Resposta ao texto “Uma crítica ao anarco primitivismo” de Gilson Moura Henrique Junior

Esta é uma resposta ao texto “Uma crítica ao anarco primitivismo¹” de Gilson Moura Henrique Junior, publicado em 2014 e citado pelo canal História Anarquista num vídeo de 2024 chamado “Primitivismo não é Anarquismo. Uma crítica ao primitivismo²”.

O anarco-primitivismo surgiu nos anos 80 do século XX e produziu uma vasta quantidade de material, incluindo duas revistas anarquistas: a Green Anarchist (Reino Unido, 1984-2001) e a Green Anarchy (EUA, 2001-2008), assim como outras publicações. Este movimento difundiu a crítica à civilização no meio anarquista, inspirando diversos coletivos e fomentando discussões sobre história, antropologia e psicologia.

Gilson Moura diz concordar com a crítica à civilização, mas discorda da forma como os anarcoprimitivistas “rejeitam a tecnologia” e “louvam o primitivo”, o que, no entanto, não é uma acusação informada. Ele ainda afirma, equivocadamente, que o anarcoprimitivismo se associa ao evolucionismo social e que estabelece uma divisão hierárquica entre civilização e primitivo. A crítica se foca em John Zerzan, um dos principais autores do anarco-primitivismo, e na sua antropologia, que o autor considera “etnocêntrica” e comparável às ideias de Rousseau. Moura também aponta o uso problemático do termo “tribos” e a classificação de etnias como “caçadoras/coletoras”, considerando tais conceitos anacrônicos e inadequados.

O autor sugere o uso do termo “etnias não-ocidentais”, o que não se refere à mesma coisa. A divisão entre ocidente e oriente é muito mais recente do que o processo histórico que visamos criticar com o conceito de “civilização”. Por isso, não faz sentido falar de “civilização ocidental” ou de “civilizações não-ocidentais” no contexto da teoria anarcoprimitivista. Zerzan não está ignorando a globalização e o capitalismo no processo de assimilação e destruição dessas culturas, pelo contrário. Moura sugere que devemos absorver valores de culturas ancestrais sem classificá-las como “primitivas” e sem descartar todos os valores da cultura ocidental, visto que a anarquia é um desses valores. Isso sim é etnocêntrico.

As críticas de Moura são, como pretendemos demonstrar, bastante problemáticas. A crítica à tecnologia, presente no anarcoprimitivismo assim como em outras linhas de pensamento, não é uma rejeição simplista dos meios tecnológicos, mas uma teoria crítica do sistema técnico dominante e no modo como o pensamento tecnológico contribui para a alienação e dominação da natureza. O conceito de “primitivo”, que também não é utilizado apenas por anarcoprimitivistas, não é uma atribuição de inferioridade, como disse o autor, mas sim uma diferença estrutural, já que compreendem a civilização como uma estrutura opressiva. Os anarcoprimitivistas rejeitam o darwinismo social e não veem as sociedades civilizadas como superiores ou mais evoluídas. Trata-se na verdade de uma crítica radical ao mito do progresso, que no contexto da ideologia civilizatória/colonial significa “mais parecido com a Europa”.

Zerzan não se baseia em Rousseau e não considera os povos originários ingênuos. Ele critica os efeitos da alienação social e ambiental, que, segundo ele, têm raízes no patriarcado e na divisão do trabalho, de maneira similar aos impactos do capitalismo nas sociedades industriais. O uso de “tribo” como uma classificação genérica para os modos de vida não-civilizados é problemático, mas ainda é um termo muito usado nos EUA. Além disso, a expressão “caçador-coletor” continua sendo usada em artigos científicos para descrever modos de subsistência que não dependem da agricultura ou criação de animais, sem conotações pejorativas.

Moura diz discordar da interpretação anarcoprimitivista de Pierre Clastres, dizendo que Clastres não colocava esses modos de vida no plano do “primitivo”. No entanto, o uso do termo “civilização” como oposto de “primitivo”, indicando superioridade, é justamente o que os anarcoprimitivistas questionam. Para Zerzan, a civilização é definida pela domesticação de seres humanos e da natureza, e a domesticação é um processo violento e opressivo.

Anarcoprimitivistas não idealizam as culturas ancestrais, e muito menos as consideram atrasadas ou pertencentes ao passado. Eles se focam na sua capacidade de viver de modo mais ecológico e com menos hierarquia. Se já vivemos desse modo antes, podemos viver novamente. Como, exatamente, seria esse modo de vida, ninguém sabe. Embora a base antropológica de Zerzan seja realmente problemática, ela foi revisada por anarcoprimitivistas posteriores, muitos deles com formação em em antropologia, e por isso a crítica a Zerzan não invalida o movimento como um todo.

Moura acusa o anarco-primitivismo de não dialogar com povos indígenas e de defender um ludismo simplista, mas essa crítica é injusta. Anarcoprimitivistas estão, de fato, em diálogo com movimentos indígenas e criticam o pensamento etnocêntrico que ignora os custos do “desenvolvimento” tecnológico e cultural. Não são ludistas, mas é importante notar a ressignificação do ludismo no anarquismo contemporâneo.

O autor sugere que, em vez de louvar um “primitivismo mitificado”, deveríamos “dialogar com outras civilizações” para revisar os males da civilização ocidental. No entanto, a crítica anarcoprimitivista não se limita a louvar o primitivo, mas sim a criticar a colonização e o progresso civilizatório, que inclui criticar o uso do termo “civilização” como sinônimo de “sociedade organizada” ou “avançada”. O movimento defende um uso de civilização num sentido anticolonial, isto é, como processo histórico comparável à colonização, e não como forma de organização social.

Moura sugere que o anarcoprimitivismo rejeita ideias feministas em favor de uma visão patriarcal, o que é infundado. Zerzan e outros anarcoprimitivistas consideram o patriarcado como um dos fundamentos da civilização, que eles rejeitam. Um dos textos mais citados do Zerzan, traduzido por uma feminista e publicado numa publicação feminista, é uma crítica ao patriarcado enquanto domesticação.

Referências como Ailton Krenak e Davi Kopenawa oferecem uma crítica à civilização que ressoa com as ideias anarcoprimitivistas, enfatizando a necessidade de uma relação menos hierarquizada entre humanos e a natureza. Moura acusa o anarcoprimitivismo de operar no plano metafísico, ignorando a ação concreta. No entanto, anarcoprimitivistas defendem e participam das mesmas ações diretas e organizações que outros anarquistas. Não as rejeitam nem propõem substituições. A crítica anarcoprimitivista apenas adiciona questões que não estavam sendo tratadas no meio anarquista ainda, mas que se aproximam de algo que sempre esteve no anarquismo, como a ideia de Kropotkin sobre a naturalidade do apoio mútuo. Anarcoprimitivistas defendem que as relações humanas voltem a ser prevalentemente não-mediadas pelas instituições civilizadas.

Por fim, a crítica de Moura ao anarco-primitivismo como não sendo anarquismo é rasa e infundada. O anarquismo ganhou e tem a ganhar com o aprofundamento das críticas à civilização, que em grande parte vieram do anarcoprimitivismo. É bom lembrar que o termo “primitivista” foi atribuído pejorativamente a pessoas como Zerzan, e que elas o adotaram criticamente, tal como alguns anarquistas adotam o rótulo de “baderneiro”. Vale lembrar também que o anarcoprimitivismo não está de modo algum relacionado ao movimento artístico ou literário conhecido como “primitivismo”. Nas palavras de Zerzan: “Primitivo é um termo bastante inútil. O divisor de águas é o fato de as pessoas praticarem ou não alguma domesticação”. Anarcoprimitivistas não acham que as culturas ancestrais são atrasadas ou pertencem ao passado, e sim que elas são o futuro, já que as instituições civilizadas irão cair junto com o estado e o capitalismo. Por isso mesmo não estão defendendo um retorno ao passado, mas sim a superação ou abolição de uma estrutura social relativamente recente que se espalhou por violência colonial e assimilação cultural, que chamamos de “civilização”.

Eu pesquiso sobre anarcoprimitivismo desde que conheci pessoalmente o Zerzan, em 2006, num evento anarquista, e antes disso já escrevia sobre crítica à civilização. A princípio, eu também estava muito desconfiado dessas ideias, mas eu tive a oportunidade de tirar minhas dúvidas diretamente com Zerzan e outros autores. Desde então eu me tornei, aparentemente, um dos poucos tradutores e articuladores da crítica anarquista à civilização no Brasil, mesmo não me considerando como anarcoprimitivista. Meu objetivo sempre foi levantar o debate sobre crítica à civilização no meio anarquista. Fica então o convite para todos os anarquistas que não gostam de Zerzan nem de anarcoprimitivismo a ter uma conversa aberta sobre isso, em vez fazer vídeos ou textos taxativos para fechar o diálogo, deixando de responder aos comentários.

O texto de Moura e o vídeo do canal História Anarquista fazem outras acusações que não correspondem ao que o anarcoprimitivismo defende, ou já foram respondidas por outros anarcoprimitivistas, mas vou deixar para responder essas em outro momento. Fica o convite para quem leu este texto dizer se conhece o anarcoprimitivismo, como conheceu e se concorda com o que foi dito aqui.

[1] https://www.anarquista.net/uma-critica-ao-anarco-primitivismo/

[2] https://www.youtube.com/watch?v=zn6FO5T8SVo

Fonte: https://contraciv.noblogs.org/resposta-ao-texto-uma-critica-ao-anarco-primitivismo-de-gilson-moura-henrique-junior/

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Jurandir Junior

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