Por Meg Sri
Tarde da noite de ontem (22/01/2018), uma notícia desoladora: a querida, revolucionária, obstinada escritora feminista de ficção científica, Ursula Le Guin, faleceu aos 88 anos.
Le Guin foi uma autora que significou muito para muitas pessoas. Ela era, antes de mais nada, uma contadora de histórias: uma tecelã de mundos ricos e complexos, repletos de dragões e magia e oceanos e dons mágicos e planetas e universos e conflitos. Ela escrevia numerosos textos e para todos os públicos: era autora de contos, livros para crianças, para jovens adultos, ficção científica, não ficção, poesia e ensaios. Leitores a descreveram como alguém que fazia tudo caber em sua escrita: poesia, sabedoria, tristeza, satisfação, fantasia, realidade. Ela volveu mundos que eram atemporais não apenas em seus detalhes intrínsecos, de tirarem o fôlego, mas mundos que eram ricos em sua visão complexa da humanidade e em nossas relações uns com os outros, questionando, através de seus retratos de lugares além da Terra, o que significava viver aqui.
Le Guin também era feminista e isso refletia tanto em sua escrita quanto em seus argumentos ousados e destemidos à comunidade de ficção científica, em grande parte masculina e patriarcal. Ela abriu seu caminho até o clubinho dos meninos da ficção científica e os repreendeu: pediu aos homens que “considerassem, sem compromisso, quando estivessem com tempo sobrando, se por algum acaso eles construíram muros para manter as mulheres de fora ou para mantê-las em seus lugares e o que podem ter perdido ao fazerem isso”. Sua escrita foi poderosa e inspiradora para as mulheres, encorajando-as a encontrarem seu próprio poder e identidade, separados das ideias masculinas de poder e prestígio: seu discurso de formatura de 1986 aos alunos de Bryn Mawr é um dos gritos de guerra feministas mais emocionantes já escritos.
Para mim, porém, Le Guin representou algo um tanto distante da literatura grandiosa e memorável. Representou algo que significou ainda mais que seu feminismo obstinado e franco. No meu segundo ano da faculdade, fui ler “Os Despossuídos”, recomendação do meu professor preferido, e o trabalho de Ursula Le Guin foi a gênesis do meu despertar político.
“Os Despossuídos” não está no topo da lista dos trabalhos de Le Guin – “A Mão Esquerda da Escuridão” e “Ciclo de Terramar” são mais conhecidos – mas para mim, lutando com as teorias contrastantes do liberalismo, pós-estruturalismo, marxismo e pós-colonialismo como qualquer nerd perdido do curso de Artes Liberais, foi a análise mais simples sobre poder que já tinha visto. Le Guin criou uma utopia feminista e radical, onde o egoísmo era literalmente impensável e indiscutível e onde a solidariedade coletiva ajudou o povo de Anarres a construir uma comunidade habitável em uma lua deserta. Le Guin deu vida às tradições anarquista de filósofos como Piotr Kropotkin e Murray Bookchin de uma forma que apenas uma contadora de histórias primorosa conseguiria: uma narrativa que ilustrou com audácia um mundo viável sem propriedades, hierarquia ou lei; que nos fez compreender o suor e os sacrifícios do sindicalismo político; que retratou as glórias penosas de mundos com igualdade entre sexos, raças e classes; e nos mostrou duramente que até mesmo a gramática que usamos para falar uns com os outros pode ajudar ou prejudicar nossas tentativas de nos enxergar unidos ou divididos. Uma personagem em Urras, o contraste capitalista em “Os Despossuídos”, diz ao protagonista do romance palavras que eu mesma quis expressar a Le Guin: “Saber que isto existe, saber que há uma sociedade sem governo, sem polícia, sem exploração econômica, e que nunca mais poderão dizer que é só uma miragem, o sonho de um idealista!”.
Mas o que é realmente revolucionário em “Os Despossuídos” é que o anarquismo não está apenas no conteúdo, mas na sua forma. Le Guin não estaria sendo uma boa anticapitalista se estivesse tentando vender algo aos seus leitores. Ao invés disso, em “Os Despossuídos” explorou o que significa acreditar no anarquismo sem usar propaganda. Le Guin era política, mas também era uma artista: seu trabalho era nos apresentar uma “paisagem da imaginação na qual podemos habitar e retornar”; nos permitir imaginar um mundo radicalmente diferente do nosso. O livro é quase deliberadamente intitulado “uma utopia ambígua”. Le Guin buscou nos capacitar a aceitar a utopia e o conflito juntos; a termos uma visão de um futuro político melhor, mas não termos medo de nos questionar no caminho; a falar a verdade ao poder, mas nos perguntando sobre quem teríamos silenciado nas nossas próprias ações; a melhorar nossa realidade atual, mas tendo consciência de seus desafios. Em uma época de intensa disputa da esquerda; uma época de apelo para sacrificar um aspecto da nossa identidade por outro; em uma época na qual não acreditamos ser possível lutar contra o racismo, o capitalismo e o sexismo de uma só vez, Le Guin volta para me lembrar que podemos ter tudo isso, se estivermos dispostos a nos confrontar constantemente durante o processo.
Le Guin nos disse que “nós lemos livros para descobrirmos quem somos”, e foi isso que “Os Despossuídos” fez por mim: ajudou a moldar minha existência pessoal e política. Nenhum outro texto sobre anarquismo que li desde então – e li o bastante para escrever uma monografia sobre o assunto – me ensinou mais sobre o movimento, as políticas, a filosofia e a visão do que “Os Despossuídos”. Não me esclareceram melhor sobre o anarquismo como uma forma de escrita e de como imaginá-lo; um ethos que vai além de uma visão política simplista.
O poder está com você, Ursula Le Guin. Em “Os Despossuídos”, nos lembrou: “Você não pode comprar a revolução. Não pode fazer a revolução. Você só pode ser a revolução. Está na sua alma ou não está em lugar algum.” Obrigada por mostrar ao meu eu de 19 anos – e a inúmeros outros – como incorporar o espírito dessa revolução.
Fonte: http://feministing.com/2018/01/24/ursula-le-guin-made-me-an-anarchist/
Tradução > Amanda Laet (linkedin.com/in/amanda-laet-8733ba114)
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