Por Susana Cella | 03/10/2021
Compilados por Daniel Vidal e Armando Minguzzi, os textos reunidos no volume “Contra toda autoridad” apresentam uma ampla variedade de escritos da literatura anarquista produzida no Rio da Prata entre 1896 e 1919.
Falar de anarquistas traz à mente figuras como Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, o Príncipe Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, os mártires de Chicago, os protagonistas do levante das Astúrias ou, entre nós, Severino Di Giovanni, a Semana Trágica de 1919 ou os fuzilamentos na Patagônia de 1921. Vale recordar esta tradição de um movimento defensor da liberdade, contra a opressão de senhores e patrões, em pleno desenvolvimento da Revolução Industrial, as lutas camponesas e o surgimento de outras teorias que buscavam novas formas de organização, como os socialistas utópicos e, sobretudo, as propostas de Marx – que muitas vezes polemizou com os anarquistas. Os também chamados às vezes de libertários formaram uma corrente de vasto alcance, que abarcou diversas linhas como o anarquismo individualista, o mutualismo, o anarquismo coletivista, o anarco-comunismo, o anarco-sindicalismo, até se consolidar nas primeiras décadas do século XX como um movimento espalhado na Europa Ocidental, Rússia, Estados Unidos e alguns países da América Latina – nestes últimos, sobretudo como resultado da imigração. Vale mencionar uma figura como o espanhol Rafael Barret, que viveu em Argentina, Paraguai e Uruguai. Até 1870, em ambas as margens do Prata, os anarquistas iniciam sua múltipla atividade – publicações, folhetos, canções, poemas, charges, reuniões, festas – com o objetivo de difundir suas ideias e também como atos reivindicativos concretos, as greves e ataques armados. Os anarquistas organizaram sindicatos de importante presença, como por exemplo a F.O.R.A., na argentina, e a C.N.T., na Espanha.
Há uma quantidade de estudos sobre o devir do anarquismo na zona rioplatense, como atesta a bibliografia que dois especialistas no tema – o uruguaio Daniel Vidal e o argentino Armando Minguzzi – citam no prólogo da compilação Contra toda autoridad. Segundo se depreende dessa apresentação, trata-se de uma mostra heterogênea em relação aos temas abordados, mas também sobre as modalidades discursivas postas em jogo. Os anarquistas se valeram da ficção em distintas inflexões: crônicas, relatos realistas, fantásticos, distopias e paródias, com o objetivo comum de apelar ao leitor para suscitar sua tomada de consciência através da apresentação de situações verossímeis e constatáveis numa realidade que bem podia, por ser conhecida, motivar a empatia; por recorrer ao grotesco, por desmontar discursos hegemônicos, por ridicularizar personagens do mundo burguês, a fim de “fornecer aos leitores as ferramentas ideológicas para julgar as ações cotidianas, as ideias e/ou preconceitos do momento, ou confrontar os fatos e seus atores.”
E quando se aborda o cotidiano desses receptores, multiplicam-se os personagens: imigrantes, recrutas, operários e operárias, criados, prostitutas, vítimas em geral de senhoras e senhores ricos, padres, patrões, milicos e governantes. Daí a disparidade de textos que vão revelando conflitos, proclamações, ironias, no consequente combate contra a exploração capitalista, para o qual “todas as tradições, todos os registros, todos os formatos lhe caem bem”.
Diante desta rica variedade, os compiladores escolheram fazer uma organização por seções cujos temas servem de orientação para visualizar que questões estavam arraigadas entre os anarquistas. Cada uma tem um título sugestivo (extraído de um dos textos incluídos), assim: “Há uma grande luxúria em tuas pupilas, em tuas pupilas negras e malvadas”, para apresentar episódios sensuais, defesa do amor livre, condenar a venda do corpo feminino, criticar a instituição matrimonial e também sugerir uma relação homossexual. Em “Os anarquistas são crianças grandes que sonham com a luz”, reivindica-se a revolução e o anseio de solidariedade e fraternidade social; “Que angústia quando descobrirem que não há céu!” pretende demolir o clero hipócrita associado aos patrões, não faltando as paródias graciosas sobre a criação do mundo nem os retratos de padres lascivos e glutões que se aproveitam das devotas. “E o que vamos comer? Paralelepípedos?” mostra a vida miserável na cidade; entre os relatos está “Trabalho na rua”, de Alberto Ghiraldo (uma das figuras mais conhecidas, fundador da primeira revista Martín Fierro, que uniu a estética modernista ao credo anarquista). Outra vertente importante de que se valeram os anarquistas foi a vinculação que estabeleceram com outros deserdados que não eram os operários urbanos, mas os gaúchos, índios e camponeses, como se vê em “Que sabe o carcará sobre as necessidades do mataco[1]?” e em “O Payador[2] Libertário”, que compõem milongas sociais –Martín Fierro e Juan Moreira são convocados, a vida livre do gaúcho se vê perturbada pelas cercas, assim como se questiona o regime eleitoral. A exploração no trabalho, as consequentes greves e as farsas patrióticas se veem em “Hoje a fábrica ficou muda”. Por último, “Na Argélia rosna o hipopótamo” agrupa fábulas, sátiras à classe alta, zombaria a uma notícia do diário La Nación, biografias burlescas e também quadrinhos. Tudo isso desmonta o estereótipo do anarquista – fica evidente em um dos relatos – como violento, amargo, malvado, para mostrar, ao contrário, sua profunda imersão em todas as instâncias da vida: amor, decepção, humor, penúrias, desejos e expectativa esperançosa.
Além dos mencionados Ghiraldo e Barret, figuram Florencio Sánchez, Angel Falco e Elías Castelnuovo (que posteriormente aderiu ao peronismo); há duas mulheres, Salvadora Medina Onrubia e Pepita Gherra, junto a outros menos conhecidos e pseudônimos (Germinal, Luzbel, El Tío Conejo), iniciais e anônimos. A inclusão de imagens fac-símile dos periódicos e as caricaturas incorporadas ao final de cada capítulo dão uma vivacidade especial a todo este verdadeiro afresco daqueles que defenderam a frase de Proudhon: “a propriedade é um roubo”. Expropriados e sem direitos, sonharam com uma sociedade solidária e fraternal. Seu grito de liberdade desafiava a opressão mascarada na ordem dos poderosos; ou explícita e direta no sistema que os condenava à morte por fome ou nas execuções.
Como dizem Vidal e Minguzzi: “Pregaram o amor num oceano de ódios e foram escutados por não poucos corações insubmissos”. Daí que até hoje ressoam, e também servem para impedir o uso degenerado que atualmente têm palavras como libertários, ácratas, anarquistas.
[1] Nota do tradutor: “Mataco” é o nome que recebe o tatu-bola (Tolypeutesmatacus) na Argentina. Mas a palavra também nomeia um povo ameríndio que habita a região do Chaco, na América do Sul.
[2] N.t.: “Payador”: cantor popular que improvisa sobre temas variados (termo usado na Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai).
Tradução > Erico Liberatti
agência de notícias anarquistas-ana
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