Por Daniel Ávalos| 08/02/2020
Correspondem ao “momento exato do fuzilamento” do anarquista que surpreendeu os cronistas da época pela dignidade com que enfrentou sua morte, ao contrário do saltenho que protagonizou o primeiro Golpe de Estado do século XX.
“Recentemente no Arquivo Geral da Nação (AGNA) se encontrou um grupo de fotografias inéditas correspondentes ao momento exato do fuzilamento de Severino Di Giovanni ocorrido em 1º de fevereiro de 1.931”. Tratava-se de um dos vários militantes anarquistas fuzilados pelo homem que protagonizou o Golpe de Estado que derrubou o presidente constitucional Hipólito Irigoyem, um 6 de setembro do ano de 1930.
Uriburu havia nascido em Salta em 20 de junho de 1867 e partiu para Buenos Aires em 1881 para concretizar seus estudos secundários e em seguida ingressar no Colégio Militar, dando início a uma carreira que coroou com o que foi o primeiro golpe de estado do século XX. Um golpe que inaugurou um processo de meio século de interrupções violentas, de governos constitucionais, mas também o marco conceitual para todos os que o seguiram até chegar ao mais macabro de todos: o de 1976.
Esse marco conceitual ficou estampado no “Manifesto Revolucionário” redigido por Leopoldo Lugones, o homem a que muitos assinalam com o desmesurado título de grande poeta nacional e que se encarregou de justificar as ações de Uriburu. Leiamos Lugones: “Expoentes da ordem e educados no respeito às leis e às instituições, assistimos atônitos ao processo de descontrole sofrido pelo país nos últimos anos”. Os golpistas são assim. Poderosos sempre atônitos ante os descontroles produzidos pela democracia; seres que se sentem eleitos; homens que em nome das leis que violentam e as instituições que desmantelam se sentem autorizados – escreveu Lugones nesse manifesto – a apelar “à força para libertar a nação”. Uriburu executou a ideia após anos de conspirações e convencido de que era o redentor da nação e encarnava isso que Lugones no panfleto “A hora da espada” definiu como “Chefes Predestinados”: aqueles que devem mandar “por seu direito de melhor, com ou sem lei, porque esta, como expressão de potência, confunde-se com sua vontade”.
Mas Uriburu só foi um simulacro crioulo de Benito Mussolini o qual sem êxito quis imitar no plano pessoal e no que se refere a formação da sociedade. Como o Duce italiano, pretendeu mobilizar as massas ainda que só conseguiu aproveitar-se do descontentamento com o governo radical e aglutinar uma gangue de jovens “de bem” que querendo ser os camisas negras italianos, gozaram de impunidade para que de seu elitismo ofendido brotasse a fúria contra filhos de imigrantes a quem identificavam como elementos corrosivos ao ser nacional.
Para Uriburu nada saía como ele queria: em vez de encabeçar uma revolução precisou de uma Corte Suprema de Justiça à qual prometeu não importunar em troca de um acordo que reconhecia seu governo provisório repleto de membros da Sociedade Rural e do Jockey Club; diferente das experiências fascistas europeias às quais aspirava parecer, não criou vigorosas instituições para assentar seu poder, porque só conseguiu o apoio da marinha e de um exército que ficou a mando de quem impulsionando-o a derrubar Irigoy e que logo se converteria em presidente: Agustín P. Justo.
Uriburi, enquanto isso, fazia o trabalho sujo: dissolveu o Congresso, interveio nas províncias e também nas universidades; reduziu os investimentos em obras públicas, salvo as vinculadas à pátria agroexportadora; cortou 37.479 empregados públicos em seis meses; suspendeu as leis trabalhistas; levou uma desaforada luta contra o bolchevismo comunista na qual foram processados todos os opositores; inaugurou a Seção Especial da Polícia Federal que terminou comandada pelo filho do poeta Lugones que também se chamava Leopoldo, mas a quem chamavam de “Polo” e adquiriu fama por aperfeiçoar métodos de tortura e inventar a vara elétrica.
A dignidade
Uriburu também instaurou a Lei Marcial pela qual fuzilaram anarquistas entre os quais sobressaiu o caso que agora nos ocupa: Severino Di Giovanni a quem Osvaldo Bayer imortalizou com um livro menos popular que a “Patagônia Rebelde”, mas igualmente rigoroso no qual recolho documentação de referência.
O fim do anarquista foi de uma dignidade da qual carecia o ditador. Se o primeiro pôde se registrar é porque isso ficou atestado nas muitas crônicas jornalísticas que cobriram um fuzilamento que o ditador converteu em espetáculo público para amedrontar “subversivos”. Roberto Arlt, foi um desses cronistas e seu relato fez parte das “Aguas Fuertes” que publicava no diário El Mundo.
Com seu estilo impessoal, Arlt estampou frases como as que seguem: “(…) É Severino Di Giovanni. Mandíbula proeminente. Testa alongada até as têmporas como as panteras. Lábios finos e extremamente vermelhos. Testa vermelha. Bochechas vermelhas. Os lábios parecem chagas polidas. Se entreabrem lentamente e a língua, mais vermelha que um pimentão, lambe os lábios, os umedece. Esse corpo arde em temperatura. Sente a morte (…) Di Giovanni olha o rosto do oficial. Projeta sobre esse rosto a força tremenda de seu olhar e da vontade que o mantêm sereno (…) O réu se senta repousadamente no banquinho. Apoia as costa e ergue o peito. Olha acima. Logo se inclina e parece, com as mãos abandonadas entre os joelhos abertos, um homem que cuida o fogo enquanto aquece a água para o mate (…) O suboficial quer vendar o condenado. Este grita ´Venda não´. Olha duramente os executores. Emana vontade. Se sofre ou não, é um segredo. Mas permanece assim, rígido, orgulhoso”.
Assim redigiu Arlt a cena final do homem que vai morrer e espera o momento com uma integridade que a todos emudece. Um segundo antes de que o pelotão aperte os cinco gatilhos que produzirá a descarga letal, Di Giovanni grita “Viva a anarquia” e o grito e o estrondo dos disparos emudece os granfinos de camarote e sapatos de baile que celebravam o governo decidido a terminar de uma vez com as escórias que contaminam a pulcra essência do ser nacional. A cena provoca a que o repórter do diário Buenos Aires Herald – também citado pelo livro de Osvaldo Bayer – dê a sua nota um fechamento inesperado para os leitores desse meio gráfico: “A descarga terminou com o mais belo dos que estavam presentes”. Roberto Arlt, também comovido pela dignidade do fuzilado e a frivolidade dos cidadãos de bem, finaliza sua nota fazendo referência a esse setor da sociedade: “Eu estou embriagado. Penso nos que riam. Penso que na entrada da Penitenciária deveria ser colocado um cartaz que dissesse: ´Está proibido rir´. ‘Está proibido participar com sapatos de baile'”.
A fuga sem integridade
O fim da experiência ditatorial de Uriburu careceu da dignidade concebida pela imprensa da época para com as vítimas do ditador. Suas reformas corporativistas a moda de Mussolini mediante as quais pretendia que diversos setores produtivos e sociais substituíssem os partidos políticos, nunca tiveram chance de realização. Deve ter acreditado que o desprestígio do radicalismo em 1930 supunha apoio automático a ditadura e então autorizou em abril de 1931 eleições para governador em Buenos Aires na qual arrasaram os radicais levando o ditador a invalidar os resultados.
Cansados do simulacro de liderança, a ordem conservadora da qual o próprio Uriburu era parte preferiu acabar com o experimento e armou novamente o regime que o irigoyenismo havia alterado a partir de 1916. Uriburu fez então sua última colaboração: chamou eleições nacionais para fins de 1931 e condicionou tanto as mesmas que o radicalismo se absteve de participar. A abstenção garantiu o triunfo de Agustín P. Justo a quem o próprio ditador pôs o grupo presidencial em fevereiro de 1932. A Década Infame e a chamada Fraude Patriótica haviam nascido. Uriburu partiu então a Paris. Dois meses depois, em 29 de abril desse ano, morreu sem que ninguém lhe dedicasse uma crônica.
Tradução > Sol de Abril
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!