O autor do romance “Modesta dinamite” repassa o percurso do anarquismo na Argentina e conta como resolveu os pontos cegos de sua trajetória em seu próprio livro.
Na extensa história dos massacres argentinos, a repressão contra militantes anarquistas no começo do século XX foi um dos capítulos mais cruéis.
Em 1921, como lembrarão quem viu o filme “La Patagonia rebelde” ou lido Osvaldo Bayer, centenas de pessoas anarquistas foram fuziladas por fazer greve. Quantas pessoas, exatamente, nunca poderemos saber, pela impunidade com a que o Exército operou.
Somente na estância Anita, propriedade dos Braun-Menéndez perto de El Calafate, as pessoas executadas foram mais de 150. A maioria dos corpos nunca foram encontrados. Agora, que são cumpridos 100 anos desses fuzilamentos sem julgamento, a memória ressurge na mídia e nas redes sociais, despertando um leque de reações parecidas com as daquela época: pedir que os restos mortais sejam procurados e que a justiça seja feita, mudar de assunto, colocar a culpa nas pessoas grevistas, denunciar a hipocrisia do governo ou da oposição, criticar a idealização do operariado e a demonização do setor proprietário, etc.
Como o extermínio dos povos originários durante as sucessivas “Campanhas do Deserto”, os fuzilamentos de lideranças anarquistas colocaram o aparato repressivo do Estado ao serviço dos poderosos. Se o Exército arrasou primeiro com os povos originários, até 1921 o governo de Yrigoyen o pôs à disposição do patronato para esmagar os trabalhadores em greve que pediam uma fatia menos miserável do grande bolo da exportação. Mas a violência e a impunidade foram tão indignantes que um anarquista alemão de sobrenome Wilckens ia, rapidamente, passar à história como o vingador das pessoas que foram fuziladas.
A famosa “rachadura” que divide hoje as pessoas nascidas na Argentina não deve muito ao que havia até 1920, quando o Terrorismo de Estado se levantava sobre as pessoas militantes operárias.
Em fevereiro de 1922, na Câmara de Deputados da Nação, o representante socialista Antonio de Tomaso denunciava justamente o silêncio cúmplice da “imprensa grande”, como ele dizia, opondo à “imprensa livre”. Tão enorme era a rachadura, que Tomaso sentia a necessidade de explicar que representante gremial não é sinônimo de bandido, e que as greves da Patagônia não eram atos de terrorismo. Não havia mortos entre as tropas do exército, apontava, nem entre os fazendeiros e seus administradores, enquanto que todas as pessoas representantes operárias, que os informes militares designavam como cabeças, tinham “desaparecido”.
De Tomaso, dificilmente tinha podido imaginar que a palavra “desaparecido” ia se instalar definitivamente na história argentina. A outra campanha foi lançada por Manuel Carlés, o líder da Liga Patriótica, em um memorial publicado no jornal La Nación, no qual se reivindicava a repressão de uma nova conquista do deserto.
Sobre um fundo de valas comuns e cadáveres queimados com querosene, certos indivíduos se tornaram lendários. Um deles foi o oficial a cargo dos fuzilamentos, o tenente coronel Héctor Benigno Varela, que de benigno tinha muito pouco, pelo menos para as pessoas anarquistas. Em janeiro de 1923, o alemão Kurt Gustav Wilckens, outro dos nomes que geralmente é lembrado quando se alude a esta história, o interceptou na saída de sua casa, na Rua Fitz Roy, 2461 da então Capital Federal, jogou uma bomba nele e o arrebatou com um revólver.
Wilckens, que tinha chegado à Argentina em 1920, se tornou um herói regional. Na prisão, declarou que não queria ter matado um miserável oficial, mas “ferir nele ao ídolo desnudo de um sistema criminoso” para aproximar um futuro de “vida, amor e ciência”. Como os políticos e juízes lhes davam as costas, as classes operárias viram em Wilckens um justiceiro do povo, que nessa época era uma entidade bastante cosmopolita.
As pessoas operárias da Patagônia, por exemplo, costumavam vir de lugares tão diferentes como o antigo Império Russo ou Chile. Esse povo internacionalista associava Wilckens com outro mártir do anarquismo, Simón Radowitzky, que estava preso em Ushuaia há mais de uma década, por matar outro assassino, o coronel Ramón Falcón.
Os admiradores de Varela, contudo, não eram poucos, nem desprezavam os gestos de solidariedade. Depois de receber a notícia do atentado, os fazendeiros britânicos da Patagônia, que em muitos casos viviam em Buenos Aires e em Londres, encomendaram um monumento em sua honra.
Wilckens, como explica Osvaldo Bayer em “Los vengadores de la Patagonia trágica”, era um antimilitarista fervoroso. Qual foi o contexto em que decidiu matar e o permitiu fazer o plano? Evidentemente, não estava sozinho, apesar de ter se isolado por um tempo para não comprometer ninguém. Alguém fabricou a bomba (Andrés Vázquez Paredes, segundo uma testemunha que conversou com Bayer), e também foi graças a outras pessoas que aprendeu a usar o revólver que atirou em Varela.
Esses outros costumavam chamar a si mesmos anarquistas expropriadores. Um dos mais conhecidos foi o ferreiro Miguel Arcángel Roscigna, que organizava assaltos para financiar a militância. Quis ser consequente com a verdade de que “a propriedade é um roubo”, e o pagou com a sua vida. O “desapareceram”.
Por sua parte, um nacionalista de direita, Jorge Pérez Millán Temperley, se propôs a assassinar Wilckens. Foi em 1923. Entrou ao Corpo de Guarda de Prisões, conseguiu que o transferissem à prisão, entrou em sua cela e o matou com um Mauser, à queima-roupa. O juiz lhe deu a pena mínima, oito anos, em virtude de suas “anomalias psíquicas”. O transferiram ao hospício da rua Vieytes (onde está o Hospital Borda) e o puseram no pavilhão dos tranquilos. Em 1925, outro internado ia assassiná-lo, dando uma volta a mais no parafuso da vingança.
O movimento anarquista argentino teve um peso enorme, talvez só comparável aos da Espanha e Itália, e a historiografia o reconstruiu com lucidez. Mas as fontes históricas impõem seus limites. A partir daí, só resta imaginar.
Como romancista, me propus a explorar alguns aspectos dessa realidade às pessoas que já não tem acesso a ela. Por exemplo, o que sentia um garoto de quinze anos ao se tornar um anarquista de ação, imprimir dinheiro falso e usar uma das bombas preparadas por Vázquez Paredes (daí, parte do título do romance, “Modesta dinamita”). Ou o diálogo e a colaboração que os anarquistas judeus de Buenos Aires puderam ter tido com Albert Einstein durantes sua visita à Argentina, com a escritora feminista Elsa Jerusalén, ou com empresários heterodoxos como Silvio Gesell, que em 1919 quis fazer uma reforma agrária e criar um pagamento universal para as mães na efêmera República Soviética da Baviera.
Um empresário que financiou anarquistas. Einstein, um mulherengo aprendendo sobre feminismo e cantando o Parabéns com Carlos Gardel. Um livro-bomba para fazer cair um ídolo da direita. São alguns exemplos de como a ficção pode enfrentar a um passado que nos rodeia como um fantasma.
Víctor Goldgel é autor de “Modesta dinamita” (Blatt & Ríos).
Fonte: https://noticias.perfil.com/noticias/cultura/anarquistas-de-accion-en-la-historia-argentina.phtml
Tradução > Caninana
agência de notícias anarquistas-ana
Um ipê na esquina
A pétala cai do pé
feito bailarina
Alvaro Posselt
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!