Há nove anos, em Setembro de 2015, na Penha de França, em Lisboa, abria a Disgraça, com a vontade de ser um espaço «antiautoritário onde se pudesse discutir e criar soluções colectivas para problemas que tínhamos vindo a individualizar». Com a sua espécie de arquitectura invertida, este espaço está, desde há quase uma década, alugado ao colectivo que o gere e tornou-se num ponto fundamental de vida para além da opressão capitalista da cidade de Lisboa. Hoje, perante «uma cidade devastada pela especulação imobiliária, pela crise da habitação e pela elitização da cultura», a Disgraça decidiu que a única forma de fugir do aumento cavalgante das rendas e das ameaças de expulsão é comprar o espaço. Podes contribuir em gofundme.com/f/disgraca
A Disgraça está a combater o monstro imobiliário tornando-se proprietária do seu espaço, o que, ainda que se trate de uma propriedade colectiva, é quase irónico. Chegou-se realmente a este ponto em que as únicas opções são a propriedade ou a não existência?
Neste momento em Lisboa, como sabemos, é cada vez mais difícil sustentar os aumentos absurdos de rendas. Confrontades com o facto de que espaços amigos se encontram em situações de despejo iminente, urge a necessidade de assegurar a Disgraça a longo termo. Temos investido muito tempo, suor e lágrimas ao longo destes quase 9 anos e contemplar a possibilidade de nos tornarmos mais uma vítima da gentrificação de um dia para o outro, ou dar este espaço a perder e possivelmente (ou não) ter de recomeçar noutro sítio, levou-nos a decidir que era preciso reunir esforços para que tal não acontecesse.
Há também a opção de okupar, mas como se viu recentemente com o Centro Social de Santa Engrácia ou com centros sociais okupados anteriores (neste momento) é bastante difícil assegurar um espaço através dessa via. Apesar de agora as opções a longo termo parecerem ser essas – propriedade ou não existência –, vemos também o papel da Disgraça em apoiar movimentos de resistência, incluindo o de okupação, para que no futuro esta pergunta não faça sentido. A ironia de haver anarquistas a comprar propriedade não nos passa ao lado; contudo, é fulcral que haja espaços estáveis onde se possa aprender, partilhar, conspirar e (des)construir de forma colectiva e horizontal.
Um olhar sobre o vosso calendário mostra uma actividade quase frenética. Como se organizam para manter esse ritmo de coisas a acontecerem, tratarem da gestão burocrática do espaço, da biblioteca, da sala de concertos, da oficina, da sala de ensaios, da serigrafia, do ginásio, da loja livre ou da Tortuga e, ao mesmo tempo, se manterem em autogestão horizontal?
É importante relativizar um bocado a quantidade de eventos que se vê no nosso calendário. Nem todos são organizados pelo colectivo da Disgraça. Alguns exemplos são os benefits organizados por vários colectivos, os concertos regulares da ATR, os DIY Mondays semanais… É importante para nós que a Disgraça seja um espaço onde as pessoas se possam envolver facilmente e onde não haja binários rígidos entre pessoas organizadoras e consumidoras. É também por isso que tentamos organizar frequentemente as assembleias Galaxy, abertas a qualquer pessoa.
Em princípio, os diferentes espaços dentro da Disgraça funcionam autonomamente. A Tortuga, o ginásio, a sala de ensaios, etc., têm os seus próprios grupos que se autogerem. Na prática, isto nem sempre funciona tão bem quanto gostaríamos. Sentimos, contudo, que tem havido uma evolução positiva. No início, quase tudo era organizado pelas pessoas do colectivo. Hoje em dia há muito mais fluidez – a horizontalidade é um trabalho sempre em curso.
Ultimamente, a dupla responsabilidade de manter o funcionamento diário da Disgraça ao mesmo tempo que nos organizamos para comprar o espaço tem sido desafiante. Achamos que a organização horizontal não é só sobre partilha de tomada de decisões mas também do trabalho e da responsabilidade para que fique mais fácil fazê-lo colectivamente. Também esperamos, quando conseguirmos assegurar o espaço, adaptarmo-nos mais facilmente com a fluidez do tempo e energia disponíveis, em vez de precisarmos de seguir o ritmo de rendas mensais.
Sabemos que têm tido um papel importante no apoio aos migrantes que estão acampados na zona dos Anjos, em Lisboa, nomeadamente por emprestarem a vossa cozinha para que possam cozinhar. Como têm corrido as coisas? É possível a solidariedade não caritativa, mesmo em situação tão limite?
Queremos realçar que, neste caso, o colectivo da Disgraça tem pouco envolvimento na Cozinha dos Anjos em si, que funciona autonomamente – o espaço e o equipamento são utilizados pelas pessoas que deles necessitam. Mas, daquilo que temos visto, parece-nos estar a correr super bem. É muito fixe que a malta esteja a relaxar – cozinhar, ouvir música, jogar jogos – num ambiente bastante mais seguro do que estar na rua, sob o risco de serem confrontades pela bófia, políticos e outros parasitas desta sociedade de merda.
De forma geral, precisamente por serem situações limite, torna-se difícil evitar que se perpetuem padrões de caridade. É mais uma das facetas das socializações que sempre tivemos (e continuamos a ter) e que, como tudo o resto, requer um esforço activo e diário para as desconstruir. Mais especificamente sobre a Cozinha dos Anjos, é uma pergunta que lhes teriam de fazer, uma vez que são as pessoas que, a nível prático, mais estão a lidar com essa questão.
Fonte: https://www.jornalmapa.pt/2024/08/13/a-horizontalidade-e-um-trabalho-sempre-em-curso/
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