Em uma entrevista com uma miliciana das YPG, as unidades curdas de proteção da mulher, perguntaram se ela não tinha medo de ir à guerra. “Medo?”, respondeu com surpresa. “O medo é para as mulheres ocidentais em suas cozinhas”.
Quando li que havia uma zona no oriente médio onde a mulher tinha a mesma posição social que o homem, não acreditei. É o típico exagero progapagandístico revolucionário, pensei. Meu natural ceticismo me obrigou a vir vê-lo com meus próprios olhos.
Rojava, parte do também chamado Curdistão sírio, é provavelmente o país mais democrático do mundo. Aqui não há eleições presidenciais; não fazem falta. O poder é exercido nas assembleias de bairro mediante consenso e participação direta.
Estas assembleias se agrupam em uma confederação de distritos, comarcas e, finalmente, cantões. As assembleias só se consideram legítimas se têm ao menos 40% de cada gênero.
Cada um destes níveis tem suas comissões ou ministérios específicos: ecologia, economia, indústria, esporte. Também há um grupo específico para as minorias étnicas e religiosas, que tem uma representação mínima garantida. E, é claro, também há um dedicado à mulher.
Além disso, todos os postos administrativos, seja um ministério, uma prefeitura ou a presidência de uma comunidade de vizinhos, são duais, ou seja, sempre compostos por uma mulher e um homem.
Por último, as mulheres em Rojava tem suas próprias instituições, totalmente autônomas, tanto na sociedade civil (Yekîtiya Star, Jinên Ciwan) como no exército (YPJ).
Esta situação inverossímil, impossível há só cinco anos, existe graças ao consciente trabalho do movimento de libertação curdo.
Por sua parte, o PPK está a mais de quatro décadas organizando a resistência curda contra o Estado turco, aliado do Estado Islâmico.
Seus ferrenhos valores ecológicos, feministas e democráticos, baseados na ecologia social e no municipalismo libertário de Murray Bookchin, e forjados na neve das montanhas de Bakûr, são agora a inspiração para a revolução de Rojava.
Segundo o líder do PKK, Abdulah Öcalan, “sem a libertação da mulher não pode haver libertação da sociedade”.
Em Rojava, o movimento das mulheres não se define explicitamente como feminista. Porém, como contrapartida, criaram a ginecologia, o estudo da mulher que pretende fugir do dogmatismo e do positivismo que costumam contaminar este debate, mas que é profundamente político desde sua existência.
Tendemos a pensar que a Europa é a panaceia social, a nata do feminismo, o zênit dos direitos humanos, o paraíso dos oprimidos. Acostumados a ensinar, nos esquecemos de aprender. Na Espanha dizemos que há democracia pois a comparamos (ainda) com a época franquista. Nos conformamos a viver em uma ditadura melhor do que a anterior. Nos acostumamos a viver com medo em nossas cozinhas, mas Rojava nos demonstra que outro mundo é possível.
Então, é isso? Rojava é a sociedade ideal e utópica pela qual levamos tantos séculos lutando? Finalmente conseguimos?
O doce sonho contrasta com uma cruel realidade nas ruas: para além das instituições revolucionárias, na vida privada de muitas famílias ainda segue dominando a lógica patriarcal. A função opressora dos homens é bem mais passiva, e são, sobretudo, as mulheres as que reprimem umas às outras, perpetuando papéis de submissão e decência através da pressão social.
O outro grande assunto pendente é o caso dos homossexuais, trans, etc. Por enquanto, é um tema totalmente tabu, uma caixa esperando a ser aberta. Também há que se falar de assuntos como o aborto, a prostituição ou a infidelidade, mas isto deixo para oura ocasião.
Tantos séculos de dominação e assimilação por parte do fundamentalismo religioso não se eliminam em uma tacada só, mas a semente está aí e enraizou-se com força.
A gente de Rojava é muito consciente de que a autêntica revolução será feita pela próxima geração. Sabem que, quanto maiores são as escolas, menores são as prisões e estão colocando todo seu esforço em criar estruturas educativas livres para que isto não seja só um experimento social. Perwerde, perwerde, perwerde.
Este é o fruto mais doce das revoltas de 2011, errôneamente chamadas de primavera árabe. O Curdistão é só o começo. O único que precisam para levar a cabo seu (nosso) sonho democrático é que os deixem em paz.
Jin, jiyan, azadî.
Pablo Prieto
Fonte: http://www.huffingtonpost.es/pablo-prieto/ser-mujer-en-el-pais-mas-_b_9389576.html
Tradução > PF
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!