[Reino Unido] Fazenda anarquista: um festim revolucionário

A comida — ou a potencial falta dela — tem pesado na mente de muitas pessoas ultimamente. As mensagens contraditórias do governo, a desinformação e o jogo de forças desnecessário em relação à pandemia do coronavírus levaram a um consumo de pânico, induzido pelo medo, que evidenciou a fraqueza das cadeias de abastecimento “imediato”; que são, naturalmente, concebidas para maximizar o lucro em vez de satisfazer as necessidades essenciais das pessoas. Isto foi seguido por um aumento do número de pessoas comprando sementes, já que perceberam que agora pode ser um bom momento para começar a plantar os próprios alimentos – o meu projeto comunitário, a Bentley Urban Farm, vem tentando encorajar isto há anos!

Sendo algo tão fundamental para a vida, tem havido surpreendentemente poucos estudos sobre se o Reino Unido consegue realmente alimentar a si mesmo. A revista The Land forneceu um par de exceções significativas com os seus importantes textos Pode a Grã-Bretanha Alimentar-se a Si Mesma? (Can Britain Feed Itself?, Simon Fairlie, edição 4 Inverno 2007/8) e Pode a Grã-Bretanha Cultivar Para Si Mesma? (Can Britain Farm Itself?, Ed Hammer, edição 12 Summer 2012). Mas, como o próprio Ed Hammer observa, nenhum governo do Reino Unido achou adequado produzir um estudo com fundos públicos no mesmo sentido. Na verdade, a maioria dos relatórios DEFRA parecem mais preocupados com a economia e a produção de cultivos básicos para venda do que com a questão da segurança alimentar e da saúde no país. Felizmente, nós anarquistas medimos o mundo com medidas muito diferentes e o cofundador do jornal Freedom, Peter Kropotkin, procurou abordar esta questão há mais de um século no seu livro, Campos, Fábricas e Oficinas. (Spoiler alerta: relativamente à pergunta “Pode a Grã-Bretanha alimentar-se?”, tanto Kropotkin como Fairlie e Hammer respondem à pergunta com um retumbante Sim!)

No final do século XX, o editor do Freedom, Colin Ward, atualizou o trabalho de Kropotkin para criar Campos, Fábricas e Oficinas Amanhã, que está disponível na Livraria Anarquista Freedom. Ward começa a introdução de editor com estas palavras:

Campos, Fábricas e Oficinas é uma daquelas grandes obras proféticas do século XIX cuja hora ainda está por vir“.

Eu diria que, à luz da crise do COVID-19, essa hora definitivamente chegou. Kropotkin inventou o termo “apoio mútuo”, que definitivamente encontrou o seu momento com as respostas comunitárias que estão envergonhando o governo e as autoridades locais. Acredito que as teorias de Kropotkin e os estudos que fez em relação à agricultura do Reino Unido, são não apenas relevantes mas são provavelmente mais importantes do que nunca.

Como já mencionei, Fairlie, Hammer e Kropotkin estão confiantes na capacidade da Grã-Bretanha de alimentar a si mesma. O ensaio de Fairlie é inspirado no trabalho do ecologista escocês Kenneth Mellanby, que em 1975 concluiu que a Grã-Bretanha pode alimentar a si mesma se comermos menos carne. Ponho as cartas em cima da mesa, eu sou vegano totalmente liberacionista que vê a exploração da vida em qualquer forma (seres humanos, animais ou ecossistemas) como central para a maioria dos problemas do mundo. Como tal, o meu trabalho na Bentley Urban Farm concentra-se em permacultura vegana e “jardinagem de mercado” biológica (cultivo em pequena escala de frutos e vegetais, geralmente vendidos diretamente a consumidores ou a restaurantes).

A agricultura vegana com assistência de químicos é, de longe, a maneira mais eficiente de alimentar a nação, sendo um hectare de terra arável suficiente para alimentar 20 pessoas. O problema aqui, claro, é que a utilização de produtos químicos na agricultura está provocando um colapso ecológico. Seja diretamente através do uso de herbicidas e pesticidas, ou indiretamente através da criação pela agricultura industrial do gás com efeito estufa óxido nitroso (N2O), que é mais potente do que o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4). A permacultura vegana ainda funciona bem em comparação com todos os outros métodos agrícolas, embora um hectare dê para alimentar 8,5 pessoas.

Fairlie defende a redução do consumo de carne em vez da agricultura puramente vegana, de modo a que o estrume animal e humano possa ser utilizado para fertilizar a terra, e animais como porcos e galinhas possam ser utilizados para maximizar a produção, ao transformar resíduos em proteína. Os animais também fornecem recursos materiais como a lã, que num sistema vegano teria de ser suplementada através do cultivo de cânhamo e linho. Assim, Fairlie argumenta que a permacultura pecuária evita o uso extra da terra que os métodos agrícolas orgânicos veganos exigiriam. Pessoalmente, penso que Fairlie não abordou todo o uso da terra potencial ou a recuperação de recursos existentes; nem incluiu o potencial da “jardinagem de mercado”, da “produção hidropônica” e de outros métodos de cultivo urbano para aumentar a diversidade das culturas e fornecer micronutrientes essenciais. Algo a que voltaremos quando analisarmos Kropotkin. Para ser justo, porém, ele convida permaculturalistas vegans para o debate e o seu livro Carne: Uma Extravagância Benigna (Meat: A Benign Extravagance, Permanent Publications, 2010) continua a ser uma das análises mais aprofundadas da potencial segurança alimentar no Reino Unido.

Inspirado no trabalho de Fairlie, o ensaio de Ed Hammer analisa a capacidade da agricultura do Reino Unido para aumentar a produtividade e empregar um maior número de pessoas (uma chamada “dupla produção”) à luz do colapso financeiro de 2007/8. Economicamente falando, a peça de Ed será altamente relevante numa Grã-Bretanha pós-Covid, onde muitas das questões predominantes quando Ed escreveu o ensaio estarão mais uma vez no lugar central. A crise do COVID-19 já eliminou milhões de rendimentos regulares e verá mais negócios em todo o país fechando até que acabe. É provável que afete uma percentagem muito maior da população do que crise financeira alguma vez afetou. Infelizmente, o governo britânico já mostrou provas que, sem dúvida, colocará sempre a segurança financeira dos bilionários antes da das pessoas comuns. A União Nacional dos Agricultores (NFU) já pediu ajuda nos campos para impedir que as colheitas caiam em ruínas. Esta situação está encaminhada para piorar antes de melhorar. O último parágrafo do ensaio de Hammer diz:

“À medida que entramos no século da “intensificação sustentável”, é essencial que aqueles de nós preocupados com a realidade da produção de alimentos continuem a provocar debates e a exigir respostas às questões mais básicas relacionadas com o nosso abastecimento alimentar — talvez a começar com os simples cálculos da insegurança alimentar vs. aumento do desemprego. Porque se a alternativa for um homem, um computador e o campo de mil hectares, talvez em breve encontremos mais 150 mil aliados pedindo uma agricultura resiliente que apoie bom solo, pessoas saudáveis e uma cultura saudável.”

Podemos agora esperar ainda mais “aliados”, e o apelo à agricultura resiliente deve estar nos lábios (e megafones) de anarquistas em todo o lado. O que nos traz de volta a Kropotkin.

Enquanto que Farlie se concentra nas práticas agrícolas e tendências desenvolvidas no início da revolução verde e Hammer se concentra na economia e no emprego, Kropotkin, embora permanecendo cientificamente astuto, estava propondo mudanças socioeconômicas radicais para o melhoramento da humanidade. Em suma, ele exigiu uma revolução agrária anarquista.

No seu posfácio de Campos, Fábricas e Oficinas Amanhã, Colin Ward diz:

“Kropotkin pretendia uma sociedade que combinasse a agricultura de mão de obra intensiva e a indústria de pequena escala, ambas produzindo para as necessidades locais, num padrão descentralizado de assentamento em que a divisão do trabalho fosse substituída pela integração do trabalho intelectual e do trabalho manual e ele era otimista o suficiente para acreditar que as tendências na sua época estavam levando a este tipo de sociedade.”

A autonomia é obviamente uma maldição para todos os sistemas de poder centralizado e as populações modernas têm-se tornado indiscutivelmente mais paternalistas desde os tempos de Kropotkin, contando com uma “economia de rendas” e um estado com grande alcance para suprir as suas necessidades básicas. O que é ótimo para maximizar os lucros, mas — tal como acontece com as cadeias de abastecimento “imediato” — não é assim tão bom durante uma pandemia global.

Não que as coisas estivessem perfeitas há um século atrás. O próprio Kropotkin lamentou as atitudes geralmente mantidas em relação ao uso de ferramentas e ao trabalho manual que foram fundamentais para a sua visão de poder descentralizado através da produtividade descentralizada.

“Nos tempos antigos, os homens da ciência, e especialmente aqueles que mais fizeram para avançar o crescimento da filosofia natural, não desprezavam o trabalho manual e o artesanato. Galileu fez os seus telescópios com suas próprias mãos. Newton aprendeu na sua infância a arte de lidar com ferramentas: […] Linnaeus tornou-se botânico enquanto ajudava o seu pai — um jardineiro — no seu trabalho diário.”

Tais atitudes em relação ao trabalho físico são produto da divisão do trabalho criada por todos os regimes hierárquicos e autoritários. A classe dominante (seja a realeza, sacerdotes, banqueiros ou oligarcas), muito compreensivelmente, procura evitar o trabalho e encorajar/forçar os outros a cumprir as suas ordens. Com o tempo, as normas e valores da cultura dominante são usados para justificar divisões de casta e de classe até que a sociedade se convença de que qualquer injustiça é simplesmente a “natureza humana” (ou a “vontade de Deus”, dependendo da cultura). A cultura ocidental internalizou tanto a pretensiosidade em relação ao uso de ferramentas e ao trabalho manual que muitas pessoas de outra forma inteligentes podem ser descritas, sem malícia ou julgamento, como “praticamente inúteis”. Uma situação para a qual Simon Fairlie, noutro dos seus ensaios na Land, descreveu como “dystechnia” (Growing Up DystechnicThe Land, edição 12, Verão 2012). O problema da dystechnia tem vindo a aprofundar-se nos últimos tempos, à medida que as escolas, as instituições e o programa nacional se tornaram cada vez mais avessos ao risco, criando uma tendência para evitar o uso prático de ferramentas (na Bentley Urban Farm recebemos uma vez uma doação de ferramentas do conselho local que eles já não usavam porque tinham cabos de madeira, que podem formar farpas!).

Como mencionei num artigo anterior sobre a Bentley Urban Farm, temos testemunhado em primeira mão o poder transformador que o trabalho físico produtivo pode ter sobre as chamadas “crianças problemáticas” que foram excluídas da escola (eu diria que a exclusão é um “problema” muito maior do que qualquer criança que eu tenha conhecido ). “Jardinagem de mercado” não é apenas uma forma de cultivar alimentos, é terapia para um mundo distécnico. Quando mente e corpo são usados juntos (especialmente num ambiente ao ar livre) há uma harmonia que não pode ser alcançada num ambiente de sala de aula tradicional (centrado na mente). Isto não quer dizer que toda as pessoas  possam se destacar nas atividades práticas, ou que o trabalho físico é de alguma forma melhor do que o trabalho mental, mas todas as pessoas estão definitivamente empobrecendo as suas vidas se não se envolverem com atividades práticas na medida em que lhe é possível.

Devo ser claro que não estamos aqui falando de “trabalho”. Kropotkin era muito entusiasmado com os avanços de técnicas de cultivo. Ele fala muito de “agricultura intensiva”, o que pode ser um pouco confuso para o leitor ou a leitora moderna, mas o seu trabalho antecede a chamada “revolução verde” da agricultura industrial. Kropotkin está na verdade falando sobre o potencial de estufas e “jardins de mercado” para fornecer alimentos a nível local e comunitário e o seu trabalho está muito no estado de espírito do atual ‘cavar para a vitória’:

“Durante milhares de anos consecutivos, cultivar a própria comida foi o fardo, quase uma maldição, da humanidade. Mas já não precisa ser assim, Preparem vocês próprios o solo, e em parte a temperatura e a umidade que cada cultura requer, verão que para cultivar o alimento anual de uma família, em condições racionais de cultura, requer tão pouco trabalho que pode quase ser feito como uma mera atividade secundária. Se voltares ao solo, e cooperares com os teus vizinhos em vez de erguer muros altos para te esconderes dos seus olhares; se utilizares o que experiências já nos ensinaram e pedires ajuda à ciência e à invenção técnica, que nunca deixam de te ajudar — vê apenas o que eles fizeram pela guerra — ficarás espantado com a facilidade com que podes retirar alimentos ricos e variados do solo.”

A visão de Kropotkin, como a de William Morris e de Ebenezer Howard, foi uma em que as divisões entre cidade e país, casa e fábrica, escola e galeria, são indefinidas. A humanidade viveria em comunidades auto-organizadas apoiadas pela indústria de pequena escala e pela produção de alimentos mais localizada. Isto pode parecer um sonho distante, mas os avanços da tecnologia e metodologia tornam realmente a visão de Kropotkin de um mundo melhor, mais brilhante e mais corajoso, mais possível do que nunca — se estivermos preparados para abraçar o entusiasmo de Kropotkin pela inovação.

Kropotkin tinha razão relativamente ao poder libertador de novas técnicas hortícolas. Embora ainda seja intenso em comparação com a agricultura industrial, a “jardinagem de mercado” é um mundo longe do trabalho árduo da agricultura pré-industrial —  diz alguém que dirige um projeto onde as pessoas cultivam plantas para o benefício do seu bem-estar mental e físico. O cultivo de alimentos deve ser parte integrante da vida cotidiana. Cada um de nós deve cultivar algo que goste de comer. Todas as escolas devem ter um “jardim de mercado”, todas as universidades um terreno para cultivo. Um estudo recente da Universidade de Sheffield descobriu que só a terra urbana de Sheffield poderia cultivar frutas e vegetais para 90.000 pessoas, e que cultivar em parques, telhados e outros espaços urbanos poderia fornecer 15% dos “cinco do dia” (relativo às campanhas para o consumo de pelo menos cinco porções de fruta e vegetais por dia) do país (O potencial oculto da horticultura urbana, Jill L. Edmondson et al, Natureza, 2020).

Considero este relatório encorajador, mas penso que devemos olhar para um plano mais abrangente. Precisamos cultivar comida em parques? O problema com os espaços verdes municipais é, para ser franco, que eles são demasiado municipais. Queremos realmente substituir fileiras retas de arbustos por fileiras retas de vegetais? Na Bentley Urban Farm, temos feito experiências com plantas que podem reavivar parques urbanos, adicionando valor potencial em momentos de necessidade. E se, em vez de cultivar comida, usássemos parques para cultivar os estrumes verdes que Fairlie menciona? Plantas como a facélia são bonitas, perfeitas para estrume verde e têm o bônus adicional de serem ótimas para polinizadores – facélia é como catnip para abelhas, todos devem cultivá-la (não é nativa, portanto é melhor ser cultivada em parques e jardins privados). Tais plantas fornecem cobertura verde durante o inverno para suprimir ervas daninhas e manter os ecossistemas do solo saudáveis; beneficiar a vida selvagem enquanto florescem; e podem ser cortadas para fornecer estrume verde para outros locais para reduzir a necessidade de num sistema vegano cultivar estrume verde em terras agrícolas.

Da mesma forma, plantas como a couve marinha, oca, yacon e espinheiro de mar podem ser cultivadas enquanto ornamentação de um parque, com pouca manutenção necessária. Tal como acontece com a facélia, estas são benéficas para a vida selvagem, mas também podem ser usadas como culturas para alimentação em tempos de emergência. Na permacultura, isto é conhecido como “empilhamento de funções”. A permacultura é um sistema de design que aprende e ecoa de ecossistemas naturais em benefício dos seres humanos e do restante da natureza. É apenas uma das inovações que surgiram no século desde que Kropotkin publicou Campos, Fábricas e Oficinas que tornam a sua visão ainda mais possível. Outra é a hidroponia, que permite maior produção de alimentos em áreas urbanas pobres em terreno.

Hoje em dia, com plantações de cannabis aparentemente em quase todas as ruas do Reino Unido, a tecnologia hidropônica tem mais do que provado a si mesma (ao contrário das leis de proibição e subsequentes leis para drogas, que se revelaram prejudiciais para a segurança da sociedade) e cada comunidade tem agora o conjunto de habilidades transferíveis que permitiria aos e às cultivadoras de erva diversificar para culturas alimentares (uma vez que o lucro não seja mais um motivador-chave). O cultivo de cannabis ilustra perfeitamente tanto o potencial dos novos métodos de cultivo como o poder dos métodos de produção descentralizados.

Desenvolvimentos como a permacultura e a hidroponia tornam a visão de Kropotkin para a produção localizada de alimentos mais fácil e mais possível do que ele poderia imaginar. Outras novas tecnologias, como as máquinas de moagem CNC, o corte a laser e a impressão 3D (coletivamente conhecidos como um Fab Lab), fazem o mesmo pelo seu sonho de manufatura local descentralizada. Na verdade, milhares de impressoras 3D em todo o Reino Unido foram recentemente utilizadas para compensar a falta de equipamento de proteção individual para as equipes hospitalares e outros trabalhadores chave durante a atual pandemia em mais um belo ato de apoio mútuo. Nenhum anarquista deve surpreender-se com o fato de que o governo nos tem falhado durante este período de crise. Mas todo anarquista deve ganhar esperança com as ações altruístas de indivíduos e comunidades neste tempo de necessidade. A lição é clara. Nós podemos, e devemos, cuidar de nós mesmos. Agora, onde é que eu pus essa pá?

Warren Draper

Fonte: https://freedomnews.org.uk/anarchist-farm-a-revolutionary-feast/

Tradução > Ananás

agência de notícias anarquistas-ana

colheita de laranja
o trem que passa leva
um cheiro doce

Rosa Clement