Nos anos noventa nasceu na Bolívia a Mujeres Creando, um movimento que atua por meio da criatividade como um espaço de luta contra um sistema patriarcal, colonizador e neoliberal, e que serviu para a sociedade boliviana como um órgão legitimador do ativismo político, intervenção artística e pedagogia feminista.
Por Arpad Pou
Toda forma de arte vai além do explícito, é uma arma “com sentido político”, dizia Jean-Luc Godard, diretor de cinema cuja filmografia mutou do meramente cinematográfico a uma subversiva estética do político. Nisto coincidiu com o historiador de arte e ensaísta Georges Didi-Huberman, que considerava a imagem como “um espaço de luta¹”. O indispensável para Didi-Huberman era a linguagem, “devolvê-la s ua força” emancipatória. “Cada imagem nos exige ser vista, não só contemplá-la uma ou outra vez”, respondeu a um instantâneo das vítima dos campos de concentração de Auschwitz.
Na Bolívia, essa ideia do poder da arte como ação transformadora apareceu no curso do coletivo Mujeres Creando durante a época do crescente neoliberalismo, que foi se expandindo como uma praga da geografia cartográfica pela América Latina a partir do Chile de Pinochet, guru por excelência, passando por Menem na Argentina, Cardoso no Brasil, Fujimori no Peru ou Jaime Paz Zamora na Bolívia.
Para Mujeres Creando, em uma sociedade terrivelmente conservadora e machista como a boliviana, a arte deve ser feminista e encontrar-se no terreno do público. “Nós acreditamos na rua como cenário principal da ação política”, explica María Galindo, uma das três fundadoras da Mujeres Creando junto com Mónica Mendoza e Julieta Paredes em 1992, dois anos após María e Julieta voltarem de “seu exílio sexual, humano e político na Italia”, como relata Helen Álvarez em “El camino de Mujeres creando, una sucesión de estridencias”.
Sem proselitismo de nenhum tipo, o grafiti como expressão se consolidou desde o começo como uma arma subversiva, incômoda, irritante e provocadora. Do mesmo modo que Didi-Huberman, a força da linguagem para este grupo de mulheres polimorfas (rebeldes, rueiras, agitadoras, heterossexuais desobedientes, anarquistas, grafiteiras, feministas, índias, cholas, lésbicas) segue sendo o poder que descobre o invisível, desmascara a aparência, “uma forma de vida na qual as utopias abrem o caminho entre os espinhos”, escreve Helen.
Índias, putas e lésbicas, juntas, revoltas e geminadas
Em 1990 Julieta Paredes e María Galindo regressaram à Bolívia convencidas de que deviam construir um espaço de mulheres em um momento no qual as forças populares estavam praticamente derrotadas pelo amplo consenso social de um Estado a favor do modelo neoliberal. Naquele momento, a esquerda estava incapacitada para oferecer um discurso alternativo e diferente. Atolada e limitada em uma ideia do proletariado próprio do marxismo ortodoxo incapaz de reconhecer a mulher como sujeito político na revolução, Julieta e María entenderam que dentro da esquerda não havia um lugar para elas e viram-se indubitavelmente na necessidade de construir uma comunidade de mulheres para fazer frente às antiquadas teorias marxistas claramente patriarcais.
Começaram a se comprometer a nível de bairros com pequenas iniciativas de alfabetização. Houve uma aproximação com algumas organizações não governamentais, mas rapidamente Julieta e María tomaram distância. Consideravam que o processo de transformação das ONGs era inexistente pois professavam o discurso errôneo de empoderamento e autoestima que impunha o neoliberalismo, “um discurso neoliberal sobre a equidade de gênero que proveniente do impacto que tiveram as organizações internacionais em toda a América Latina”, explica Mar&iacut e;a.
Se afastaram de todas aquelas organizações baseadas em estruturas de poder cujo único fim eram impedir formas alternativas e comunitárias, próprias e rebeldes. Julieta e María lançaram então a proposta da rebelião: o desafio de que as mulheres se apropriem de seu próprio discurso teórico, ideológico e de um espaço público que para algumas era irreconhecível e para outras não necessário.
Contudo, como escreve Helen Álvares, para a estudante Mónica Mendoza, como para Julieta e María, era imprescindível “recuperar o espaço público que o sistema patriarcal havia vetado”. Foi assim que, em março de 1992, Julieta, María e Mónica começaram o caminho da utopia nos muros de paredes e edifícios da capital boliviana. Nesse processo de construção do heterogêneo entre mulheres de identidades sexuais e étnicas distintas era muito importante que a maneira de se expressar tivesse uma relação direta com o conteúdo do que se pensa va.
Mujeres Creando adotou novas formas de comunicação que marcaram a diferença. Queria-se que mais mulheres se unissem ao movimento. Havia de protestar e denunciar, cativar e animar. Era indispensável não somente romper com o Estado, mas também romper com a linguagem da esquerda, da influência dos movimentos revolucionários armados que bebiam do guevarismo como Nicarágua, El Salvador ou Cuba. “A ideia de uma estrutura hierárquica, muito militarizada, com uma estrutura capaz de mudar a sociedade estava muito arraigada dentro de muitos setores populares”, conta María. E a únic a maneira de consegui-lo para Julieta, María e Mónica era por meio da criatividade, e em repúdio de qualquer forma de violência que inclusive elas mesmas haviam sofrido em marchas e manifestações.
Assim começaram em 93 com uma mescla de grafiti e pintura que chamaram grafiteadas, denunciando o racismo e a violência estatal, familiar, sexual e institucional. Era sua forma de expressão natural e pacífica capaz de revolucionar as consciências femininas e praticar uma mensagem clara e feminista. Para María aquilo foi a chave do futuro do coletivo: “Queríamos reivindicar pelas mulheres que estão fora do modelo que entende o patriarcado, visibilizar as loucas, as insuportáveis, as mal vistas, as insultadas, as adúlteras, as lésbicas, as putas, as indígenas, as gordas.”
Agora as mulheres bolivianas tinham um lugar comum que respondia a suas necessidades, um espaço social no qual podiam acudir para reivindicar seus direitos e transgredir a norma que as condenava. Era o momento para Mujeres Creando articular seu discurso ideológico, escolher as posições do movimento frente a questões políticas, econômicas e sociais. O desafio foi colocar um instrumento de comunicação quinzenal, “Mujer Pública”, aberto a todas as mulheres que quisessem denunciar e protestar. Era um jornal livre, autogestionado, que só dependia de quem o escrevia, que gerava disc&o acute;rdia no poder e que era vendido na rua. De repente, Mujeres Creando já não estava só na parede de um edifício na Bolívia. A venda ambulante do periódico também era uma forma de intervenção urbana para interpelar com a sociedade e ganhar popularidade além de La Paz. Músicas, gritos e ações na rua começavam a acompanhar os grafitis.
Pensar é altamente feminino
Durante os 24 anos de existência do movimento Mujeres Creando, a proposta se define como “a luta criativa através de expressões pacíficas”. As oportunidades de expor sua arte em diferentes espaços de criação artística em todo o mundo presumiam uma evolução que acabou se instaurando no seio de uma sociedade ancorada na opressão machista, no racismo institucional e na imunidade homofóbica.
Mujeres Creando soube reverter uma situação que parecia intransponível, imutável. Conseguiu que a mulher boliviana, reprimida em sua própria existência imposta pelos papéis patriarcais, levantasse o focinho de sua toca e saísse à rua. Julieta, Mónica e María estabeleceram um estilo transgressor e provocador em suas ideias éticas, estéticas e sociais. Ensinaram às mulheres bolivianas a autonomia para decidir em cada um dos assuntos das que eram protagonistas.
Os espaços artísticos que Mujeres Creando ia conquistando com sua arte feminista, depois de terem participado como alunas favorecidas no encontro de San Bernardo (Argentina), em 1990, que fez com que Julieta e María se declarassem feministas, começavam a consolidar-se nas engrenagens que havia até então custodiado a arte burguesa. Por causa disto, seu trabalho suscitava uma reação adversa, crítica e discriminatória. A arma de dois gumes apontava, por um lado, para uma crescente legitimação social do movimento, mas, por outro lado, salientava uma dura e injusta manipulaç&atild e;o midiática contra a exibição de uma arte proscrita pelos espaços que pertenciam às elites artísticas.
Em 1999, María foi convidada no Museu de Arte Contemporânea Rainha Sofía para participar na exposição “Utopias”, que se desenvolvia em nível mundial. A proposta feminista e coletiva de María favoreceu a compreensão de que na Bolívia começava uma mudança social importante partindo de uma posição antineoliberal e sem privilégios. A repercussão gerou controvérsia em muitos artistas com uma concepção de arte moralmente superior. Mas a exposição foi um êxito para a Mujeres Creando e para a Bolívia. O reconhec imento começou a transcender em seu país, e sua mensagem de denúncia a permear na sociedade boliviana. No ano seguinte, María voltou a ser convidada em uma exposição de arte contemporânea latino-americana. Sua proposta era a maior que se exibia no Rainha Sofía. O acontecimento provocou de novo protestos por parte de artistas e críticos que consideravam que Mujeres Creando não faziam arte. Não entendiam que a proposta artística do coletivo feminista era uma linguagem com sentido político.
Durante todos estes anos suas intervenções não deixaram ninguém indiferente. A última na abertura da 31ª Bienal de Arte Moderna de São Paulo, em setembro de 2014. María, que não perdeu nem um ápice de sua força, instalou o “Espaço para Abortar” com vários úteros gigantes para reivindicar o aborto livre e gratuito enquanto um dos seis curta metragens que formam o filme de María “12 horas de rebelión” era projetado repetidamente. Mujeres Creando considerou que a obra foi censurada quando a direção da mostra qualificou a i nstalação como não apta para menores de 18 anos.
Ai se fôssemos um espelho da outra!…
Atualmente o movimento gestiona de maneira cooperativa várias iniciativas dentro de “La Virgen de los Deseos”, um restaurante, em La Paz, que atua de centro nevrálgico para assessoria jurídica a vítimas de violência machista, serviço de hospedagem, centro infantil e ponto de venda para suas publicações. Além disto, tem uma cooperativa de serigrafia, de limpeza de casas e, desde 2007, a radio comunitária, Radio Deseo, que serve para difundir o que elas chamam de a “construção do ideológico e a produção de justiça”.
María identifica a primeira como “política simbólica”, a teoria política e filosófica inseparável do ativismo e contemplada na geração de publicações que representaram outra forma independente de sustento para a organização. Para Mujeres Creando é indispensável que cada militante desenvolva transversalmente, na construção ideológica, um trabalho triplo (manual, intelectual e criativo) para fazer frente à hierarquização que colocou a noção de trabalho no modelo capitalista.
A segunda se estabelece como “política concreta”, a matéria prima de todo o labor que realiza Mujeres Creando contra a usura bancária, que não permite à mulher boliviana emancipar-se economicamente quando decide tomar a rua como modo de subsistência, e contra a violência machista, onde dão assistência às vítimas e propõem ações concretas que vão do legal ao ilegal, do escândalo público à via jurídica.
Nestes 24 anos de luta inesgotável, o projeto de autoafirmação de Mujeres Creando conseguiu encontrar seu caminho: “uma história dolorosa e emocionante”, como afirma María, que transcendeu a uma sociedade profundamente ancorada nos processos do patriarcado colonizador. Para todas elas, a luta continua e o sonho se mantém.
Arpad Pou, licenciado em Filosofia e membro do “Proyecto Termitas y Elefantes”, termitasyelefantes.org.
Artigo publicado no n°70 de Pueblos – Revista de Informação e Debate, terceiro trimestre de 2016.
[1] Entrevista com Georges Didi-Huberman, “Las imágenes son un espacio de lucha”: blogs.publico.es/fueradelugar/183/las-imagenes-son-un-espacio-de-lucha
Tradução > PF
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