Um ensaio reivindica ao grupo de pioneiros que, desde o sul da Suíça, fez do Monte Veritá o campo de ensaio da contracultura europeia do século XX
Por M. Ángeles Robles
Muito antes de que o movimento hippie dos anos 70 reivindicasse o pacifismo como estilo de vida, a cultura alternativa como única cultura verdadeira possível e o amor livre como forma natural de relacionar-se, existia já um lugar propício para desenvolver as múltiplas utopias que dão forma à vida sem ataduras e um grupo de pessoas dispostas a arriscar as comodidades da sociedade burguesa para torná-las possíveis.
Em princípios do século XX esse lugar no qual viver prescindindo das normas ditadas por uma sociedade que mudava rapidamente graças ao desenvolvimento industrial, e no qual as pessoas deixavam pouco a pouco de ter rosto próprio para converter-se em massa, era Monte Veritá (Monte da Verdade), no lago Maggiore no Tesino Suíço, próximo de Locarno. Esta paragem agreste e a próxima Ascona vão a exercer papel de verdadeiro foco de atração de intelectuais, artistas e visionários que buscavam um lugar para tornar possíveis seus desejos de criar uma comunidade na qual pôr em prática suas ideias anarquistas, naturistas e feministas. Da concreta atração que este espaço idílico exerceu sobre os intelectuais e artistas que tinham como centro de reunião e residência o bairro de Munique de Schwabing nos fala o ensaio “Contra la vida establecida” no qual Ulrike Voswinckel realiza um exaustivo e apaixonante percurso pelo mais de meio século que durou a poderosa fascinação exercida por este lugar que, em muitos sentidos, se pode considerar campo de ensaio da contracultura europeia do século XX.
O grupo de pioneiros que tomou a decisão de abandonar a zona de conforto da boemia de Munique para realizar um longo percurso até o sul em busca de um espaço apropriado para concretizar sua utopia alternativa. Foi integrado pelo belga Henri Oedenkoven, os austríacos Karl e Gusto Gräser, duas irmãs que viajaram desde Montenegro, Ida e Jenny Hofmann, e uma jovem de Berlim, Lotte Hattemer. Como aponta Voswinckel na introdução, seu objetivo era criar uma cooperativa para construir um sanatório “em uma paisagem sulista, no norte da Itália ou no sul da Suíça”. Eles foram o germe do movimento contracultural que, com muitas diversas ramificações, se estenderia em Monte Veritá e seus arredores até depois da Segunda Guerra Mundial.
Juntos empreenderam o caminho sem retorno até uma vida que entendiam como verdadeira. Descalços, roupas apenas como agasalho, elas com os cabelos soltos, eles com longas barbas, percorreram o árduo caminho que os levou das ideologias livrescas à práxis da acariciada utopia. O sul da Suíça foi o lugar conveniente para um grupo que se dividiu rapidamente. Como representantes de duas correntes divergentes. O casal formado por Henri Oedenkoven e Ida Hofmann pronto se viu na “necessidade” de comercializar seu sanatório vegano, no qual se podia viver em contato permanente com a natureza e cultivar desnudos a horta; enquanto que, no outro extremo, Gusto Gräser abandonava o grupo para empreender seu caminho errante de “poeta descalço” e visionário essencial, que não abandonou em toda sua vida.
Por Monte Veritá passaram, ao longo dos muitos anos que durou sua influência como foco de atração de artistas “avant la lettre”, um grande número de intelectuais entre os quais podemos assinalar os escritores Rainer María Rilke ou Hermann Hesse, que manteve uma relação muito especial com Gusto Gräser; o poeta, escritor e jornalista anarquista Erich Mühsam, o psiquiatra e psicanalista também anarquista Otto Gross ou o casal formado pelos dadaístas Hugo Ball e Emmy Hennings; também os bailarinos Rudolf von Laban e Mary Wigman e os pintores Marianne von Werefkin ou Ernst Frick. Sobre suas excêntricas vidas, suas ações políticas, e inclusive sobre suas histórias sentimentais, amparados pela pedagogia do amor livre se estende longamente a autora, que documenta sua exposição com fragmentos de cartas, novelas, poemas, artigos jornalísticos e mais de cem fotografias.
Durante as duas grandes guerras, Ascona se converteu além de refúgio de muitos exilados que encontraram ali a tranquilidade necessária para fugir do horror, também um ambiente propício para desenvolver sua atividade artística. E em todos os momentos foi lugar de encontro de diletantes e pioneiros. Também de mulheres, artistas ou não, que desejavam viver sem submeter-se às rígidas normas sociais que as relegavam ao tedioso e alienante âmbito doméstico. Voswinckel dedica um interessante capítulo a estas “mulheres fortes” e valentes.
Como ocorre em todos os “lugares de atração magnética”, segundo a descrição de Harald Szeemann que cita a autora do ensaio, “primeiro chegam os loucos e descobrem um lugar, começam sua irradiação e o mitificam, depois chegam os artistas, que cantam sua beleza, e depois os banqueiros”. Assim foi também no caso de Monte Veritá e a vizinha Ascona, convertida finalmente em empório turístico. O velho sanatório de Henri Oedenkoven e Ida Hofmann e suas terras no monte foram comprados pelo banqueiro Eduard von der Heydt, que construiu ali um grande hotel estilo Bauhaus. Nos anos 70 do século XX já havia tempo que o Monte Veritá havia caído no esquecimento; ainda que, paradoxalmente, seu espírito estava mais vigente que nunca.
A ficha
‘Contra la vida establecida’. Ulrike Voswinckel. Trad. Fernando González Viñas. El Paseo Editorial. Sevilla, 2017. 272 páginas. 22 euros.
Fonte: http://www.diariodesevilla.es/delibros/lugar-libres_0_1146185676.html
Tradução > Sol de Abril
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