PorLeonardo Rossi* | 26 de agosto de 2021
Jaime Breihl, referente latino-americano em epidemiologia crítica, docente e investigador, denuncia a “ditadura do paper científico” e as décadas de domesticação do pensamento acadêmico. Longe dos anti-vacinas, aponta para os riscos das novas tecnologias que se aproveitam do coronavírus e convida para “quebrar com a ideia da vacina como única salvação”. Propõe que sejam apontadas as causas para a Covid-19 e garante que, para a pós-pandemia, é urgente frear o extrativismo predatório.
O nome Jaime Breilh é sinônimo de epidemiologia crítica na América Latina. Referência no campo da saúde coletiva, o docente e investigador equatoriano é um pedagogo incansável da reflexão aguda sobre a prática científica e critica o exercício da medicina hegemônica. Embora ele tenha inúmeras credenciais acadêmicas e a recente publicação de seu livro Epidemiologyand The People´s Health (Epidemiologia e a saúde do povo) pela Oxford University Press, Breilh não está enraizado na suposta superioridade da voz científica, ele apela para “sair da ditadura do paper” e reconhecer outras formas não hegemônicas de pensar a saúde. Nesta linha, ele chama a atenção para as estruturas profundas do capitalismo a fim de abordar de forma realista o atual mundo pandêmico. “Não apresentar as vacinas como uma panaceia”, denunciar as “infodemias do campo médico hegemônico” e desmantelar “décadas de domesticação das academias médicas” são alguns dos pontos-chave que ele faz. Sua voz é uma tentativa de romper com o campo de discussão cada vez mais estreito entre os negacionistas, por um lado, e a monocultura da indústria farmacêutica, uma grande parte dos governos e dos meios de comunicação de massa, por outro.
Um olhar estreito, uma abordagem reducionista
> Como você analisa a abordagem hegemônica em torno da pandemia?
Vejo que pensar na pandemia a partir da lógica da causalidade nos aprisionou. Se eu abordar esse problema de forma reducionista, a pandemia será um vírus, vacinas, medicamentos, prevenção etiológica individual, contágio. E isso é apenas a ponta do iceberg, apenas uma parte dos efeitos observáveis de um processo muito mais complexo. O primeiro grande elo que temos que estabelecer é entre a pandemia e o sistema agroalimentar do capitalismo em sua versão 4.0, em termos de seus impactos ecológicos, sanitários e sociais. No coração da pandemia está o sistema agroalimentar do capitalismo. Deve-se dizer, então, que não existe uma agricultura ou o sistema agroalimentar, mas que existe uma profunda disputa sobre essas categorias em termos de significado, implicações e práticas que devemos discutir e trazer urgentemente ao diálogo com a saúde.
> Você aponta para um tipo de forma de produção agrícola e alimentar.
Primeiro, precisamos começar a distinguir os modelos. Existem dois grandes paradigmas produtivos, políticos e sociais em torno da agricultura. Por um lado, a agricultura da vida e, por outro, a agricultura das corporações, dos negócios. E elas não são compatíveis, são antagônicas. Porque existe uma agricultura que é projetada para defender, proteger e alimentar o sujeito social vivo. E há a outra que pensa a partir da ganância e procura transformar tudo em mercadoria, desde o ser humano e a força de trabalho, até o genoma, a terra, a água. Tudo é parte de uma estrutura de acumulação de capital. É o sistema agroalimentar da morte, porque tem consequências profundas na vida humana e não humana e vemos isso com os surtos virais que vêm ocorrendo nos últimos anos, e com a vulnerabilidade na saúde das populações. Não podemos mais ignorar isto.
Ver o todo, compreender a sindemia global
> No campo crítico da saúde se fala de que atravessamos uma sindemia (sinergia de várias problemáticas sanitárias com alcance epidêmico). Qual é a sua definição desse conceito?
É verdade que estamos em uma sindemia muito antes da disseminação do Sars-CoV-2 (Covid-19). Em outras palavras, estamos diante de uma confluência de vários processos correlatos e sinérgicos que se potencializam mutuamente, e o efeito é mais do que a mera soma desses processos. Minha visão da epidemiologia crítica é que o problema não é apenas doenças virais e não-virais, doenças crônicas, saúde mental. Isso é uma parte da saúde, muito importante, é claro, mas é muito mais do que isso. Os processos sindêmicos vão além disso e temos que pensar sobre a estrutura. Ali encontramos uma confluência de processos políticos, econômicos, sociais, ecológicos e culturais.
No centro disso está o capitalismo, cuja capacidade de concentração e destruição é sem precedentes, com um crescimento galopante da desigualdade social em níveis explosivos. Esta estrutura destrói o bem comum e produz uma exclusão em grande escala de tudo o que é necessário para uma boa vida humana e não humana.
> Quais outros processos compõem esta sindemia?
Outro ponto central é a acumulação sistemática de condições “pandêmicas”. Trata-se de uma estrutura globalizada de um sistema sempre acelerado para transformar as bases mínimas de desenvolvimento dos ecossistemas. É esta estrutura que tem causado as pandemias dos últimos anos e as que estão por vir. É impossível continuar pensando nos vírus como um sistema biológico com sua lógica, seus processos de adaptação e os ritmos que historicamente tiveram. Se hoje temos uma agroindústria que está gerando condições de produção massiva de animais com uniformidade genética, que é a base para a combinação e mutação viral; um sistema de vacinação descoordenado e sem controle que irá catapultar a diversificação de cepas virais; e um sistema social onde a cidade e o campo neoliberal são propícios à concentração de uma alta carga viral e uma alta carga de populações vulneráveis, não podemos pensar em vírus como algo que flui naturalmente. Esse é o estrutural que precisa ser entendido.
> Quer dizer, que é preciso explicitar a dimensão política na própria propagação do vírus.
Não é um vírus agindo de acordo com a lógica de um manual, pois falar sobre isso seria engajar-se no neodarwinismo do tipo mais perverso. Pensar que o vírus está caminhando por sua própria dinâmica, com base em sua própria estrutura genética, e que está querendo mutar como se estivesse em um ensaio experimental, é falso. O vírus é impulsionado por um sistema de recomposição da relação entre o ser humano e a natureza tão brutal que a mesa está posta para sua reprodução.
> Qual é o papel da acelerada crise climática nessa sindemia?
Dentro dessas transformações drásticas, um quarto e central ponto desta sindemia é a mudança climática. Parece que, com as inundações, incêndios, perda de geleiras, acidificação do mar e ciclones recentes, estamos vendo sinais muito sérios de uma desordem ambiental integral, que está dando seus últimos sinais de alerta ao entrar no ponto de não retorno. E esta dimensão não só não pode ser deixada de fora quando se pensa na saúde de uma perspectiva crítica e integral, mas também deve fazer parte da abordagem da pandemia.
Informação democrática é saúde
> Você tem criticado as informações hegemônicas sobre a abordagem sanitária. O que você tem a dizer a respeito?
Aqui temos o quinto ponto desta sindemia, que é a desinformação que existe sobre uma questão como essa pandemia e que diz respeito a toda a população global. A respeito disso, tenho uma visão crítica sobre os discursos que têm dominado a abordagem sobre a saúde. Na época, a OMS (Organização Mundial da Saúde) falou de infodemias em termos de notícias falsas e desinformação sobre a pandemia nas redes sociais. Isso é bom, mas no final, isso é ridículo em comparação com a pandemia de informações manipuladas exercida pelo verdadeiro poder corporativo em torno do vírus. Os sistemas de saúde do mundo estão estruturados em torno de um sistema megainfodêmico. A ciência do poder trabalha em torno a isso, com sofisticação de dados em torno do pico do iceberg que mencionamos anteriormente. Ou seja, eles falam dos efeitos do vírus, dos contatos, apresentam sistemas de multiplicação, taxas diferenciais de letalidade. O máximo que eles conseguem é dizer que nos Estados Unidos a letalidade de negros e latinos é maior do que a dos brancos.
Existe uma desinformação dramática onde as informações não estão atualizadas nem cobrem o que é necessário para uma abordagem abrangente. Os aspectos estruturais de que temos falado como parte da abordagem da saúde são completamente deixados de fora. Esta informação que domina o discurso em torno da pandemia não é democrática e é totalmente manipulada em favor dos grandes interesses comerciais da indústria farmacêutica.
> O que você pode dizer sobre o status de “verdade única” que a ciência médica hegemônica adquiriu no contexto da pandemia?
Para entender isso, devemos primeiro perceber que temos arrastado décadas de domesticação do pensamento acadêmico na saúde. Uma domesticação baseada na ciência positivista, cartesiana, olhando a realidade de forma fragmentada. A ideia de sofisticação na ciência é ser capaz de lidar com pedacinhos de realidade que são chamados variáveis e com isso fazer sistemas formais complexos e prever uma probabilidade ou descrever um comportamento empírico. Mas ali, nesse pico do iceberg que podemos conhecer em detalhes, não está a essência do que está acontecendo conosco. Há um controle profundo sobre o funcionamento dos centros de pesquisa hegemônicos, que está muito lentamente começando a rachar. Outro dia, na legislatura do Texas, um dos grandes cardiologistas daquele centro hegemônico da ciência disse: “estamos ficando loucos”. Ele perguntou: “Como podemos investir milhões e milhões em apenas uma ferramenta como uma vacina que nem sequer está totalmente comprovada como eficaz, e deixar todas as outras questões básicas abandonadas?”
> Há espaço para vozes dissidentes a essa visão médico-hegemônica?
No mundo andino e em outros países, muitas práticas médicas que se afastam do modelo hegemônico de revisão por pares têm sido perseguidas. O que está fora da estrutura hegemônica, como as práticas sociais dos médicos que trabalham com as comunidades e o conhecimento das próprias comunidades, é demonizado. Estamos vivendo a ditadura do paper científico. O que conta para qualificar sua voz como válida é quantos documentos você escreveu em revistas científicas de alto impacto. Não se nega que existem coisas muito valiosas nessas revistas, e muitos de nós fazemos um esforço para escrever esses trabalhos. Mas quando acabamos confiando apenas nesse nível, devemos saber que as revistas de alto impacto não são neutras. Afinal, o que lê um estudante de medicina, o médico residente ou os profissionais de saúde? O que está na revista científica de alto impacto. Mas o conhecimento não se resume a isso, longe disso. A pandemia trouxe isso à tona. Temos uma infinidade de campos para estudar a partir de áreas cegas da ciência que são fundamentais para a prevenção profunda, real e consistente de pandemias. E isto não é levado em conta porque não se encaixa na lógica hegemônica.
> Como você disse, esta abordagem não pode ser separada do comando capitalista.
É preciso entender que a ciência médica é controlada por uma lógica comercial, muitas vezes disfarçada de neutralidade científica. Esse tipo de irracionalidade reina nesse mundo. O mesmo acontece com as vacinas, que foram em grande parte desenvolvidas numa proporção de 9 para 1, 7 para 3 ou 6 para 4 entre financiamento público e privado. Mas não temos código aberto para saber como são feitas, e elaborar em outro lugar de maneira pública. Isso é uma loucura. Além disso, esse mesmo sistema de saúde está estruturado em grande parte do mundo para causar uma alta taxa de mortalidade entre os trabalhadores de saúde da linha de frente, e a pandemia também tem mostrado ser esse o caso. Portanto, não podemos deixar de apontar, rever e mudar esses aspectos que denotam uma forma de entender a saúde como um negócio em vez de uma forma de cuidar da vida.
Para além dos negacionistas e “dogmas científicos”, outras vozes
> Um ponto crítico no encerramento do debate científico da vacinação: Que visão você pode trazer a esta questão quando o debate é simplificado entre vacinas ou anti-vacinas diante de um assunto tão delicado como o cuidado com a teia da vida?
Antes de mais nada, é preciso quebrar a panaceia da vacina como o grande caminho, a única salvação, e a tão falada imunidade de grupo, uma enteléquia. O que é a clássica imunidade de grupo? Se eu tenho uma epidemia de sarampo, tenho uma certa cobertura de vacinação, um número controlado de contatos. Isso gera uma parada ou diminuição até que o sistema de contágio desapareça. Hoje há várias discussões sobre essa possibilidade em torno desse vírus específico. Estudos já estão levantando preocupações de que o pessoal da linha de frente nos hospitais tenha sido infectado por vacinados. Há evidências acumuladas sobre isto, pelo menos dos vacinados da Pzifer nos Estados Unidos. Os próprios vacinados estão sendo uma fonte de contágio. O sistema clássico de apenas vacinar a população nesse caso não parece ser o que funciona.
> Se fala genericamente sobre vacinas quando, na verdade, existem tecnologias clássicas, outras tecnologias inovadoras baseadas na modificação genética e o RNA-Mensageiro. O que você pode nos dizer sobre isso?
Deve ficar claro que uma vacina, propriamente dita, é um vírus inativado ou um vírus atenuado e pronto. No caso das vacinas clássicas, nada aconteceu com sua genética, não há introdução de um código de produção de proteínas anormais em seu corpo, nem estamos introduzindo ou inoculando as instruções. Precisamos investigar o que vai acontecer dentro de dez, quinze, vinte anos com essas tecnologias, que eu não chamo de vacinas, mas de medicamentos que geram imunidade baseada em um mecanismo de indução genética do M-RNA. Não sabemos isso hoje. E quem diz saber, não está dando um fato científico.
> Esse tipo de aviso, que é próprio do princípio de precaução científica, é descartado como “anti-vacina”.
Qualquer pesquisa ou aviso sobre isto é questionado pelos centros que controlam essas decisões. Eles estão aproveitando a aceleração da venda de vacinas e nada pode questioná-la. Tudo isso não está sendo debatido, porque a mídia nos tem deixado atentos aos últimos desenvolvimentos desta ou daquela vacina. Quando paramos e pensamos que não estamos sendo capazes de debater isso, realmente parece que o mundo enlouqueceu, enquanto os cavaleiros do apocalipse da ganância estão libertados. Essa é a lógica do mundo na pandemia e é isso que a academia deveria estar questionando.
> E o que está acontecendo como uma prática hegemônica no meio acadêmico hoje?
A maioria das pessoas dentro das universidades não está nem mesmo ciente desses bastidores, das zonas de incerteza em relação a algumas tecnologias, nem questiona tudo isso. Estão apenas desesperados para conseguir uma vacina. E não se questiona isso quando se vive o medo pessoal de sofrer um caso grave, mas ao mesmo tempo, não se deve parar de discutir todas essas estruturas de poder que afetam o campo científico. A partir das ciências da saúde, temos que ver que áreas de incerteza existem em torno da transgênese que podem ser perigosas no futuro. Portanto, temos que ser cautelosos com as informações. Por exemplo, temos que pensar cuidadosamente sobre o que fazer com jovens e crianças que em sua maioria não tiveram casos graves. Em qualquer caso, teríamos que fazer algo sequenciado, altamente monitorado, em grupos de observação para poder tomar decisões precisas e muito específicas.
Agroecologia para a pós-pandemia
> Quais políticas urgentes são necessárias nesse momento?
Tem que haver uma proposta integral para sair da pandemia, onde eu vejo a agroecologia como uma ferramenta muito importante. A luta pela agroecologia e pelos sistemas alimentares da vida, que substituem o extrativismo agroindustrial, é uma saída. Temos que construir políticas para promover a produção ecológica, o emprego rural de qualidade, para bonificar àqueles que cuidam do meio ambiente, que não usam agroquímicos, que não destroem ecossistemas, que protegem a água. Essas são políticas anti-pandêmicas.
A agricultura ecológica como um fator chave.
Falo em promover os quatro “S” da vida: Sustentabilidade, Soberania, Solidariedade e (bio)Segurança integral. Para sair dos ciclos pandêmicos temos que criar sociedades sustentáveis, onde a agricultura sem dúvida desempenha um papel fundamental devido a suas implicações no uso da água, da terra, da biodiversidade e das relações sociais. Esse processo deve ser soberano, não pode continuar a depender da lógica que nos é imposta pelas grandes corporações. Para isso, devemos cultivar a solidariedade em todos os níveis como um aspecto político fundamental a fim de deixar para trás essa sociedade patriarcal, racista e classista. E finalmente, a segurança final que não podemos omitir como projeto é a da vida, e isso depende de políticas muito concretas. Para a pós-pandemia, precisamos frear urgentemente o extrativismo predatório, uma proibição do uso massivo de agrotóxicos, uma proibição dos transgênicos e da produção massiva de animais e sua alta carga viral. Esses são exemplos concretos de políticas que dão segurança à vida, e um verdadeiro caminho de organização anti-pandêmico.
*Membro do Coletivo Ecologia Política do Sul – IRES/Conicet
Fonte: https://agenciatierraviva.com.ar/en-el-corazon-de-la-pandemia-esta-el-sistema-agroalimentario/
Tradução > Bakira
agência de notícias anarquistas-ana
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