Apesar da avassaladora Covid-19, o ano de 2020 nas Américas foi marcado por inúmeros protestos também nas ruas.
No Chile, milhares saíram às ruas, alguns revoltados contra as autoridades e outros reivindicando uma nova Constituição (a atual é a mesma da ditadura Pinochet).
No Peru, Manuel Merino foi deposto em decorrência de manifestações que também clamavam por uma constituinte (a atual é a mesma da ditadura Fujimori).
Na Colômbia, o governo de Ivan Duque, depois de reprimir lideranças camponesas, também foi alvo da insatisfação.
Na Guatemala, o estopim para as movimentações foram cortes, em plena pandemia, no orçamento destinado à saúde.
No Haiti, uma greve geral foi organizada contra a política de Jovenel Moise.
Nos Estados Unidos, após a execução de George Floyd por um policial, milhões caminharam por semanas.
Não foram poucos os que enfrentaram diretamente tropas do Estado fortemente armadas e organizações fascistas.
No México, com mais intensidade desde setembro do ano passado, são incansáveis as manifestações frente ao aumento das violências e execuções de mulheres e meninas. Protestam contra a polícia e o governo de Andrés Manuel López Obrador. A presença anarcofeminista é estrondosa.
Mais recentemente, nos primeiros meses de 2021, foi a vez do Paraguai assistir o clamor indignado contra a maneira como o presidente Mario Abdo trata o novo coronavírus.
Há inúmeras diferenças entre os protestos citados acima. Contudo, mesmo diante das recomendações e protocolos adotados por autoridades no combate a Covid-19, eles expõem as ruas como o espaço no qual uma situação política pode ser invertida ou radicalmente interrompida.
E no Brasil?
No final de maio de 2020 protestos promovidos por torcedores de futebol associados às torcidas antifascistas ocorreram em algumas cidades. As ações conseguiram o que propunham, isto é, afastar das avenidas, aos fins-de-semana, grande parte dos uniformes verde-e-amarelo bolsonaristas. Entretanto, em ano eleitoral, uma parte considerável dos manifestantes foi enredada em palanques ditos progressistas e pouco afeitos às corajosas transformações.
Ainda em meio às manifestações, centrais sindicais, partidos de esquerda e frentes unificadas conseguiram mudar as manifestações de endereço e associá-las aos protestos antirracistas no EUA. Com isso, em dois finais de semana as contramarchas que tinham os bolsonaristas como alvo minguaram.
Depois de quase um ano, a situação de miséria e desemprego seampliou exponencialmente. As mortes por infecções do novo coronavírus, facilitadas pela sintaxe macabra propagada desde o governo federal, também cresceram.
Frente a isto, nenhuma convulsão. Pelo contrário, a despeito dos infindáveis cadáveres, as ruas seguem o ritmo ordinário, cheias de pessoas em direção aos seus empregos com transporte público reduzido e propagando contaminações. Novamente, a esperança em um pleito, na “justiça”, isto é, na eleição de 2022 como responsável pela manutenção do clima cordato e ordeiro.
Não há o que esperar. A cada segundo, as violências do Estado aumentam e recrudescem. Como bem situou um filósofo, revoltas acontecem quando mesmo diante da morte é preferível correr riscos a seguir obediente: “as insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: ‘Não obedeço mais’, joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida — esse movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível”.
Sem ruas e nas redes
Não é de hoje que se convoca ou organiza manifestações, paralisações, protestos e ativismos pelas redes sociais.
É comum as mobilizações serem articuladas redes sociais para ganharem as ruas. Entretanto, com a chamada pandemia Covid-19, poucos protestos e carreatas ganharam as ruas ao longo de 2020 e no primeiro quadrimestre de 2021, exceto os autodenominados de “direita”, fascistas e certos religiosos. Montaram acampamentos em nome da moral, dos cidadãos de bem, do exército e do presidente.
Carreatas pífias aconteceram convocadas por alguns sindicatos, como as dos professores da rede pública paulista. Entretanto, a maioria dos que se encontram à esquerda ou no chamado “campo progressista” não vai mais às ruas, preferem ser devotos das recomendações de uma ciência que acreditam não contaminada pela política. Ao contrário, expressam “que todos devem ficar em casa”, nada de tomar as ruas, sequer usando máscara e álcool em gel, fortalecendo o isolamento físico em nome da saúde de todos. Tudo online, virtual, síncrono ou assíncrono. Tanto faz se você tem acesso ou não à internet. Incapazes de cuidarem de si, preferem o confinamento móvel dos meios computo-informacionais.
Com casa ou sem casa, engordando ou com fome, com frio ou calor, resignado ou inconformado, bêbado ou sóbrio, nas filas para receber cesta básica, quentinha ou roupa, nos ônibus, nos trens, nos carros, no mercado, nos bailes e bingos proibidos; esperando auxílio emergencial; no ensino remoto, o lema incutido é não ir para as ruas. Não brade, não proteste, não se revolte, não incomode, respeite, tenha empatia, seja resiliente e ordeiro.
Quem está nas ruas?
Famílias inteiras estão jogadas nas ruas; mais favelas pululam pelas cidades; a chamada “população em situação de rua” salta aos olhos e já em nova composição, não são apenas os chamados “nóias”. E querem, desejam e clamam por filantropias e caridade. Estão dispostas a engordar a solidariedade empresarial que deixa intocada suas misérias.
E todo um contingente de pessoas que estão em busca de um sustento, tendo que se virar, e é na rua que se vira. Vira puta, vira michê, vira delinquente, vira qualquer coisa para se virar. Vira alimento para a prisão.
Contra prisões, encarceramentos e a obsessão por seguranças
A prisão chega do exterior. Ela não é inerente ao ser. Quando ela chega ao corpo, aos poucos as suas extremidades começam a enrijecer. Os pés já não se movem sem receio. As mãos não alcançam sem titubear e sem o vigilante controle do olhar que teme o ofuscar das luzes. O movimento não é leve nem rápido e incisivo. Conforme ela se acomoda, os passos começam a reproduzir a dureza dos soldados e os gestos se automatizam.
O corpo se desacostuma com a brisa, com o sol, com a chuva, com os sons, mas recolhe-se imóvel em sua muralha. Blindado, algo esmorece. O involucro se torna a norma. Conforta na ilusão de que nada mudará. De que o caminho é certo, desde que não se mova muito. O exterior é hostil.
Tal como um filme B de ficção científica, a prisão interiorizada penetra como uma gosma que se alimenta do que era vivo, e como um parasita, toma conta vagarosa e oportunamente. A gosma escorre pelos olhos, pelos ouvidos, pelos poros até obstruir o espaço para entrar o ar.
O corpo aprisionado quer sair, mas tem medo. Os olhos enxergam o que está fora como o perigo iminente. Então as muralhas se estendem para o espaço ao redor. Os muros se elevam, as grades proliferam. Concertinas, câmeras, polícias, fronteiras. O exterior deve refletir tal e qual aquilo que já está encarnado.
Essa gosma fagocita os corpos tomados pelo medo compartilhado, que juntos, permanecem imóveis. Não há espaço para o ar circular dentro das casas, nos condomínios, entre grupos e grupelhos, nas ruas. Todos esses corpos são uma só gosma, ou duas ou três… Unidos, uniformes. No interior da gosma é possível se deslocar em conjunto, protegidos do perigo exterior.
A gosma tem muitas formas. Ela é adaptável. Pode ser uma comunidade de bairro, uma organização de direitos específicos, a família, um partido, e até união de pessoas aleatórias que buscam um espaço seguro. Dali não se sai. O contato com o exterior vem protegido por uma película, por uma tela.
É da vida que a gosma se alimenta, pode ser que um desavisado a aviste na praça, no parque, no bar, no restaurante, em uma festa, um festival, uma feira, em lugares em que recobram a memória do prazer em se circular livremente, mas menos frequentemente nas ruas. E a qualquer movimentação inesperada, ela se recolhe. Porque tal como no roteiro de um filme, a gosma teme o fogo.
Mas isso não é um filme B de ficção científica.
No contexto da chamada pandemia do novo coronavírus, a gosma encontra um espaço fértil para se estirar.
Encontra os que querem se preservar e esperar o momento em que o ar estará limpo novamente. Geralmente permanecem isolados. Salvaguardados na proteção do próprio lar, esquecem o que é a vida lá fora a não ser ir e vir para o trabalho, compras e prontos socorros. Resta nostalgia. E olhar ao redor torna-se limitado.
Encontra os que se aproveitam do recuo dos demais, e tomam as ruas, não para se liberar, mas para garantir que a sua muralha ou a sua gosma tenha um alcance maior. Se empanturram dos espaços desocupados. Querem deglutir tudo. Querem uma só e uníssona gosma.
Mas o mundo não é bipolar.
Há sempre os que escapam, cujos olhos não se acostumam com a película. Que preferem o risco da vida livre à certeza da mortificação da segurança.
O que avança sob as intempéries, inventa uma forma própria. Não a recusa, se fortalece e aprende a se mover no que é incerto.
É preciso sair da gosma.
Romper as películas.
Destruir os muros e muralhas.
Acender o fogo.
Fonte: Hypomnemata 244 | Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP | N° 244, abril de 2021.
agência de notícias anarquistas-ana
Ruídos dos carros,
os escuto pela mesma orelha
que os pássaros.
Robert Melançon
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!