Connor Owens fala sobre anarquismo e uma forma de ficção científica como meios de possibilitar as eco-utopias
A transformação social nunca acontece apenas através de mudanças econômicas ou legislativas. Essas mudanças são sempre acompanhadas, de um ponto de vista mais informal, por alterações superestruturais nas esferas culturais e ideológicas, moldando os níveis infraestruturais, isto é, o modo como o cidadão comum age e pensa. Os anarquistas sempre tiveram a noção disso. Na verdade, se há uma coisa pela qual os anarquistas são conhecidos, é pelo seu envolvimento em diversas subculturas artísticas, musicais e filosóficas. Isso já é antigo. Peter Kropotkin e Emma Goldman não foram apenas dois dos primeiros teóricos da luta de classe e do anarquismo, já que também escreveram obras sobre literatura russa e teatro moderno, respectivamente.
No entanto, tenho notado, principalmente nas últimas duas décadas, e de um ponto de vista anarquista, uma manifesta tendência para separar a atividade cultural e ideológica da atividade política e econômica. Na pior das hipóteses, tenho visto rejeições por parte de pessoas envolvidas nas frentes político-econômicas relativamente às que se situam nas culturais e ideológicas, considerando estas últimas “apolíticas” e como mero estilo de vida e autointitulando-se como os exemplos da “real” ação anarquista – o que, do meu ponto de vista, consiste em escrever artigos para jornais que ninguém lê e ocasionalmente agitar bandeiras vermelhas e pretas nas greves e manifestações. Se esta é, de fato, a real atividade política, não me parece que vá atingir grandes objetivos político libertários.
Para ser sincero, tais tipos de libcom (comunismo libertário) não estão errados quando denunciam que o anarquismo cultural está cheio de pessoas que não têm compromisso com a luta social ou com a mudança do sistema, vendo o anarquismo como mera ferramenta de rebelião pessoal e de autoexpressão. Esse tem sido sempre um problema. Os boêmios, os hippies, os punks, os techies têm-nos dado mananciais abundantes de obras de arte, embora tenham falhado na dissolução do Estado e na economia de autogestão do trabalhador.
Mas dado que a profetizada revolução proletária dos trabalhadores anarquistas está um século, ou mais, atrasada, pode-se dizer que as conquistas do anarquismo cultural e a luta de classes anarquista – quando consideradas como entidades separadas – são iguais.
Trouxeram-nos muitas pequenas e cumulativas vitórias como parte de movimentos maiores (nas artes, na educação, liberdades civis e movimentos de trabalhadores), mas o ideal a longo prazo do anarquismo social permanece mais distante do que nunca.
Uma das principais fontes desta relativa desconfiança entre os envolvidos na luta cultural e ideológica e os envolvidos na luta político-econômica – e talvez na ausência de ganhos significativos que pudéssemos obter entre a cooperação entre as duas frentes – consubstancia-se, penso eu, na falta de meios adequados para conceitualizar modos para se inter-relacionarem. Nesta questão, e apesar de muitas das atividades ideológicas não quererem ser consideradas apolíticas, gostaria de propor que ambas as formas de atividade são políticas, embora politicamente de diferentes maneiras. Uma é infrapolítica (“infra” significando debaixo), enquanto a outra é mega política (“mega” significando superior).
Por infrapolíticas, quero dizer formas de ação cultural e ideológica de pessoas engajadas no que não é formalmente político, mas, formam a base da realidade sociopolítica em ambos os níveis interpessoal e sistêmico, moldando a maneira como concebemos, nos relacionamos e interagimos com a realidade social. Atividades como a produção de arte, a criação de ambientes de contracultura, injetando ideias políticas em vários meios culturais, dão uma base filosófica, criando formas alternativas de educação.
Por megapolítica, entendo a maior parte do que é considerado “político” no sentido tradicional: tentando mudar o funcionamento do sistema social como um todo, particularmente na governança e na jurisprudência. Coisas como o municipalismo, o sindicalismo e ativismo, no sentido mais vulgar dos termos.
O infrapolítico deve ser sempre visto como sendo do interesse do ativismo anarquista, porque é nas esferas infrapolíticas que as sementes da mudança mega política alteram o imaginário social. Podem cultivar-se os valores da autonomia individual, da cooperação voluntária e da organização anti-hierárquica nas consciências e comportamentos populares através de meios que não são considerados “políticos” no sentido formal, mas que, ainda assim, têm efeitos demonstráveis na maneira como as pessoas agem em contextos políticos formais.
O que me traz agora ao que quero realçar como um dos mais promissores espaços sociais anarquistas e de maior potencial infrapolítico: a subcultura chamada solarpunk.
Nascida por volta de 2010, online, tendo seu pico no meio desta década, é uma forma de futurismo ecológico que encontrou expressão na ficção científica, pintura e artesanato e, agora, caminhando no sentido de políticas utópicas radicais. Provavelmente, o leitor pode estar mais familiarizado com as famosas subculturas cyberpunk, steampunk, sendo o solarpunk, de certo modo, uma síntese natural a partir das outras duas.
O cyberpunk imagina um futuro que vai correr mal, tomando como sua premissa a evolução da sociedade e tecnologia atuais, evoluindo por um caminho que é negro, cheio de poluição, dominação corporativa e robots assassinos. Steampunk imagina um passado que correu bem, que seguiu um caminho mais luminoso, tomando como premissa a evolução da sociedade e tecnologia vitorianas, no caminho da aventura, impregnado de anti-imperialismo e sky pirates. Finalmente, solarpunk retoma a mesma abordagem imaginária do steampunk, na demonstração de cenários de “e se?”, e seguindo caminhos alternativos promissores que a sociedade e a tecnologia podem tomar – mas contrariando o naufrágio da industrialização e imperialismo dos finais do século XIX -, mas, como o cyberpunk, foca-se na teorização de um futuro em vez da de um passado.
Olhando para a nossa circunstância contemporânea, o que parece mais provável, e tendo em conta o curso esperado do desenvolvimento social e tecnológico, é uma realidade mais perto da do desânimo de um futuro cyberpunk. Talvez não tão mau como o do Blade Runner ou o de um romance de William Gibson, mas que não constitui uma direção a seguir.
Mas e se as possibilidades forem mais abertas e mutáveis do que isso? E se ainda tivermos a opção de escolher algo mais luminoso e uma orientação no sentido de um desenvolvimento sócio tecnológico mais otimista? Para o solarpunk o caminho histórico que não foi seguido está agora disponível para nós.
O solarpunk imagina um futuro que vai correr bem, tomando como premissa a evolução da sociedade e da tecnologia seguindo uma direção otimista, cheia de tecnologia verde, culturas não hierarquizadas e bela arquitetura art nouveau (sendo esta última subjetiva, mas apeteceu-me evocá-la aqui). A automatização do trabalho está generalizada, a impressão em 3-D e a tecnologia das nanopartículas substituem a alienada produção em massa, o trabalho como uma prática artesanal, seguindo o sonho de William Morris de tornar o trabalho um espaço de lazer.
É um mundo de eco-comunidades descentralizadas e confederadas, usando a tecnologia para fins centrados no Homem e na ecologia, em vez de acumular poder e benefícios – reparando a separação metabólica entre primeira natureza (o mundo natural) e a segunda natureza (a cultura humana) – e onde as hierarquias sociais de raça, gênero, sexualidade e deficiência são consideradas histórias de horror de um passado caracterizado pela “era do petróleo”.
O solarpunk é futurista, mas é um futurismo prático. Baseia as suas visões de estilos de vida alternativos em tecnologias, costumes e modos de estar que já existem no presente, sacando o que é libertador e ecológico agora, movendo-o da periferia para o centro do problema (um mundo centrado no Homem). É notória a semelhança com o método do anarquismo social: educando o que é libertário dentro do que já existe.
Atualmente, o solarpunk ainda está pouco divulgado. Na maior parte, está confinado a alguns pequenos grupos de Facebook, Tumblr, blogues WordPress e postagens do Pinterest e a um punhado de tech hobbysts. Na arte e na ficção, há um conhecimento superficial advindo de HQs e coleções de short stories, como no caso da antologia Sunvault, que explora principalmente as eco-utopias ficcionais.
O que deveria interessar os anarquistas é como os valores de base do solarpunk são semelhantes aos do anarquismo social, em particular a post-scarcity do anarquismo de Murray Bookchin: descentralização, fusão do ecológico com o tecnológico, fusão do funcional com o ornamental, autonomia local, tomadas de decisão participadas e a unidade na diversidade. Quase acidentalmente, os solarpunks acabaram por chegar às mesmas conclusões que os anarquistas que se dedicam a manifestações artísticas. Esteticamente, é uma celebração do igualitarismo na base da liberdade, do qual o anarquismo político é um complemento natural.
Então, numa fase em que ainda está pouco divulgado, os anarquistas e os solarpunks têm muito a ganhar colaborando e imergindo nas ideias de uns e de outros. Para os anarquistas, o solarpunk pode tornar-se um campo fecundo para elaborar ideias e práticas libertárias através de meios estéticos e ficcionais. Para os solarpunks, as suas visões de sociedades livres e ecológicas e as experiências da eco-utopia e da ecologia, são uma porta para as teorias de Kropotkin de como refazer a cultura, a economia e a política, baseadas em linhas mais livres e ecológicas.
Claro que o anarquismo social não é estranho ao mundo das artes e da (sub)cultura. Embora, para a maioria isso tem sido uma forma de anarquismo individual, usando um meio para explorar as ideias anarquistas num nível de libertação pessoal. O que é raro é utilizar a cultura como um todo para fazer crescer uma consciência libertária à escala das massas. Isso é o que temos de tentar fazer mais no futuro e é isso que o solarpunk tem potencial para catalisar.
Precisamos de obras de arte que instilem uma consciência antiautoritária de olhar para o mundo e um ethos de autonomia, ajuda mútua e inter-relações ecológicas. O solarpunk é um dos melhores nichos culturais disponíveis para gerar obras artísticas deste gênero. O seu formato único de eco-especulação dá ao artista a liberdade de imaginar maneiras livres e alternativas de organizar o mundo. Para citar o teórico anarquista social Jesse Cohn, tirando “o ideal de dentro do real”, atualizando o que já existe potencialmente.
Não há maneira de predizer quanto tempo o solarpunk vai se manter popular ou se vai se resumir a apenas um pequeno grupo online de eco-geeks. Mas dada a sua óbvia riqueza como um espaço infrapolítico anarquista, vale bem a pena tentar fazer com que as coisas aconteçam.
Este artigo foi publicado na edição de verão do Freedom Journal. Para mais informações, dê uma olhada em solarpunkanarchists.com.
Fonte: https://freedomnews.org.uk/solarpunk-and-anarchists-infrapolitics/
Tradução > Patrícia Marmelada
agência de notícias anarquistas-ana
Nuvens inquietas
sobre o lago
zen.
Yeda Prates Bernis
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!