“Alcançar liberdade nesta vida” é um verso de Cervantes que encerra em si mesmo todo um programa de vida e ação para uma pessoa de seu tempo e de todos os tempos. Porque a riqueza cervantina está precisamente nesse descobrimento que cada geração faz dele à medida que evoluem novas sensibilidades, mais além da mera erudição crítica dos cervantistas, sempre transbordante por elas. Quatro dias antes de morrer, Cervantes mesmo o disse: “não são os tempos uns”, e qu e virá um tempo em que as pessoas, atando os fios soltos de suas histórias, verá o que quis dizer e, mais ainda, o que convinha dizer.
Este livro de Emilio Sola – historiador com trabalhos fundamentais sobre assuntos fronteiriços e de informação na época de Cervantes, tanto no Mediterrâneo como no Extremo Oriente – é um convite precisamente a essa interpretação mais livre das obras de Cervantes, a uma leitura libertária ou liberadora que em seu tempo histórico – “não são os tempos uns” – era inviável.
Para horror do sistema, dos casticistas, dos bem pensantes e politicamente corretos, sobrevoa a suspeita de um Cervantes antissistema, impossível cortesão, mortificado pela “mudança injusta e trato emaranhado” (a corrupção econômica mais elementar), um Cervantes laico e até feminista do qual não se fala na pompa dos centenários, e cuja mensagem principal se esforçou em construir ao longo de sua vida de maneira consciente. Por ele, Cervantes, o libertário sensato ou lúcido, tem que invent ar-se a Don Quixote, o libertário louco, para poder dizer o que queria dizer, pura busca de liberdade de expressão para “alcançar liberdade nesta vida”.
Leituras de Cervantes inumeráveis e sempre novas, renováveis inclusive a medida que cambiem os tempos, fundamentais para entender por exemplo a Cervantes quando diz que não vale para cortesão porque não sabe lisonjear, e cujas queixas sobre a justiça são radicais, sem fissura, claramente antissistêmicas, tal qual aparece no discurso primeiro da Idade de Ouro, pela boca de Quixote; ou o Cervantes que em uma análise mestra da modernidade que se avizinhava, compara a empresa econômica moderna com o galeão corsário, e lamenta que o novo deus dos novos tempos seja o “interesse” , o dinheiro, de maneira que “a mudança injusta e negócio emaranhado” seja a nova lei desses novos tempos bárbaros; ou o Cervantes feminista que em uma sociedade patriarcal e machista faz dizer a Marcela que ela nasceu livre e que acontece que seu enamorado não correspondido, Crisóstomo, se tenha suicidado, porque era um importuno; ou o Cervantes que, em uma sociedade confessional fundamentalista como era a monarquia católica, faz despedir-se a um mouro e a um cristão em uma peça teatral assim: “Teu Cristo vai contigo”, diz o mouro Ali; “Teu Mahoma, Ali, te guarde”, diz o cristão; formulação sem comparação na literatura europeia de então e quase de hoje, tal como vão as coisas.
Esse é o Cervantes que não parece que as elites culturais e os especialistas tenham nenhum interesse em apresentar para que todos o entendam. O que não pode digerir uma sociedade formal que no fundo não entra de cheio nele porque, como em vida lhe aconteceu, ou desprestigia e oculta, ou destrói ou ignora, e só é capaz de rir graças ao louco que diz bobagens, e que inventou por pura necessidade de liberdade de expressão, em um artifício literário que cria a novela moderna.
Esse é, sem dúvida, o Cervantes personagem histórico que fascina aos anarquistas, aos libertários, e por isso são radicalmente cervantistas, mais que quixotistas, pois enamorados do Quixote, focalizam seu interesse nesse homem que está detrás da obra literária mesma, que lhe dá vida, que a faz possível.
Esse Dom Quixote de Alcalá de Henares, como sintetiza, puro emblema, José María Pujol, no título de um livro que publicou em 1947 e que assina simplesmente PUYOL; um exilado libertário que chegou a Argélia no barco Stanbrook fugindo da repressão franquista, cuja paixão por Cervantes se narra também em “Por qué los anarquistas aman a Cervantes”. O livro termina com uma revisão das afinidades do movimento libertário com o Quixote e seu autor.
> Emilio Sola Castaño (Asturias, 1945), historiador e escritor, foi professor nas Universidades Complutense e Autônoma de Madrid, assim como na Universidade de Orán (Argelia), e sobretudo, desde 1990, professor de História Moderna da Universidade de Alcalá de Henares, da qual hoje é emérito.
Entre seus trabalhos como historiador destacam: Un Mediterráneo de piratas: corsarios, renegados y cautivos (1988), Cervantes y la Berbería. Cervantes, mundo turco-berberisco y servicios secretos en la época de Felipe II (1995), Los que van y vienen. Información y fronteras en el Mediterráneo clásico del siglo XVI (2005), La Conjura de Campanela (2007), Uchalí, el Calabrés Tiñoso o el mito del corsario muladí en la frontera (2010). Novelista do ciclo utópico libertário de novelas que compõem El Paraíso de las Islas, e poeta com livros já míticos como La Isla, ademais de agitador de experiências culturais multidisciplinares desde os anos setenta até hoje, Emilio Sola dirige na atualidade o Centro Europeo para la Difusión de las Ciencias Sociales (CEDCS) e coordena o Archivo de la Frontera, entorno colaborativo e fonte de informação compartilhada.
Cervantes libertario
Cervantes antisistema o por qué los anarquistas aman a Cervantes
Emilio Sola
Coeditam Corazones Blindados e Fundación Anselmo Lorenzo
Páginas: 136
Preço: 9 euros
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
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