Considerando os pontos com os quais o anarquismo trabalha diária e historicamente, creio que exista um que seja pouco lembrado, ou ignorado. É bem sabido que as idéias-base do anarquismo sejam especialmente as do âmbito social, cultural, político, econômico e ecológico. Há outras áreas não tão trabalhadas, mas que têm uma importância relativa na perspectiva anarquista, como arquitetura, gastronomia, etc. No entanto, há um campo que o movimento antiautoritário/libertário não conseguiu trabalhar suficientemente, apesar de um histórico importante, o campo relacionado à espiritualidade.
Quando falamos de espiritualidade e sua conexão com o anarquismo, falamos de um conjunto de crenças e/ou práticas diversas e também de religião. O anarquismo conciliou sua ideologia com as principais religiões, como é o caso do anarquismo cristão defendido por Tolstói e o comunismo cristão que afirma que o anarquismo não entra em contradição com a Igreja Católica, e mesmo o distributismo na doutrina social católica é semelhante ao Mutualismo. Entre os anarquistas católicos notáveis estão Dorothy Day e Peter Maurin, que fundou o Movimento Católico dos Trabalhadores.
O anarquismo, da mesma forma, tem suas conexões, segundo alguns autores, com o Budismo. Eles apontam que as escrituras budistas, como o Kamala Sutra, têm uma ênfase inerentemente libertária, dando prioridade ao questionamento de toda autoridade e dogma, tendo a escolha pessoal devidamente informada como arbítrio final.
O revolucionário indiano e auto-proclamado ateu Har Dayal, bastante influenciado por Marx e Bakunin, e que tentou expulsar o domínio britânico do subcontinente, foi um exemplo surpreendente de alguém que no início do século XX tentou sintetizar ideias anarquistas e budistas. Depois de se mudar para os Estados Unidos, em 1912, ele veio a fundar em Oakland o Bakunin Institute of California (Instituto Bakunin da Califórnia), que descreveu como “o primeiro mosteiro do anarquismo”.
O mais surpreendente é uma religião conhecida como Dysnomianismo que busca fundir o anarquismo com a religião e as práticas ocultas. Seu texto principal, The Chronicles of Anarchy (As Crônicas do Anarquismo) (publicado no The Pirate Bay), apresenta uma visão geral das conexões entre o anarquismo e várias filosofias espirituais tradicionais de todo o mundo, especialmente aquelas com uma inclinação mágica e oculta. Esse livro tenta combinar todos os aspectos mais anarquistas da espiritualidade mundial em uma espiritualidade anarquista prática e coerente que vê a Dysnomia, a deusa grega da anarquia, como sua deidade central. Usando drogas psicodélicas e táticas anarquistas de ação direta, aqueles que seguem esse caminho são conhecidos como Dysnômios e utilizam os princípios da neuroplasticidade para libertar seus cérebros/mentes de todo condicionamento hierárquico e legalista para chegar a um estado conhecido como Anarkhos.
Poderíamos continuar com as conexões entre o anarquismo e o judaísmo, o gnosticismo, o islã, o neopaganismo que tem como principal difusora a escritora e ativista Starhawk… O taoismo… Muitos dos primeiros taoistas, como os influentes Laozi e Zhuangzi, criticaram a autoridade e aconselharam aos governantes que quanto menos controladores eles fossem, mais estáveis e eficazes seriam seus governos. Existe um debate entre os anarquistas contemporâneos sobre se isso conta ou não como uma visão anarquista. No entanto, se sabe que alguns taoistas menos Influentes, como Pao Ching-yen, defendiam explicitamente a anarquia. Os anarquistas dos séculos XX e XXI como Liu Shifu e Ursula K. le Guin , também se identificavam como taoistas.
A Fé Feérica ou a Crença nas Fadas também conta com suas conexões contemporâneas com o anarquismo como demonstrado pela figura do escritor autodenominado “elficólogo” Pierre Dubois, para ele os gnomos, fadas, duendes, farfadets, representam uma influência direta do Maio de 68 e simbolizam as forças indomáveis e acráticas da natureza frente a uma ordem binária e materialista. Para Dubois, anarquista “dans l’ame” como diriam os franceses, os contos de fadas e duendes encarnam um valor subversivo e moral frente às injustiças sociais e são uma espécie de catarses tanto para as crianças quanto para os adultos em busca do sentido da vida, e como o início de uma viagem. Recentemente, o anarquista Christopher Scott Thompson publicou seu livro “Anarquismo Pagão”, unindo práticas pagãs e mágicas com o anarquismo. Em menção especial o caso dos Whiteboys, chamados assim por usarem batas brancas, influenciados pelo reino das Fadas Mab, em sua luta contra a reintegração de posse de suas terras por parte dos latifundiários no século XVIII.
Os grupos eco-anarquistas de ação direta como o Earth First! e a Frente de Libertação da Terra, incorporam em seus comunicados e textos uma forte influência feérica, de duendes, neopagã e/ou situacionista que manifestam o simbolismo dos elfos (como também são chamados pelos ativistas) como eco-guerreiros em defesa da terra, dos animais e dos humanos.
O espiritismo também contou com um forte seguimento por parte dos círculos anarquistas localizados no estado da Catalunha no século XIX. Será em Barcelona, onde o primeiro Congresso Espírita Europeu acontecerá, em 1888. Nesse momento, a cidade contará com quase cem centros espíritas.
Essa corrente teve muitos adeptos e adeptas, sobretudo entre as mulheres anarquistas, como algumas anarco-espíritas argentinas e uruguaias, tais como Juana Rouco e Virgina Bolten ou a renomada espanhola Belén de Sárraga que durante os anos 20 do século XX utilizava as mensagens do além para dar um sentido mais combativo a suas atividades no plano material.
Conexões muito menos conhecidas são as do anarquismo com as Testemunhas de Jeová. O pastor Charles Taze Russell, um pregador estadunidense considerado o fundador dos Estudantes da Bíblia – o movimento que em 1931 aderiu ao nome de Testemunhas de Jeová -, escreveu essas palavras em 1916, pouco antes de sua morte. Para muitos, parecia o cumprimento dos Atos 20:29-38.
“Nós os encorajamos, queridos irmãos, a serem heroicos nesta prova para não perder a liberdade que ganharam de Cristo, que faria levar o homem à escravidão. Chegará um momento em que a oportunidade de espalhar a Verdade será mais ou menos dificultada e as pessoas que se opõem a nós tentarão nos acusar de anarquia. Esperamos que em um dia não muito distante nos digam:
“Vocês são anarquistas, contra o governo e contra as igrejas. Eles usarão os poderes do governo contra nós e aprovarão leis para desanimar os subversivos e seremos reprimidos com eles para assim nos dividir.”
Segundo as Testemunhas de Jeová, todas as organizações religiosas que não sejam as suas ensinam falsas doutrinas. Por essa razão, se creem em acordo com o que diz o Apocalipse 16:19: Babilônia a Grande se identifica como o império mundial da falsa religião ao não apoiar nem participar nos movimentos pela união das religiões.
Todas as organizações políticas e governos, que se colocam como uma solução para os problemas da humanidade, incluindo as Nações Unidas (às quais, no entanto, aderiram como ONG há alguns anos) serão eliminadas por Jeová. Por essa razão, e também pelo respeito a outras prescrições bíblicas neste sentido, se abstêm do uso de armas e de se alistar em corporações militares, praticando a Objeção de Consciência ao uso das armas. Se abstêm de expressar seu voto político, porque somente a lei de Deus é capaz ou digna de governar o mundo. Respeitam as decisões tomadas pelas autoridades governamentais, uma vez que creem derivar de sua autoridade.
O Anarquismo e o Hinduísmo têm alguns aspectos muito distantes (vide o sistema hierárquico de castas), mas rechaçam o sistema das igrejas dogmáticas: O sistema de castas é também rechaçado por muitas seitas hinduístas. Além disso, Deus é considerado como o Todo, o Absoluto (panteísmo), e cada ser humano deve ser considerado como um possível deus. Se o mesmo se tornar dono de si mesmo e não dos demais ou se submeter a outro ser humano, já que a divindade vive no interior de cada individuo.
O próprio Gandhi foi influenciado fortemente pelos pensamentos anarquistas de Tolstói e Thoreau:
“Os elementos anarquistas no pensamento de Gandhi não são poucos, nem secundários: e não é surpreendente, considerando que entre seus inspiradores estejam um Thoreau e um Tolstói. Alcançar a independência, o Swaraj, não significa que Gandhi crê em um estado igual aos do ocidente. Uma vez que os ingleses tenham sido expulsos, o poder não deverá mais pertencer a um pequeno círculo de políticos, mas sim às pessoas dispersas nas inúmeras aldeias. O debate pode ser dividido, compartido e generalizado, um instrumento de igualdade e não de opressão. Sobre a crítica à propriedade, Gandhi pode ser considerado um socialista, não teve dificuldades em definir-se como tal (em uma ocasião também se considerou um comunista). Um socialista com “fortes tendências para a anarquia.” Disse em Nirmal Kumar Bose, e é uma definição que pode ser considerada como boa, até porque as definições são válidas, logicamente”.
A Wicca é uma religião (filosofia descentralizada), na qual cada participante é livre para trocar rituais, orações, etc. Os princípios dessa filosofia estão bem definidos pelos seguidores da “Red” Wiccan: “Faça o que desejas sempre que isso não prejudicar outrem.” A partir do site oficial você pode ler:
“A wicca é uma religião das bruxas, uma religião que se centra no respeito à natureza, na qual se reconhece o deus e a deusa. Muitas das técnicas wiccanas são de origem xamânica, por aí, pode defini-la voluntariamente como uma religião xamânica, ainda que hoje em dia se abandonou as duras provas de dor ou de uso de alucinógenos, adotando a meditação, a concentração, visualização, música, invocação de dança e drama-ritual. Com essas técnicas espirituais, a bruxa alcança um estado de concentração e elevação espiritual”.
O grupo (grupo de wiccanos) é independente e não possui uma autoridade central que decida acima dos seguidores. Ainda que a maioria dos wiccanos não sejam anarquistas, as diversas ramificações da wicca, junto aos milhares de wiccanos solitários (que não pertencem a alguma ramificação), são uma manifestação da estrutura intimamente anárquica inerente à religião wicca.
Os wiccanos encontraram sua religião baseada nos princípios de tolerância e respeito à natureza, afirmando seu desejo de viver em harmonia com o meio ambiente. É, portanto, uma filosofia sem dogmatismo, que recomenda o respeito aos demais. Por outro lado, os wiccanos acreditam na existência da magia, definida como “energia cósmica” e presente em cada um de nós e em cada objeto.
A Stregheria nasceu no século XIV, sobre a base dos ensinamentos de Aradia e da Toscana. De acordo com os princípios da Bruxaria, o cristianismo permitiu que as classes mais ricas fizessem pobres os escravos, que, escapando de seus opressores, se tornariam ladrões e assassinos. Eles começaram a construir casas nos campos das colinas de Alban, ao redor do lado de Nemi, onde se encontram as ruínas do Antigo Templo de Diana Nemorensi (Itália Central).
A Stregheria concentra-se na figura da deusa Diana e seu filho, irmão e consorte de Lúcifer. Diana, vendo os pobres continuamente oprimidos pelos ricos e o clero católico, enviou sua Filha Divina Arádia (Herodias) à Terra, para libertar as pessoas de sua escravidão e fazer florescer a Velha Religião, ensinando métodos para maldizer os opressores ricos.
Inicialmente, a Stregheria honrava ao deus romano Lúcifer, à deusa romana Diana e sua filha Aradia. Lentamente, a Stregheria foi adotando um ponto de vista cada vez mais cristianizado de Lúcifer e Diana: Lúcifer foi descrito como um rebelde valente que se opunha ao deus tirano dos cristãos, enquanto Diana se converteu em uma figura próxima, Lilith.
Stregheria carece de autoridade centralizada, no sentido teórico do termo, ainda que as deidades sejam honradas como sábias mestras da vida.
Poderíamos seguir a lista interminável do anarquismo e sua conexão com o vudu, o discordianismo, o universalismo unitário…
Falta-nos uma estrutura sólida e mais trabalho para examinar os profundos nexos entre o anarquismo, a espiritualidade e a religião.
Pode até ser dito que as idéias anarquistas influenciam a maioria das principais crenças e religiões levando em conta a própria criação do anarquismo e seus cultos.
Anarkaos
Fonte: https://www.portaloaca.com/opinion/14368-anarquismo-y-espiritualidad-una-cuenta-pendiente.html
Tradução > Daitoshi
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!