desde o início, o Klinika funcionou como um projeto aberto, participativo e inclusivo. Centenas, ou mesmo milhares de pessoas, se envolveram com ele. A fim de desafiar a “lógica” do mercado, os serviços e atividades oferecidos pelo Centro, bem como quaisquer remodelações e alterações na propriedade, eram executadas de graça por uma base de voluntários. Depois de uma série de turnos de trabalhos voluntários públicos e de captação de recursos, que forneceram fundos para realizar consertos, bem como uma disposta força de trabalho, o coletivo lançou uma programa regular com acréscimos diários. O Klinika introduziu um projeto de universidade “de rua”, ao qual se juntaram acadêmicos tchecos. O Centro manteve cursos de língua tcheca para estrangeiros, realizou uma oficina de conserto de mobília, abriu uma biblioteca pública e ofereceu instalações para pessoas sem lar. O Centro também tornou seu local disponível para outros coletivos, que expandiram o portfólio de atividades oferecidas, incluindo uma freeshop, o centro de crianças MamaTata e uma lavanderia social.
O coletivo operou dessa maneira mais ou menos sem qualquer problema até agosto do ano passado, quando uma crise humanitária se desenrolou nos Bálcãs e na Hungria como resultado da migração de refugiados dos países devastados pela guerra. Naquela época, os ativistas do Klinika organizaram uma arrecadação para ajudar os refugiados. Um inicialmente inofensivo status de Facebook logo transformou-se numa iniciativa humanitária que se estendeu por todo o país. O prédio literalmente transbordou com coisas que levaram várias semanas para serem organizadas, com as doações colhidas sendo constantemente enviadas para campos de refugiados na Hungria e na Servia, bem como para os centros de detenção tchecos. Essa foi uma iniciativa do Centro Autônomo, que deu o pontapé inicial para a onda espontânea de ajuda tcheca aos refugiados.
Mas quanto mais séria se tornava a situação em torno da crise dos refugiados, mais a sociedade tcheca testemunhava um crescimento da xenofobia e da islamofobia, e o Klinika mais chamava a atenção da direita radical. Ameaças e intimidações ao coletivo ocorriam diariamente, e toda a situação intensificou-se na primeira semana de fevereiro desse ano. Uma manifestação da organização alemã Pegida e de sua equivalente tcheca, Nós Não Queremos o Islã na República Tcheca [We Don’t Want Islam in the Czech Republic] – a qual está hoje preparando-se para eleições locais nesse outono –, aconteceu na praça em frente ao Castelo de Praga. Um grupo de hooligans atacou a marcha da iniciativa Não ao Racismo [No to Racism] e provavelmente as mesmas pessoas que a atacaram jogaram pedras e inflamáveis no prédio do Klinika poucas horas depois. Havia cerca de 20 pessoas no prédio nesse momento. Felizmente, apenas uma delas ficou levemente ferida.
Paradoxalmente, o coletivo Klinika – as vítimas do ataque do incêndio – foram escalados como os perpetradores da situação, enquanto os partidos de direita de Praga competiam para ver quem poderia ganhar mais poder político a partir desse incidente violento. O prefeito de Praga 3, Vladislava Hujová, do partido liberal-conservador TOP 09, e outros membros do conselho local, rotularam os ativistas como uma ameaça sem precedentes à segurança dos residentes locais. Eles basicamente desenharam um sinal de igualdade entre o coletivo Klinika e os neonazistas e começaram a defender o fim de todo o projeto. Deve-se notar também que desde esse dia nenhum dos agressores foram presos ou acusados.
A luta burocrática seguinte no intuito de expulsar os ativistas do prédio da antiga clínica assemelha-se à obra literária de dois nativos de Praga – Kafka e Hašek. O conselho de Praga 3 argumentou, por exemplo, que não prolongava-se o contrato do Klinika porque o local foi aprovado para que nele funcionasse uma unidade de saúde, e não poderia ser usado para quaisquer outros propósitos. As investigações de Matěj Stropnický, no entanto, mostraram que, graças à decisão de um certo Partido Comunista oficial nos anos 1960, o prédio nunca recebeu um certificado de ocupação.
Durante as indignas negociações do conselho local sobre o destino futuro do Klinika, Lýdie Říhová, do partido cristão-conservador KDU-ČSL, declarou que o conselho está atualmente decidindo se Praga vai se tornar mais como Berlim ou como Moscou. Seu apelo não foi ouvido pela maioria dos conselheiros, que se alinharam mais com a última opção. Mas a luta continua.
Durante o primeiro ano de sua existência, o Klinica se tornou um símbolo de resistência contra as tendências crescentemente conservadoras e autoritárias da sociedade tcheca. Essas também formaram o contexto para a forte pressão política e a interminável busca por complicados meios de se livrar do Centro Social. Se um prédio vazio pode balançar o chão sob os pés de políticos tchecos, não é difícil de imaginar que tipo de terremoto a realização do slogan “Cada cidade precisa de seu próprio Clínica” causaria. Um grande número de políticos tchecos tem gerado enormes esforços a fim de certificar-se de que um grupo de jovens idealistas ajudando refugiados e constantemente repetindo a ideia de que “um outro mundo é possível” não serão capazes de permanecer numa casa que nenhuma instituição de propriedade privada quer. Mas o Klinika reuniu pessoas suficientemente determinadas, que agora possuem o poder político para mostrar que o prédio em si mesmo, na verdade, não é tão importante quanto deixar os políticos ruidosamente saberem que seus ideais não serão facilmente expulsos.
Fonte: http://politicalcritique.org/cee/czech-republic/2016/you-cant-evict-ideas/
Tradução > Jorge Holanda
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