Laure Batier conversa com Charles Reeve
A primeira tradução completa em francês do livro de Emma Goldman Vivendo Minha Vida (1931) foi publicada em novembro de 2018, pela editora radical parisiense L’échappée, com o título Vivre ma vie: une anarchiste au temps des révolutions: as tradutoras são Laure Batier e Jacqueline Reuss. A impressão de 3000 cópias foi vendida em um mês e a segunda edição continua a ter uma boa resposta. Agora uma nova edição alemã do livro está próxima, pela bem conhecida editora de Hamburgo, Nautilus, e a primeira tradução em português foi anunciada para 2020. Penguin Classics publicou uma versão resumida de Vivendo Minha Vida com uma introdução escrita por Miriam Brody, em 2006, e na Grã Betranha o Left Book Club (Clube do Livro de Esquerda) acabou de trazer Anarquismo e Outros Ensaios. Este interesse na autobiografia de Emma Goldman na Europa foi tão inesperado quanto é bem-vindo; levanta uma série de questões sobre a resposta do novo grupo de jovens leitores interessados em experiências radicais do passado. Em abril de 2019, Laure Batier apresentou Vivre ma Vie na livraria feminista em Montreal L’Enguélionne. Alguns dias depois ela conversou com Rail sobre a significância deste projeto.
Charles Reeve (Rail) > Por que traduzir Vivendo Minha Vida agora?
Laure Batier < Até agora, apenas uma versão resumida da autobiografia de Emma Goldman, incluindo apenas um terço do texto, estava disponível em francês. Isto era, na verdade, como disseram os próprios tradutores, mais uma adaptação de parte do texto do que uma tradução. A maioria dos leitores que achavam que conheciam a autobiografia tinham lido apenas a versão resumida e modificada. Então, quando a editora parisiense propôs que traduzíssemos o texto completo, aceitamos sem hesitação. Formamos um grupo de quatro pessoas: duas tradutoras e dois revisores/editores (Hervé Denés and André Bernard). O trabalho demorou quatro longos anos.
Enquanto o trabalho progredia, rapidamente nos tornamos cientes dos numerosos erros no texto original, erros de datas, lugares e fatos. Um bom exemplo: no primeiro capítulo do livro, Emma Goldman descreve suas emoções quando ela chegou como uma imigrante no porto de Nova York, onde ela viu a Estátua da Liberdade. No entanto, de fato, ela chegou em Nova York no final de 1885 e a estátua só estava de pé um ano depois! Tivemos, deste modo, que fazer muita pesquisa. Para isso, usamos, entre outras fontes, o grandioso trabalho de Candace Falk e sua fundação, o Emma Goldman Papers, situado em Berkeley, com arquivos que cobrem a vida e atividades de Goldman, especialmente durante seu período na América. Até agora, quatro volumes do A Documentary History of the American Years (em tradução livre: Uma História Documental dos Anos na América). Estes arquivos estão também completamente disponíveis online em: http://archive.org/details/emmagoldmanpapers.
Quando decidiu escrever a autobiografia, Emma Goldman não tinha nenhum arquivo pessoal, todos os papéis e documentos dela tinham sido confiscados pela polícia americana em 1917, quando ela foi presa por propagandear contra o projeto na época da Primeira Guerra Mundial. Por este motivo, ela pediu aos seus amigos que mandassem de volta as cartas que ela lhes escreveu ao longo dos anos. No entanto, na maior parte das vezes, ela dependeu da sua memória, a qual possui muitas limitações. A versão francesa que fizemos inclui a correção de muitos erros – erros que continuaram sendo reproduzidos nas várias edições da publicação americana original e, portanto, em traduções feitas a partir dela.
Rail > Como você explica o sucesso inesperado dessa tradução? Por que as pessoas estão interessadas no que Emma Goldman tem a dizer hoje?
Batier < Na versão francesa anterior, a maioria dos cortes tiveram a ver com os anos de Goldman na América. Porém, aqueles 35 anos representavam uma parte essencial da sua vida e atividades, e correspondeu ao período no qual ela se formou enquanto um ser humano e politicamente, quando ela se tornou quem ela era. Além disso, este período cobre um momento na história de movimentos emancipatórios nos Estados Unidos, movimentos de trabalhadores em particular, do final da década de 1880 até o fim da Primeira Guerra Mundial, que não é muito conhecido por leitores franceses. Durante os últimos anos, do Occuppy ao Black Lives Matter, tem aumentado o interesse na história de movimentos sociais nos Estados Unidos; a publicação e a ampla disseminação do livro de Howard Zinn, People’s History of the United States (em tradução livre: Uma História Popular dos Estados Unidos), foi parte disso. Assim, pensamos que era importante deixarmos o texto completo da autobiografia de Emma Goldman, disponível para leitores francófonos. A resposta ao livro, incluindo as numerosas resenhas em uma imprensa um pouco interessada em movimentos radicais, excedeu nossas expectativas. Até agora, Jacqueline Reuss e eu fomos chamadas para apresentar Vivre ma Vie em mais de 20 livrarias e vários coletivos por toda a França, como também em Montreal. As discussões ocasionadas pelo livro, especialmente entre grupos de jovens ativistas, confirmam a exatidão da nossa decisão em traduzi-lo.
Durante os últimos anos vivenciamos uma sucessão de protestos de movimentos sociais, os quais reativaram a crítica à democracia representativa, à necessidade de autogestão e ação auto-emancipatória. Depois do movimento dos indignados e as ocupações em praças (na Espanha, países árabes, Turquia, França), vimos na França e Alemanha a criação de ZADs (zones à defendre) – principalmente aquela em Notre-Dame-des-Landes, onde a ocupação e a ação coletiva forçou o cancelamento de um novo grande aeroporto proposto – e, recentemente, as mobilizações dos Coletes Amarelos. Tudo isto criou um solo fértil, pelo menos na França, para a renovação da discussão política e, particularmente, pela discussão de questões de autogestão e auto-emancipação. No entanto, essas questões eram uma parte integral da vida e das atividades de Emma Goldman, do seu pensamento, e o descobrimos na autobiografia. É a geração mais jovem e politicamente engajada, que sabe pouco ou nada sobre Goldman, que está particularmente interessada em discutir suas ideias; tenho visto com meus próprios olhos que as apresentações do livro em livrarias e coletivos em regiões fortemente afetadas pelas recentes mobilizações políticas, atraem pessoas mais jovens e provocam discussões mais animadas, mesmo se a grande maioria está acabando de conhecer Goldman e os eventos de sua vida, a radicalidade do movimento de trabalhadores americanos no começo do século 20, o que estava em jogo na Revolução Russa e os debates a que deu origem. Os posicionamentos originais de Emma Goldman em questões de sexualidade, relações entre os sexos, criatividade artística, teatro de vanguarda, o interesse dela por Freud e a forma que ela viveu sua vida íntima são atraentes. Pode-se ler o livro dela como um diário pessoal de uma mulher rebelde que viveu em um século em movimento. Por outro lado, em áreas onde o público é mais restrito dentro da esquerda clássica, até mesmo na esquerda anarquista, as discussões tendem a ser mais monótonas.
Rail > No geral, como as pessoas têm reagido as suas apresentações do livro? Quais perguntas são frequentemente feitas sobre ele?
Batier < Um certo número de questões são recorrentes: Qual era a concepção de anarquismo de Emma Goldman? Ela tinha um posicionamento sobre a questão judia? Qual era a relação dela com o movimento negro e a questão da escravidão nos Estados Unidos? Qual era a percepção dela da revolução alemã e o que ela pensava de revolucionárias como Rosa Luxemburgo? Durante a estadia dela na Rússia, ela entrou em contato com as mulheres russas revolucionárias? Ou com o líder do movimento libertário na Ucrânia, Nestor Makhno? Qual era a posição dela em relação a revolução mexicana? Como ela conciliou suas necessidades enquanto uma mulher livre com seu ativismo?
A maior parte dessas questões levam a longas discussões. Sobre suas ideias sobre anarquismo, por exemplo, seu posicionamento sobre propaganda pela ação evoluiu durante sua vida e pode ser resumida na fórmula: “O ato é nobre, mas é mal interpretado”. Por outro lado, ela sempre admirou fortemente teóricos como os anarquistas coletivistas Peter Kropotkin e Errico Malatesta. Durante a Guerra Civil Espanhola, seu desejo de apoiar a revolução a impediu de criticar publicamente a participação anarquista da CNT-FAI no governo republicano. Igualmente, durante a Revolução Russa, ela inicialmente recusou-se a criticar o partido bolchevique em função de não prejudicar a revolução, uma posição que a fez entrar em conflito com muitos de seus camaradas anarquistas. Foi apenas após a repressão às greves de Petrogrado e o massacre de Kronstadt, em março de 1921, que Goldman decidiu se opor abertamente a ditadura bolchevique.
Em outras questões, como lutas negras nos Estados Unidos, a posição de Goldman era limitada pelo seu período histórico. Por ela ser engajada nas lutas de uma classe trabalhadora de imigrantes violentamente explorada e reprimida que buscava uma posição na sociedade, ela teve muito pouco contato com proletários negros e radicais, os quais na época ainda constituíam uma pequena parcela em estados do norte. Dessa forma, ela teve pouco contato com a “questão negra”, além do seu tempo na prisão, no qual ela encontrou muitos afro-americanos encarcerados, com os quais sua solidariedade rompeu as barreiras da raça. Ela era similarmente não engajada com a “questão judia”: Se ela nunca negou suas origens, nunca deixou de enfatizar até que ponto sua jornada em direção à emancipação começou com o desapego dos costumes e tradições reacionárias da família e da comunidade. Mais tarde, na Rússia, ela não falhou em expressar sua repulsa e raiva contra os massacres antissemitas, antes e durante a revolução. Mas, basicamente, em todas essas questões, pode-se dizer que ela sempre viu a classe como mais importante do que qualquer ideia que hoje possa ser chamada de identitária.
Emma Goldman, juntamente com quase todos do movimento anarquista, rejeitava o marxismo e o identificava como social-democracia. Ela não era sensível às fissuras que se abriam na social-democracia sobre a questão da autogestão, o que Rosa Luxemburgo chamou de “a nova energia das massas” e o papel paralisante do partido. Quando, como muitos outros anarquistas, Goldman foi seduzida pelo voluntarismo de Lenin e suas táticas revolucionárias, ela não viu a nova força do movimento dos conselhos de trabalhadores e seu impacto na crise da social-democracia e como uma alternativa à ideia de um partido de vanguarda. Ela foi muito afetada pelo homicídio de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht por militares assassinos a serviço da liderança social-democrática alemã. Porém, apesar da sua relação próxima com Rudolf Rocker, um dos teóricos alemães do anarcossindicalismo, e o fato de que ela achou refúgio na Alemanha após a sua expulsão da Rússia Soviética, ela não parece ter tido muito interesse nos eventos da revolução alemã e o movimento do conselho.
Na relação entre ativismo e emancipação, Goldman nunca hesitou em confrontar seu próprio meio anarquista e seus lados machistas e conservadores. Foi em resposta a um camarada anarquista, que a repreendeu pelo seu amor em dançar, que ela deu a sua declaração mais famosa: “Eu quero liberdade, o direito à auto-expressão, o direito de todos a coisas lindas e radiantes”. Por fim, o que era excepcional sobre Emma Goldman era a sua ausência de dogmatismo. Enquanto mantinha seus princípios básicos, ela era capaz de olhar para a realidade, ouvir, questionar suas ideias, tomar novos posicionamentos, tanto na política quanto na vida pessoal. É a resposta das pessoas a essa atitude anti-dogmática, bem como a todas as questões que ela levantou, que faz as discussões sobre Vivre ma vie muito animadas, emocionantes e cheias de sentimentos.
Rail > Emma Goldman é frequentemente vista como uma importante precursora feminista. Como círculos feministas têm reagido ao livro?
Batier < Deve-se lembrar que as feministas modernas têm estado interessadas em Goldman, especialmente desde a década de 1970, pois ela assumiu posições que a deixaram muito à frente de seu tempo: no amor livre, na homossexualidade, na igualdade dos sexos, na exploração do corpo das mulheres e da prostituição, no controle da natalidade e, em geral, no controle das mulheres sobre seus próprios corpos. A respeito da reprodução do que hoje é chamado de “gênero”, Goldman enfatizou a igual responsabilidade das próprias mulheres. Mas ela assumiu uma posição fora do feminismo de seu próprio tempo. Esse movimento centrou suas demandas em direitos políticos, direito de voto e direitos sociais das mulheres na sociedade capitalista, direitos ao trabalho e salários iguais.Essas questões foram amplamente abordadas mais tarde pela social-democracia e pelos bolcheviques (principalmente por Alexandra Kollontai). Para Goldman, não havia como lutar pelo direito de voto e pelo trabalho. Claro, ela não era contra essas lutas, mas foi muito mais longe. Ela também insistiu que, na luta pela emancipação, as mulheres não deveriam se ver como inimigas dos homens: “Agora, a mulher é confrontada com a necessidade de se emancipar da emancipação, se ela realmente deseja ser livre. Isso pode parecer paradoxal, mas é, no entanto, muito verdadeiro”. Essa ideia se encaixa perfeitamente em seus princípios, que visavam à ampliação geral da emancipação social.
Vivre ma vie, como todos os escritos dela, amplamente disseminado nas redes sociais, certamente achou um eco no feminismo de hoje. Enquanto tradutoras, fomos chamadas a apresentar o livro em vários programas de rádio feministas – tanto em estações livres quanto oficiais – e eu acabei de falar na linda livraria feminista em Montreal. No entanto, deve-se enfatizar que a recepção do livro foi mais forte em círculos politicamente radicais do que especificamente no meio feminista. Algumas pessoas explicam isto pelo fato de que Goldman não abordou a questão feminista em termos de um conflito entre mulheres e homens… Eu não sei.
Rail > Você está dizendo que, na França, Vivre ma Vie é visto mais como um texto político do que feminista?
Batier < Eu diria que na França a maioria dos leitores, mulheres e homens, não fazem esta distinção. Os leitores de hoje da autobiografia de Goldman provavelmente associarão suas ideias, os princípios que guiaram a sua vida, com as experiências do Occupy, do Black Lives Matter ou com as greves autogestionadas dos professores de escolas americanas. Na França, as palavras dela conversam com aqueles se mobilizando nas ZADs ou com quem está lutando contra as consequências das políticas neoliberais.
A ideia de Emma Goldman, de que a emancipação depende de pessoas exploradas tomando suas vidas com as próprias mãos, continua sendo uma questão em chamas. Seu espírito de rebelião é pleno em todos aqueles que estão se mobilizando contra a destruição, o desastre do sistema capitalista e que estão tentando achar formas criativas de sair dele.
Fonte: https://brooklynrail.org/2019/09/field-notes/Emma-Goldmans-Adventures-in-France
Tradução > A Alquimista
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!