Negros, Selvagens e Anarquistas

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1. Negro e Anarquista

Negro, anarquista, anarquista e negro. São sinônimos alternados, sinônimos do terrível. Durante séculos, ambos os substantivos têm recolhido todos os atributos do negativo, do demoníaco, do perverso, da maldade.

Poderosos, políticos, proprietários, sacerdotes, proprietários de terras, intelectuais, filósofos, ricos. Todos têm utilizado um ou outro termo para designar os perigos da ausência de ordem. De que ordem? Da sua, por suposto. A pessoa negra e a anarquista, especialmente em toda a extensão americana, têm crescido como sujeitos de alteridade, o perigo a vigiar.

Do Alasca à Terra do Fogo, negros e anarquistas têm sido vilipendiados, marcados, linchados, julgados pelo estado, fuzilados pelos exércitos de todas as matizes políticas. Marcados com o estigma do negativo.

Mas talvez se devesse perguntar primeiro ante a estes substantivos: O que é negro? O que é anarquista? Estas perguntas aparentemente claras hoje em dia, científicas, estudadas, não o eram há apenas algumas dezenas de anos. Sob nossa concepção de políticas identitárias, de auto-atribuição, diríamos que negro ou anarquista são aquelas pessoas que se consideram como tais. Mas e ontem? Coloquemos um exemplo: Eu, cujos antecedentes familiares vem diretamente do Brasil, com uma avó descendente de brancos e negros, seria, sob a legislação de Louisiana, negro e por isso submetido a mais brutal segregação e menosprezo. Durante toda a minha vida teria sido considerado cidadão de segunda categoria. Não olhem minha cor de pele, nem minha fortuna ou cultura. Sob este regime democrático teria sido segregado, condenado a viver em bairros inferiores, sem direito a entrar em boas universidades, sem acesso possível aos melhores trabalhos. De fato qualquer negro estadunidense carecia até meados do século XX dos mais elementares direitos. Aqueles que exultantes proclamavam a república das liberdades estadunidenses para meio mundo, incluso Porto Rico e Cuba, tinham sua população submetida.

Quem é negro? Negro é quem o estado diz que é negro.

Ao ler o dicionário, o que é negro?:

“Enegrecido, inclinado para o preto. • Niger, gra, grum. Cic. Negro , de cor negra , obscuro. E Hor. Sombrio, opaco, escuro. || Juv. Mau, danoso, prejudicial. || Tib. Azarado, de mal agouro, infeliz. || Es- tac. Triste /lamentável. Niger est. Cic. É um mal.”

“Noi, s.m Negro; a cor negra. Negro: se diz do escravo negro nos trabalhos das colônias, com relação ao trabalhador branco, e livre; mas tomado absolutamente como negro africano, se diz negre. Não conhecer as letras, não saber ler Vender du noir: vender fumo.”

Negro é a força de trabalho submissa, regulada. Negro é a substância da biopolítica. Negro é quem o estado diz que é negro. Leiam a Racial Integrity Act, ativa no século XX – não é uma legislação nazista, é estadunidense – ou o artigo primeiro do capítulo terceiro do Código de legislação para o governo moral, político e econômico dos negros da ilha espanhola.

“E sendo necessário para este efeito fazer antes de todas as coisas uma divisão oportuna de suas raças ou gerações para as classes e censos em que devam se distribuir, e para a justa regulação dos direitos civis, conceito e graduação que devem ter na ordem pública e nos ministérios e ofícios a que segundo suas diversas classes devam se destinar, dividiremos sua população. Primeiramente em negros escravos e livres, e estes em negros, e mulatos ou pardos. A saber, filhos de branco e negro legitimamente casados, que será a primeira geração, e segundo grau com respeito a pardo, de cujo matrimônio com pessoa branca resultará no terceiro grau, chamando-se os filhos terciários: quartenários os destes com uma pessoa branca; mestiços os netos de pessoa também branca, e filhos de mestiços os bisnetos que estão no sexto grau de geração legítima, e deverão ser vistos por brancos, se em nenhuma delas houver sido interrompida a ordem predefinida (em cujo caso, retrocederá a geração, segundo a qualidade da pessoa que a inverter), sendo justo que a sociedade cuja população e benefício contribuíram com seus serviços os recompense e premie, elevando-os alguma vez à hierarquia de sua principal esfera; na qual terá ainda o maior interesse sendo apreciável por tão recomendável estímulo a miserável condição dos escravos”.

Negro é o incivilizado, é o sujeito a catequizar. Imbecil que há que se educar. A criança boba a ensinar. Negro é uma raça subalterna. Um povo idiota e atrasado. Negro é como dizem Tocqueville ou o ex-presidente brasileiro Manuel Deodoro Fonseca, um povo que se extinguirá na América pelo mero atuar do progresso.

E o anarquista? Leiam os escritos dos padres fundadores de todas as nações americanas. Releiam Bolívar, Santander. Todos eles conjuram a anarquia como o pior dos demônios. Anarquista é o inimigo da liberdade, por que esta é a ordem, a ordem de privilégio dos dominadores, entendemos:

“Considere-se, legisladores, que a energia na força pública é a salvaguarda da fraqueza individual, a ameaça que aterra o injusto, e a esperança da sociedade. Considere-se, que a corrupção dos povos nasce da indulgência dos tribunais e da impunidade dos delitos. Veja, que sem força não há virtude; e sem virtude perece a República. Veja, enfim, que a anarquia destrói a liberdade, e que a unidade conserva a ordem. Legisladores! Em nome da Colômbia os rogo com orações infinitas, que nos dê, à imagem da Providência que representam, como árbitros de nossos destinos, para o povo, para o Exército, para o juiz, e para o magistrado: Leis inexoráveis!!! ”Veja que sem força não há virtude; e sem virtude perece a República. Veja, enfim, que a anarquia destrói a liberdade e que a unidade conserva a ordem”. Simón Bolivar

Voltemos ao dicionário:

Anarquista, m: Partidário da anarquia, instigador de distúrbios e tumultos. Anarquia, Estado sem chefe, sem cabeça, sem governo. Grande desordem, confusão de poderes.

Ou no dicionário de simbolismos:

“Anarquia Pode ser representada sob a figura de uma mulher cuja atitude manifeste o furor, com os olhos tapados com uma venda, os cabelos e vestidos desordenados, e pisando com os pés no livro da lei, colocado sobre um feixe de varas símbolo da união. Com uma mão a Anarquia deve empunhar um punhal, e com a outra uma tocha acesa, aludindo aos temores que ela causa. Um centro destroçado e um jugo quebrado acabam de caracterizá-la. No fundo do quadro pode ser representado um combate entre cidadãos, cujas lanças e armas extravagantes indiquem as insurreições populares; vendo-se ao fundo uma cidade incendiada”.

Negra e Anarquista, substância de maldade, de desordem. Substância dócil, redutível. Negros e anarquistas se encontram sob o regime terrível do colonialismo junto a índios irredutíveis, selvagens.

“Não tardaram os selvagens que haviam permanecido na promiscuidade de bens e de mulheres, e na anarquia que era sua consequência, em refugiar-se em aliados dos fortes, nas alturas em que as primeiras famílias haviam se reunido sob o governo dos pais de família”

Povos selvagens são aqueles que rechaçam a propriedade, aqueles que rechaçam a delimitação da terra, dividir e submeter ao critério produtivo e racional dos colonos. Recordemos a sentença do juiz Marshall, nos Estados Unidos. Nela fica claro que os povos selvagens, os povos que não se apropriam da terra, os povos nômades que vagam pelo mundo, não tem mais direito sobre a terra que pisam, embora tenham estado por gerações, e o colono recém-chegado os expulsa dela. Recordemos de Sarmiento, recordemos toda a campanha do Deserto, seu discurso genocida: Ali não há ninguém, embora houvesse, por que já havia planejado de antemão seu extermínio:

“…o deserto a rodeia por todas as partes, e se insinua nas entranhas; a solidão, o despovoado, sem uma habitação humana, são, pelo geral, os limites inquestionáveis entre umas e outras províncias”.

Na literatura da época, republicana, formal, racional e científica fica clara a mensagem; É preferível o despotismo assassino e a liberdade dos selvagens:

“Sabemos que muitos imperadores romanos tenham sido os mais horrorosos tiranos, e que compadeciam em derramar o sangue de seus vassalos, pois bem mais vítimas caem em um ano na Nova Zelândia e em outros países selvagens pela anarquia em que vivem, que caíram proporcionalmente em dez anos em todo aquele dilatado império”.

Como não iriam nossos pais fundadores condenar a anarquia e a ausência de propriedade dos selvagens, sendo os crioulos como eram uma quadrilha de escravistas criminosos organizados para acumular capital? Como não iam temer toda essa investida da “pardocracia”, que assim a chamou Bolívar em sua carta a Santander, quando eles mesmos eram da classe que gozava do privilégio racial, do privilégio de classe? Recordamos das palavras de Miranda, ante ao temor de um novo Haiti de dimensões continentais:

“Não queira deus que estes bonitos países tenham a sorte de Santo Domingo, teatro de sangue e crimes sobre o pretexto de estabelecer a liberdade; antes valeria que ficassem um século mais abaixo da opressão bárbara e imbecil da Espanha”.

Porém seria injusto dizer que nossos pais eram racistas. Certamente o eram, porém com limites. Os de seu próprio benefício. Aos selvagens, negros e anarquistas, havia que matá-los… Porém só um pouco, o suficiente para tê-los situados fora da linha do ser, fora da linha de privilégio. A estratégia de poder foi bem clara, construir categorizações, construir identidades subalternáveis, subjetiveis, úteis à hierarquização do modelo colonial capitalista. Aos que entravam dentro dessa linha de subjetividade que estão fora de serem expulsos do privilégio, não se os condenava por toda a eternidade não. A civilização branca, ilustrada, racional, patriarcal, a civilização escravista das luzes, lhes propunha a salvação, a redenção racial, ideológica e cultural. E o fez por meio dos cárceres, fábricas, plantações e reformatórios. O fez por meio de guetos, espaços para negros, reduções de índios, como em campos de concentrações.

Esses eram os lugares para civilizar esses insolentes vagabundos. Tanto faz se fosse abaixo de um contrato de escravidão, do patronato, ou nos modernos cárceres norte-americanos. O negro, o selvagem, o anarquista, deverá trabalhar sob à ameaça coerciva do estado dos brancos, do estado de privilégio. Essa é a única razão de sua existência: estar submetidos.

Os negros podem melhorar, sempre que estejam sob a tutela dos brancos, dos ricos:

“A força só ordena e civiliza os povos selvagens, e a força só ordena e organiza os povos de uma cultura adiantada, desquiciados pela anarquia e as más paixões”.

“Creio que os negros são suscetíveis de todas as melhoras morais e intelectuais; porém também é evidente que em um estado de servidão se vejam na condição das tribos selvagens, tanto em seus hábitos como em seu caráter”.

E se não leem os títulos dos jornais, leiam o que se passa com os negros quando não se deixam governar pelos brancos:

A TERRA CASTIGA O HAITI – Violência e anarquia no Haiti.

Centenas de lojas, escritórios e residências foram saqueadas em Porto Príncipe diante da impotência policial. Ao menos dois homens foram abatidos a tiros quando foram surpreendidos roubando, e outro foi executado por haitianos na rua.

2. História Irredenta

Mas de onde sai essa concepção de que a anarquia, de que o negro, de que o selvagem é a realização do mal? Para responder, temos que olhar para trás, não para as concepções e propostas científicas do século XIX com sua moral burguesa, mas sim para as experiências de vida e de resistência dos povos contrários ao colonialismo.

Sejamos justos, sejamos sinceros. As primeiras independências modernas da América foram realizadas por bandidos, por desertores, por piratas, por ladrões, por inimigos da propriedade. Não olhem para o Haiti nem para os Estados Unidos. Olhem para o Quilombo de Palmares no Brasil, olhem para a Ilha Tortuga. Essas ilhas, geográficas ou metafóricas, repletas de bucaneiros, traidores, miseráveis, escravos, párias. Essas ilhas de deserdados. Essas ilhas de negros e anarquistas, de inimigos of all mankind. De sujeitos culturalizáveis, de povos contra os quais se pode declarar guerra justa.

As leis de fraternidade dos irmãos da costa, da Ilha Tortuga, questionaram a propriedade privada e aboliram os privilégios de raça, religião ou classe. Não estavam a sós desde o começo. Petern Linenbaught e Markus Rediker traçaram uma brilhante contra-história do Atlântico. Uma história narrada das experiências libertárias coletivas das massas anônimas resistentes ao colonialismo. Um arquipélago de palenques, comunidades, quilombos. Refúgios de negros, de selvagens, de anarquistas.

Um mundo de solidariedades entrelaçadas sob a mesma experiência à submissão, e que só puderam ser interrompidas diante da criação artificial de figuras raciais privilegiadas. O negro como figura jurídica subalterna foi inexistente no mundo colonial inglês até que as crescentes revoltas executadas por escravos negros e servos contratados irlandeses o fizeram temer a destruição das colônias. As autoridades coloniais, conscientes da potência da aliança comum dos subalternos, foram concedendo determinados privilégios aos “brancos” para romper com a solidariedade dos submissos.

Enquanto o Brasil burguês e independente seguia traficando escravos, os cangaceiros, comunidades auto-organizadas de bandidos, sem preconceito algum de raça, classe ou religião, atacavam os interesses do estado, roubavam os ricos.

O estado da anarquia, esta temível situação, não era nada além do momento rebelde no qual os despossuídos se lançavam e cortavam o pescoço de seus dominadores. A anarquia se converteu em desqualificador na boca dos “libertadores” como Bolívar. Anarquistas, diziam os parlamentares conservadores àqueles que defendiam uma abolição imediata e sem concessões. “Anarquia é o que pretendem libertando aos escravos”, diziam os delegados dos proprietários de Saint Domingue na Assembleia Nacional Francesa. Anarquista passou a definir todo o inimigo do Estado Colonial Escravista.

Negros, selvagens e anarquistas conspiraram juntos, respiraram o mesmo ar de liberdade nesse espaço que mediava entre Madrid, Havana e Manila. Libertário foi Fernando Ortiz, independentista filipino. Conspirador na “Villa y Corte”. Rebelde em Havana.

Anarquistas eram os espanhóis confederados contrários ao regime colonial de Cuba e seu negócio escravista criminoso. A burguesia catalã, rica, empreendedora, dona dos interesses dos mercados de carne, era até então pouco partidária da independência da Espanha. Esta burguesia, como a criolla, defendia o regime de tirania sobre Havana e Porto Rico. Diante da burguesia, uma cada vez mais extensa rede de conspiradores, de solidariedades que atravessavam fronteiras, a questionava. Já então se falava do perigo latino, da Itália até Nova Iorque, de Buenos Aires ao México, os burgueses apontavam a esses demônios:

“Muitos outros crimes, menores, mas não menos atrozes, foram cometidos por anarquistas latinos, em todos os… hoje em dia, não obstante a perfeição da sua organização policial, tremem de terror diante destes mesmos anarquistas selvagens.”

Anarquistas, negros e selvagens eram os inimigos do poder colonial.

3. O século XX

O século XX traz consigo a fratura da solidariedade e da diversidade. O governo do privilégio racial foi a norma em toda a América. Desde a Argentina até o Canadá, as classes operárias “brancas” foram privilegiadas. O discurso biologicista pegou fundo e a hierarquização racial, inclusive em realidades “mestiças” como a mexicana, foi uma norma. Norma até mesmo escrita como nos Estados Unidos, onde a segregação racial chegou a seus extremos no primeiro quarto de século.

Boa parte do anarquismo doutrinal operário caiu também presa pelos ditames ocidentalistas, presa pela enunciação científica e doutrinária relacionada ao desenvolvimentismo. Como ideologia estabelecida, chegou a converter-se em mais um elemento do privilégio branco, que era o de poder conceder-se o luxo de rechaçar a tudo. Um anarquismo sem força, sem potência, um anarquismo moralista e civilizador, que questionava também todo feminismo que não fosse o seu, branco ocidental. Anarquismo que criticava toda dimensão espiritual que não fosse ateia. Um anarquismo colonial.

Mas por trás do discurso geral, por trás do discurso de estado, por trás do discurso das democracias raciais seguiam pulsando os espíritos libertários irredentos a toda hierarquização que fosse racial, que fosse de classe, que fosse de cultura ou de gênero.

Esse discurso de aliança libertária se fez presente em muitos marxismos não ortodoxos dos anos 60. Pensemos na frutífera aliança que vinculou diferentes movimentos brancos dos Estados Unidos junto com os Black Panthers. A luta operária transversal no Brasil. As alianças de grupos anticolonialistas franceses com seus irmãos argelinos. A Facção do Exército vermelho e sua relação com a luta palestina. E já longe de toda essa cena que conhecemos, as lutas de bairros marginais. Os “Up Against the Wall Motherfuckers” de Nova York, os motoristas negros de Oakland; os legendários Dragões da Baía leste. No Brasil, em torno da arte, mas ultrapassando-a, surgia o Teatro Experimental Negro. Um grupo que reivindicou a afrodescendência e a projetou politicamente por meio de publicações como Quilombo. O negro era belo, o negro era rebelde.

Por sua vez, o anarquismo sofreu uma profunda revisão quanto teve seu amoroso encontro com o indigenismo. Já havia tido algumas experiências anteriores com Magón, e intelectualmente com Artaud. Juntos se engajaram numa viagem ecologista, questionadora do antropocentrismo e que, do mesmo modo, recuperava tradições.

Algumas destas tendências anarquistas-indigenistas acabaram sob a forma new wave, um hippismo redutível pelo capital. Mas a grande maioria vinha crescendo intelectualmente, alimentando uma visão crítica do papel do anarquismo, do papel das massas nos processos de emancipação e nas lutas coloniais. O encontro entre o anarquismo e as lutas de povos originários levou a discussão confrontadora do privilégio racial a um novo plano, onde nem tudo se reduz à luta pelos direitos civis, mas vai mais além. O encontro de toda uma constelação de cosmovisões indígenas com as tradições libertárias de matriz europeia levou finalmente ao início de um necessário processo de descolonização destas. O comum se afastava da produção. A organização política se afastava da fábrica para encontrar-se com a vida. O materialismo ensinou ao anarquismo que a dominação não só acompanha o Estado, como também o seu espírito colonial.

O anarquismo descolonizado pelos movimentos indígenas pretende não somente a igualdade ou equidade, mas sim o desmantelamento dos estados coloniais, dos aparatos extrativistas. As lutas vivas que sacodem o Canadá, Alasca, que são vividas na Califórnia, em Sonora. Lutas que tem ecos e reverberações zapatistas demandam não somente o fim do privilégio racial, como também uma nova forma de compreender a sociedade muito além dos Estados, das nações, e indubitavelmente do capital.

4. Hoje em dia

Hoje em dia, vivemos uma situação crítica. O aparato colonial capitalista dominador patriarcal se rebuliça mais do que nunca em sua violência. As ruas do Brasil pobre foram militarizadas, são campos de guerra, territórios de exceção onde os jovens negros são massacrados sem discussão. O sistema carcerário estadunidense vigia os jovens negros que preda. Angela Davis apontou a clara continuidade do modelo escravista nas prisões onde milhões de seres, a maioria gente de cor, são submetidos ao domínio por toda a vida. Estigmatizados, os negros, os migrantes e os pobres morrem nas mãos da polícia nas cidades do norte global: Oakland, Ferguson. As Banlieues de Paris, Barcelona. Em todos estes lugares voltou a surgir a velha história: a que sinaliza o perigo dos negros e dos anarquistas.

Mas hoje em dia a semente está plantada. Em Oakland, a cidade negra berço dos Black Panthers, surgiram numerosos grupos anarquistas descoloniais, compostos de negros, árabes e brancos. Não se nutrem dos clássicos do anarquismo operário ocidental, suas referências são os cangaceiros, os palenques. Não é por acaso que muitos se encontram em um centro social denominado o “Quilombo”.

Porém as referências utópico-libertárias seguem lá. Em 2011, em um contexto de protestos generalizados, surgiu a Oakland Commune. As solidariedades tecidas nas lutas antirrepressivas, em protesto contra os assassinatos de jovens negros por policiais, se aglutinaram em firmes movimentos multirraciais, assemblearios e populares. A comuna de Oakland morreu, mas hoje em dia uma infinidade de grupos combate a gentrificação da área da Baía (de São Francisco). Estas mesmas solidariedades foram vistas nos protestos contra o mundial do Rio de Janeiro. Vimos o Brasil irredento, que não acredita na versão oficial da democracia racial, que questiona a aceitação sem limites aos governos chamados progressistas. Vemos isto no sindicato de manteros, vendedores ambulantes de Barcelona em sua maioria africanos que resistem a serem submissos, a serem vítimas.

Negros, selvagens e anarquistas, seguem sendo denominadores utilizados pelos meios de comunicação de massa para deslegitimar aqueles que questionam a hierarquização racial, o extrativismo e a dominação sem limite de nosso modelo global. Longe de lutar contra a marca, contra o estigma, é o momento de assumir essa tatuagem biopolítica que nos impõem e fazê-la bandeira contra suas proclamações.

Negros, selvagens e anarquistas, são os denominadores com os quais se qualifica o medo ocidental de perder o controle, de perder o domínio. Façamos de sua retorcida metáfora, de seus medos, de seus pesadelos uma realidade. Hoje mais do que nunca recordemos a “anarquia” de Dessalines, ainda que não o tenha sido, assim como a negritude de Durruti. Sejamos selvagens como as massas anônimas que sabotam as obras extrativistas do Canadá, as vias de trem de alta velocidade na Europa.

Juntas, Negras, selvagens e anarquistas, por toda a vida, contra o estado racista colonial patriarcal capitalista classista.

Juntas contra o privilégio racial, de classe, de gênero.

Fonte: https://www.diagonalperiodico.net/blogs/aitor-jimenez-y-pedro-jose-mariblanca/negro-salvaje-y-anarquista.html

Tradução > Anarcopunk.org, Renato Brando, PF

agência de notícias anarquistas-ana

O grito é mudo
o olhar no entanto
Diz tudo!

Kirah

One response to “Negros, Selvagens e Anarquistas”

  1. Pedroca

    Vida longa à Anarquia! SOMOS MUITOS E ESTAMOS EM TODAS PARTES!!!!!!!!!!