Na preparação para a eleição presidencial, foram propostas inúmeras teorias chocantes sobre as táticas que Trump poderia empregar para se manter no poder de forma ilegítima. Invocar o Decreto de Insurreição, eleitores infiéis, decisões espúrias da Suprema Corte e milícias armadas de extrema-direita atacando locais de votação foram todos citados como ameaças potenciais a uma transferência normal de poder caso Trump perdesse no voto.
No final, é claro, Trump perdeu e nada disso aconteceu. No momento em que escrevia este texto, apenas o próprio Trump e alguns de seus bajuladores mais iludidos ainda estavam tentando contestar os resultados. Até a Fox News e Jared Kushner pediram que ele cedesse com elegância. O Partido Republicano não mostrou interesse em ir até as últimas consequências para empurrar Trump para um segundo mandato – ou para atender ao desejo de guerra civil de seus seguidores mais extremistas.
Precisamos, então, fazer a pergunta: por que não? Por que um partido que passou a maior parte de sua existência tentando limitar o direito ao voto, cujos grupos se tornam mais desfavoráveis a cada ano, aceitaria a derrota de seu mais carismático líder desde Reagan, com tão pouca luta, por uma questão tão pequena como perder uma eleição justa? O que se segue é fácil de perceber agora, mas ainda vale a pena considerar, pois estamos tentando dar sentido a cenários políticos futuros. Algumas reflexões:
Primeiro, a classe dominante não tem problema algum com Joe Biden na Casa Branca. Eles podem ter sutis suspeitas em relação ao Partido Democrata como instituição, mas o próprio Biden é um porto seguro para eles. Um político que provavelmente seria republicano se não fosse de um estado fortemente democrata, Biden tem sido um fiel vassalo do setor bancário em toda sua carreira. Este é o cara que foi responsável pela “reforma” da falência, que transforma tantos devedores pobres em escravos dos gigantes das finanças; que habilmente auxiliou a administração Clinton na criminalização da pobreza e na expansão do complexo industrial da prisão; que consistentemente apoiou as guerras no Iraque e no Afeganistão; que escolheu uma ex-promotora cruel como companheira de chapa. Poderíamos ter visto uma resposta diferente se Bernie Sanders fosse o candidato democrata.
Segundo, a liderança de Biden era grande o suficiente para seriamente complicar qualquer tentativa de derrubá-la por meio de manobras legais desonestas. A eleição presidencial de 2000 veio abaixo por menos de 600 votos num único estado, onde os republicanos venceram na contagem inicial e precisaram apenas interromper a recontagem. Em 2020 os republicanos teriam de ganhar recontagens em pelo menos três estados, invalidando dezenas de milhares de votos no processo e preservando votos similares nos estados onde estavam à frente na contagem. Estas contorções legais necessárias para ser bem-sucedido prejudicariam seriamente a legitimidade da Suprema Corte, justamente quando eles finalmente tinham alcançado uma supermaioria conservadora. Não é muito surpreendente que o partido preferiu preservar a corte e se livrar de Trump.
Terceiro, o problema provou que eles não conseguem realizar uma mobilização nacional de modo efetivo. As várias tentativas de um “motim Brooks Brothers 2.0” [1] nunca chegaram perto de interromper qualquer contagem de votos. Na quinta-feira depois da eleição, os policiais da Filadélfia prenderam um casal de reacionários numa [picape] Hummer, que veio da Virgínia, com um fuzil de assalto e uma caixa com cédulas de votação falsas (não ficou claro qual era exatamente o plano). Isso gerou um previsível alvoroço na mídia, obscurecendo o fato de que seriam necessários centenas de caras como aquele, em cada cidade onde a votação estava perto, para fazer alguma diferença no resultado da eleição. A maior parte da extrema-direita foi para a cama, na terça-feira à noite, convencida de que Trump estava ganhando, sem saber do enorme acúmulo de votos não contados de áreas urbanas fortemente democratas. Quando Wisconsin ficou azul, eles foram pegos de surpresa e completamente despreparados, especialmente para não invadir cidades como Detroit e Filadélfia, onde Trump é amplamente detestado. A campanha de Trump poderia ter evitado esse problema com algum tipo de estratégia coordenada de ação reacionária, mas esse não é o tipo de coisa em que eles são bons e provavelmente teria sido impossível manter em segredo em qualquer caso.
Quarto, há a ameaça de uma revolta de massas. O levante de George Floyd deu às classes dirigentes uma viva prévia de seu pior pesadelo – fogo em delegacias, policiais subjugados, zonas autônomas livres de polícia no meio das maiores cidades. O nível de repressão necessária para esmagar os protestos resultantes de qualquer tentativa de derrubar a eleição não teria apenas assegurado mais quatro anos de Trump na presidência; teria significado efetivamente instalá-lo como ditador vitalício – uma perspectiva que nem mesmo a Fox News apreciaria. E esse é o melhor cenário deles. Não há garantia de que eles teriam vencido essa luta.
Depois de tudo que foi dito acima, faz muito mais sentido para os republicanos preservarem a fachada de democracia ao conceder a eleição e recuarem até sua comprovada estratégia de oposição, mais do que arriscar tudo numa tentativa de golpe em favor de um cara que muitos deles privadamente desprezam. Já vimos essa estratégia com frequência para termos uma boa ideia do que vem pela frente.
No caso bem provável de os republicanos pegarem pelo menos um assento no senado nas eleições de segundo turno da Geórgia, em janeiro, Mitch McConnell poderá novamente bloquear qualquer legislação ou nomeações que desejar. Espera-se que ele use esta influência para “forçar” Biden a aceitar o gabinete conservador neoliberal que Biden quer de qualquer forma, mas precisa de uma desculpa para nomear. Um significativo projeto de lei de estímulo, a revogação dos cortes feitos por Trump ou qualquer outra medida humana estarão fora de questão. Se os democratas conseguirem obter ambas as cadeiras do senado da Geórgia, os republicanos vão apelar para a estratégia “blue dog” [2], empregada em 2009 e 2010, recrutando senadores democratas conservadores para cruzar o corredor e bloquear uma legislação progressista.
Biden já está fazendo barulho sobre “curar a nação”. Ele provavelmente não perdoará Trump, mas não espere que o Departamento de Justiça será muito ativo em processar seu ex-comandante em chefe ou seus facilitadores. A desculpa, como sempre, será a da suposta necessidade de se aproximar dos republicanos moderados para ganhar a próxima eleição. Nas eleições do meado de 2022, muitos democratas ficarão bastante desapontados com a ineficácia estrategicamente direcionada de Biden, ficando em casa ou até mesmo se bandeando por desgosto para o lado republicano. O Partido Republicano será ajudado na Câmara por arranjos, pois acabou de obter controle em muitas legislaturas estaduais em um ano de recadastramento distrital.
Normalmente, esta seria uma receita para negócios políticos como de costume, na qual o partido que ganha a Casa Branca perde terreno no Congresso na próxima eleição. Dessa vez pode ser diferente. Para começar, os republicanos estão defendendo quase o dobro de cadeiras que os democratas têm no senado. Ambos os partidos terão um trabalho duro para mobilizar todos os eleitores que vieram apoiar ou se opor a Trump; mas os fãs de Trump estarão particularmente furiosos com o establishment republicano que eles acreditam ter abandonado o seu fascista laranja favorito. Os republicanos precisam, de algum modo, cooptar uma heterogênea variedade de seguidores do QAnon [3], “boogaloo bois” [4] e milícias reacionárias em um bloco eleitoral eficaz, e eles podem não conseguir isso, pelo menos não antes das eleições de meio de mandato. O próprio Trump poderia ser um elemento de peso se ele quisesse, mas neste ponto é difícil imaginá-lo incitando seus seguidores a votarem em candidatos republicanos establishment. Ainda assim, é mais provável que os democratas farão pouco melhor do que empatar, levando a mais dois anos de impasse.
Mas, como de costume, quando não há esperança na política eleitoreira, as ruas são outro papo. A fúria relacionada ao assassinato de George Floyd não se dissipou, mas está esperando para explodir novamente no próximo assassinato policial filmado ou em outro escândalo. Um cenário plausível é o de uma insurreição como a da Polônia se a Suprema Corte de Amy Coney Barrett revogar o caso Roe v. Wade [5]. Mesmo sem outro levante, uma economia deteriorada, uma pandemia esmagadora e um péssimo presidente nos proporcionam um terreno fértil para organizações de base e ação direta. Quando perceberem a realidade do “vencer” uma eleição entre dois racistas e multimilionários corruptos, as pessoas se tornarão mais receptivas a soluções por fora do espetáculo eleitoral.
Fonte: https://itsgoingdown.org/how-trump-lost-whats-coming-next/
Tradução > Erico Liberatti
Notas do tradutor:
[1] O motim Brooks Brothers (“Brooks Brothers riot”) ocorreu em novembro de 2000, no contexto das eleições presidenciais daquele ano, quando se confrontaram o republicano George W. Bush e o democrata Al Gore. Ver: https://www.newsweek.com/what-brooks-brothers-riot-stop-count-protests-draw-comparisons-november-2000-election-chaos-1544989
[2] A Coalizão “Blue Dog” é um grupo de políticos democratas que defendem posições conservadoras. Ver: https://bluedogcaucus-costa.house.gov/about
[3] Teoria da conspiração promovida por grupos de extrema-direita. Detalhes em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-17/qanon-a-nova-teoria-da-conspiracao-que-se-prepara-para-entrar-no-congresso-dos-eua.html
[4] Grupo de extrema-direita. Sobre: https://www.bbc.com/news/blogs-trending-53018201
[5] Caso em que Supremo Tribunal dos EUA decidiu, em 22 de janeiro de 1973, que era inconstitucional a regulamentação estatal indevidamente restritiva ao aborto. Ver: https://www.britannica.com/event/Roe-v-Wade
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