Por Gerónimo Barrerade la Torre
As correntes predominantes da geografia crítica ocidental estiveram dominadas pela perspectiva marxistas. A crítica “real”, neste marco, está determinada pelo uso adequado destas teorias e dos autores ligados a esta linha de pensamento. Ainda assim, a formação da geografia tem um estreito vínculo com outras formas alternativas anticapitalistas, anti-imperialistas, antirracistas, etc. Raízes profundas que, se bem foram invisibilizadas na história da geografia e em seu desenvolvimento como disciplina, atualmente seguem gerando novas aproximações na pesquisa geográfica. Na última década ressurgiu a geografia radical vinculada ao anarquismo e as ideias libertárias. Por exemplo, vários números de revistas geográficas foram dedicados a trabalhos em torno destas perspectivas, como refere Ferretti, Barrera da Torre, Ince e Toro (no prelo); assim como, em diferentes conferências internacionais têm se organizado sessões onde se expõem diversos trabalhos em torno das geografias anarquistas desde questões geo-históricas a estudos sobre ecologia política anarquista. Além disso, este ano se organizará o primeiro encontro internacional de geógrafos e geografias anarquistas marcando a relevância que esta perspectiva têm adquirido¹.
Neste contexto, o professor Simon Springer destaca-se como um dos autores mais prolíficos e como uma das figuras que têm organizado diversos encontros e mesas sobre geografias anarquistas em diferentes reuniões e cenários. Em 2 de maio deste ano Springer ofereceu uma palestra não auditório “Ing. Geóg. Francisco Días Covarrubias” do Instituto de Geografia da UNAM (Universidade Autônoma do México), intitulada “Las raízes anarquistas da Geografía”. O professor da Universidade de Victoria no Canadá expôs nesta conferência parte de seu mais recente trabalho, The Anarchist Roots of Geography: Towards Spatial Emancipation (Springer, 2016) no qual examina a genealogia do pensamento anarquista na geografia assim como uma sistemática reprovação ao monopólio da geografia crítica por parte das correntes marxistas, apresentando alguns dos possíveis caminhos a seguir e exemplos da utilização de um marco analítico anarquista ou libertário. Este livro integra e atualiza alguns artigos que o autor publicou previamente. Mas, sobre a mesma temática, Springer continuou seu trabalho com novas publicações como “Who’s afraid of the big bad anarchist? Rejecting Left unity and raising hell in radical geography” (Springer, na imprensa). Nas seguintes páginas farei um relato da conferência do professor Springer, assim como dos diversos trabalhos publicados, como um guia para futuras aproximações que os leitores queiram realizar.
Como introdução o professor Springer explicou que sua aproximação das ideias libertárias se deu durante seu trabalho no Camboja, onde focou nas geografias da violência, particularmente do Estado, e o neoliberalismo. Suas experiências neste país, onde o legado do regime Khmer Vermelho é evidente, assim como a predominância da geografia marxista na literatura anglo-saxão, levaram Springer a buscar outras alternativas, outras críticas e formas de questionar a violência exercida nestes espaços. Assim, a partir deste trabalho no sudeste asiático publicou uma série de livros, artigos e volumes especiais de revistas, que integram análises e reflexões em torno do neoliberalismo e da violência. Por exemplo, publicou os livros “Cambodia’s Neoliberal Order: Violence, Authoritarianism, and the Contestation of Public Space” (Springer, 2010); “Violent Neoliberalism: Development, Discourse and Dispossession in Cambodia” (Springer, 2015) e “The Discourse of Neoliberalism: An Anatomy of a Powerful Idea” (Springer, 2016).
Com este panorama o argumento principal da conferência, e em geral em seu mais recente trabalho, é a exclusividade que ostenta a perspectiva marxista como única crítica possível. Assim, se questiona “Como a geografia pode considerar-se radical sem considerar a primeira tradição de pensamento geográfico anticapitalista?”, em referência aos trabalhos de Piotr Kropotkin e Élisée Reclus. Parte de sua prática se centrou na descrição dos (des) encontros e as formas em que foram rechaçadas e estereotipadas as visões e filosofias políticas do anarquismo. Para este professor isto significou a imposição de visões pouco informadas sobre os anarquismos e ideias libertárias, definindo-os de formas toscas e sem considerar seriamente as alternativas que propõem. No entanto, como o trabalho de Springer, entre muitos outros mostra que ditas alternativas apresentam um panorama amplo, complexo e diverso, baseado no rechaço de qualquer forma de coerção e opressão, observando a intersecção entre múltiplos e as vezes contraditórias formas em que estes padrões de dominação e hierarquização se consolidam. Igualmente, em sua crítica não rechaça ou desvirtua o marxismo, nem a diversidade que nele existe, senão que reconhece a importância e valor de ditas análises em, por exemplo, processos de acumulação de capital. Mas centra sua crítica na exclusividade epistêmica e inclusive ontológica que as perspectivas marxistas mantêm como metanarrativas. Esta discussão o levou a um intercâmbio de ideias com David Harvey através de alguns escritos² onde ambos mostram os desencontros entre as diferentes aproximações.
Regressando à discussão central da conferência, as raízes da geografia radical se encontram então nos trabalhos dos geógrafos anarquistas, que não se restringem só às figuras de Kropotkin e Reclus, senão a toda uma rede de geógrafos, cartógrafos corresponsáveis que participaram em diferentes projetos (Ferretti, 2014). Ademais, seguindo as ideias de Springer, estas raízes abarcam posições filosóficas e políticas de distintas índoles que propõem alternativas críticas diferentes às estabelecidas pelas perspectivas marxistas. Assim, o palestrante convida a reencontrar e repensar as geografias críticas e alternativas considerando estas outras aproximações, e a possibilidade de aproximação mais diversos e complexos. Estas aproximações alternativas tem como uma de suas colaborações chave seu dinamismo e fluidez. Diferente de outras perspectivas, as geografias anarquistas propõem a emancipação espacial através de formas não definidas a priori, não como projetos pré definidos, contrário às visões teleológicas marxistas, senão como processos em contínuo desenvolvimento. Fundamentados no rechaço de formas de coerção e hierarquias, focando-se na descentralização e na fluidez. Assim, não se propõe seguir um caminho traçado previamente por uma vanguarda que considera ter o poder de acesso ao verdadeiro projeto de emancipação. Questões como a ditadura do proletariado ou o vanguardismo ficam descartadas dentro destas perspectivas pois se consideram novas formas de opressão.
Neste sentido, as perspectivas libertárias e anarquistas se apresentam mais abertas às diferentes realidades, as outras formas de ver e entender o mundo, a outras epistemologias e ontologias, enfim, as “outras” geografias. Somado a isso, como explica Springer, diferente do marxismo, o anarquismo não foi “inventado” por uma pessoa, não leva o nome de nenhuma pessoa, e inclusive seguindo a Ranmath (2011), o anarquismo é parte de uma ampla família de perspectivas libertárias que respondem aos diferentes contextos e particularidades dos povos e sociedades. Esta aproximação entre “outras” geografias e as geografias anarquistas foi tema de conversação durante a seção de perguntas da conferência onde se destacaram os paralelismos e pontos de encontro entre estas.
A conferência examinou quatro aspectos principais: 1) a questão do Estado; 2) o debate sobre os monopólios epistêmicos por parte das perspectivas marxistas na geografia crítica; 3) as ideias em torno da revolução, a vanguarda e a insurreição, assim como; 4) a predominância do econômico e do estrutural como formas de entender realidades e definir projetos. Se bem, como se mencionou anteriormente, o segundo aspecto foi central não só na conferência mas também o é através da obra de Springer, as outras três questões também são relevantes para apreciar as alternativas que implementam as geografias libertárias.
Claramente a questão do Estado, a forma em que este é compreendido e o papel que lhe confere nos processos sociais, difere consideravelmente entre as diferentes perspectivas críticas e radicais. Desde as perspectivas marxistas e libertárias, este foi historicamente um dos debates mais conflitivos e que gerou cisões entre as distintas posturas. Ao mesmo tempo, isso tem implicações sobre como o papel do Estado se analisa e concebe, o que leva a formas diversas de compreender processos de territorialização e desterritorialização. Para uma perspectiva marxista, o Estado adquire centralidade ou importância como meio para a aquisição e manutenção do poder por uma vanguarda, enquanto que para os libertários isso só representa a substituição de uma forma de coerção por outra. Tudo isso está estreitamente vinculado com a ideia de revolução e, o que Springer expõe como contrário, a insurreição. Assim, a primeira tem como objetivo obter o poder e impor uma nova ordem, é um meio para um fim que supõe a superioridade daqueles que tem “melhores” formas de organizar e pensar a humanidade. A insurreição entendida desde a perspectiva libertária tem como âmbito o dia a dia, a ação direta e a prefiguração, os meios e fins se definem em conjunto.
Como ressaltou Springer, a perspectiva anarquista permite uma aproximação mais detalhada e descentralizada, pois o Estado é considerado como mais uma das instituições criadas pelas sociedades, de origem recente, que não só define uma estrutura e impõe territorialidades, senão que é também uma condição, uma forma de relacionar-se no dia a dia. Por isso, esta aproximação foca em organizações espaciais que respondem a complexas condições locais. Seguindo esta ordem de ideias, os axiomas econômicos que segue parte da tradição marxista, evidenciam a subordinação da realidade complexa a preceitos definidos a priori. Frente a isso as geografias libertárias reconhecem a existência de múltiplas formas de dominação que intersectam. Assim, tanto a questão do Estado, a ideia de revolução e os axiomas econômicos respondem, desde uma análise anarquista, a uma postura teleológica onde há um fim da história predeterminado. As geografias anarquistas partem então da ideia de que não há um processo linear, nem um fim universal, senão um contínuo desenvolvimento de realidades complexas.
Mais que uma chamada a fazer parte das fileiras de uma tendência “nova” na geografia, a conferência e os trabalhos de Springer convidam a considerar seriamente as outras formas de fazer e pensar as geografias que abrem as ideias libertárias e anarquistas. Como marco teórico e prático, as geografias anarquistas permitem aproximação alternativa aos monopólios epistêmicos, não só o marxista, baseados na exclusão e o privilégio de certas formas de produzir conhecimento em torno a diversas questões como as críticas ao neoliberalismo, o rol do Estado e a territorialização. Tão válido e relativo como outros marcos teóricos e práticos, o que as raízes anarquistas da geografia nos recordam é a sistemática obliteração de “outras” geografias, não só as libertárias, para a imposição de formas de conhecer territórios e paisagens. Esta exclusão está baseada em estereótipos que no caso do anarquismo se centram na suposta violência que promove, em sua definição como análogo ao caos e a desordem, assim como a uma suposta falta de rigor “científico” em sua análise das realidades. Reducionismo que, como se mencionou anteriormente, não faz mais que reproduzir um discurso pouco informado de uma vasta família de filosofias políticas libertárias.
Para Springer as geografias anarquistas apresentam uma alternativa na geografia, novos caminhos teóricos e práticos que, devido a sua ênfase no processual, no contínuo desenvolvimento não invocam privilégios epistêmicos ou ontológicos, senão que abrem a possibilidade de emancipação espacial desde múltiplas posições. Como um conjunto de ideias e atitudes, estas geografias não clamam por nossa aderência a uma série de preceitos que nos ajudem a entender a realidade senão a construir em diálogo com outras geografias, a produzir conhecimentos de forma alternativa que rechacem formas coercitivas e autoritárias. A obra de Springer³ é referência ineludível não só para questões sobre anarquismo e geografia, senão também sobre temas atuais como o neoliberalismo, as geografias da violência, o desenvolvimento e Camboja. Suas aproximações geraram em muitas ocasiões polêmica, como seu texto “Fuck neoliberalism” (Springer, 2016) ou seu debate com David Harvey, mas mais além das airadas discussões que geram, são referências para repensar e ampliar nossas críticas sobre o que é o que fazer geográfico.
Referências
Ferretti, F. Barrera da Torre, G. Ince, A. e Toro, F. (no prelo). Introduction. Ferretti, Federico; Barrera da Torre, G. Ince, A. e Toro, F. (Eds.). Historical Geographies of Anarchism. Early Critical Geographers and Present Day Scientific Challenges. New York: Routledge.
Ferretti, F. (2014). Elisée Reclus, pour une géographie nouvelle. París: Editions du CTHS.
Ramnath, M. (2011). Decolonizing Anarchism. An antiauthoritarian history of Indi’s liberation struggle. Chico-Portland: AK Press and Institute for Anarchist Studies.
Springer, S. (2010). Cambodia’s Neoliberal Order: Violence, Authoritarianism, and the Contestation of Public Space.Londres: Routledge.
Springer, S. (2015). Violent Neoliberalism: Development, Discourse and Dispossession in Cambodia. New York-Londres: Palgrave Macmillan.
Springer, S. (2016). The Anarchist Roots of Geography: Towards Spatial Emancipation. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Springer, S. (2016). “Fuck neoliberalism.” ACME: An International Journal for Critical Geographies, 15 (2), 285-292.
Springer, S. (no prelo). Who’s afraid of the big bad anarchist? Rejecting Left unity and raising hell in radical geography. Dialogues in Human Geography.
Notas
[1] 1st International Conference of Anarchist Geographies and Geographers (ICAGG) – Geography, social change and antiauthoritarian practices. Reggio Emilia (Italia) – Centro Studi Cucine del Popolo, 21-23 de setembro de 2017 [http://www.icagg.org/]
[2] Os textos podem ser revisados em: https://goo.gl/iADbri.
[3] Para uma lista de suas publicações pode-se revisar seus trabalhos online em: http://uvic.academia.edu/SimonS-pringer/CurriculumVitae.
Fonte: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0188461117300675
Tradução > Sol de Abril
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A estrela cadente
teima, se enrosca, se queima.
Quer o sol nascente.
Flora Figueiredo
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!