[Reino Unido] Anarquia e Ficção Científica

Por Ben Beck | Fifth Estate edição 415, verão de 2024

A maioria dos anarquistas conhece o romance de ficção científica utópica de Ursula K. Le Guin, Os Despossuídos. Mas sua fama de certa forma se sobrepõe a outras obras de ficção que são também de grande interesse. Aqui estão algumas.

* O conto And then there were none (1948) de Erik Frank Russel foi a obra de ficção científica mais próxima de uma utopia anarquista anterior ao romance de Le Guin de 1974, e foi elogiada como tal nas páginas do Freedom and Anarchy na época, começando por uma crítica completa em 1954, sob o título “Uma Utopia Anarquista”, dizendo que ela “não apenas deixa uma sociedade anarquista atraente, mas também eminentemente prática.” John Pilgrim, em 1963, especula sobre “o quanto de influência esse conto antologizado teve sobre a formação de opiniões políticas nas gerações após o fim da Segunda Guerra Mundial.”

* No conto Skulking Permit de 1954 de Robert Sheckley, um planeta isolado é recontatado pela Terra Imperial. Os habitantes buscam reviver antigos costumes terráqueos – crime, polícia, etc. – mas falham por não compreenderem a necessidade disso tudo. É uma história anarquista esplêndida. Os colonos viveram por tanto tempo sem autoridade que não há mais necessidade alguma dela. Foi recentemente incluído na antologia Overruled de Hank Davis e Christopher Ruocchio de 2020.

Daily Lives in Nghsi-Altai é uma curta tetralogia de Robert Nichol publicada entre 1977 e 1979. Situada em uma área central da Ásia num futuro próximo de um mundo alternativo, possui fortes valores ecológicos, e a influência anarquista é reconhecida explicitamente. Escrita em um estilo fragmentado, poético e impressionista, teve uma influência significativa sobre Le Guin, que disse “… Nghsi-Altai é em alguns aspectos justamente o lugar onde eu diligentemente tentava chegar, e ainda assim fica bem na direção oposta…”

* O bolo’bolo de Hans Widmer, publicado em 1983 e depois novamente pela editora P.M., é considerado por Ruth Kinna, autora anarquista britânica de The Government of No One, como uma das utopias anarquistas modernas mais influentes. Para Kinna, ela evoca o utopismo de Kropotkin, embora seja claramente distinta dele, como imaginar “possibilidades fugazes em vez de alternativas duradouras”.

* Os Falsos Documentos de Peter Lamborn Wilson são uma coleção diversificada de ficções pseudo-reais, na veia do realismo mágico borgesiano. O melhor deles, e certamente o mais relevante aqui, é “Visit Port Watson!”, que é uma paródia de guia de viagem para a ilha utópica de Sonsorol, combinando de forma divertida ideias de várias vertentes libertárias. Foi publicado pela primeira vez em 1985, em Rucker, Wilson & Wilson, eds: Semiotext(e) SF.

* The Free de Mike Gilliland (primeira edição de 1986; quinta edição de 2021) é descrito pela editora como “Um romance de amor, esperança e revolução, situado em um futuro bem próximo, em uma ilha no litoral britânico. Do subterrâneo à revolução, repressão e resistência!” Em sua lista de temas do romance (no final do texto), Gilliland diz: “Os Livres são inspirados pela festa anarquista, experimentando a interpretação de Pete Kropotkin sobre Darwin. Cooperação em dentes e garras.”

The Free dá um relato excepcionalmente vívido da alegria do processo revolucionário, com personagens fortemente imaginados e diálogos muito críveis.

The Last Capitalist: A Dream of a New Utopia, de Steve Cullen, publicado em 1996 pela anarquista Freedom Press, de Londres, é uma utopia anarquista ambientada em uma futura Grã-Bretanha. A história envolve uma busca pelo capitalista homônimo, onde a Inglaterra foi renomeada como “Atopia” e é explicitamente anarquista, e o estado e o capitalismo desmoronaram em todo o mundo.

Existem políticas alternativas, para refletir as condições e aspirações locais. Entre estes está uma república na Ilha de Man, baseada na democracia delegada. Na Atopia, tudo é voluntário, a educação é por meio de escolas gratuitas e a economia é baseada no escambo. Informada por princípios ecológicos, a tecnologia é, no entanto, suficientemente sofisticada para incluir dirigíveis de controle remoto de alta altitude, para manter as comunicações por satélite. A vida social é alimentada por muita cerveja e uma atitude fácil em relação ao sexo. O livro é alegre e otimista.

The Watch: Being the Unauthorized Sequel to Peter A. Kropotkin’s Memoirs of a Revolutionist– as Imparted to Dennis Danvers by Anchee Mahur, Traveler from a Distant Future; or, A Science Fiction Novel (2002), de Dennis Danver, é um livro  supostamente escrito em primeira pessoa por Kropotkin, o anarquista russo, que foi arrancado de seu leito de morte, rejuvenescido, e inserido em um futuro onde ele tem a oportunidade de promover o anarquismo mais uma vez. O enredo é fraco, mas a escrita é de primeira linha, e o personagem Kropotkin minuciosamente pesquisado, assim como o anarquismo histórico com referências a figuras mais recentes, como Murray Bookchin e Noam Chomsky. É uma introdução maravilhosa às ideias anarquistas para quem não está familiarizado com elas.

A premissa da Anarquia. Uma História Alternativa da Guerra Civil Espanhola, de Brad Linaweaver e J. Kent Hastings (2004), supõe que, em vez de serem derrotados por uma combinação de fascistas e stalinistas, os anarquistas espanhois prevalecem, graças a um Wernher von Braun alternativo, que – com ajuda do ator dos anos 1940, Hedy Lamarr – projeta uma arma baseada em foguetes e a entrega aos anarquistas.

O livro é tão bem pesquisado, e o cenário tão comparativamente desconhecido, que é fácil suspender a incerteza sobre a relação entre a história real da guerra civil e da revolução e a história alternativa que os autores criam. No decorrer da narrativa, há muita discussão sobre os vários estilos do anarquismo ativos na Espanha da década de 1930.

* Em The Marq ‘ssan Cycle-Alanya to Alanya (2005), de L. Timmel Duchamp, as mulheres da Terra, incluindo algumas anarquistas, são ativamente apoiadas pelos alienígenas de Marq’ ssan, que, com superioridade tecnológica ao seu lado, promovem vigorosamente o “autogoverno não-autoritário”. Ele examina as relações de poder em muitos níveis, especialmente o interpessoal.

Blood in the Fruit (2007), de Duchamp , inclui uma sequência em que a North West Free Zone celebra o Dia de Emma Goldman. Três citações de Goldman servem como epígrafe do romance, e a capa apresenta uma fotografia dela falando na Union Square de Nova York. O autor disse que “A maioria dos ativistas da Zona Franca são mulheres da classe trabalhadora que abraçam uma filosofia de vida e política muito próxima da de Goldman…”

* Kes Otter Lieffe veio para a Ficção Científica com uma perspectiva incomum e bastante refrescante. Margens e Murmurações (2017) é o primeiro de uma trilogia, cada livro pode ser lido como um romance independente, apresentando uma distopia futura não muito distante na qual a comunidade LGBTQ+, profissionais do sexo e pessoas com deficiência estão no centro do palco da Resistência.

O seu Conserve and Control (2018) é ambientado no mesmo futuro, mas mais adiante (cem anos a partir da data de publicação) e, nas palavras do autor, o segundo livro “parece superficialmente uma utopia liberal – com os jardins de permacultura e corporações trans-inclusivas – mas é o mundo mais sinistro que pude conceber em 2018”.

Dignity (2020) se passa em um estágio mais próximo no mesmo futuro, quando a pandemia da década de 2020 ainda está fresca na memória. Lieffe diz que sua intenção era que Dignity fosse “a escrita mais utópica que eu poderia encontrar dentro de mim”. Em uma entrevista de 2021, a extensão em que seu trabalho pode ser descrito como anarquista é explicitamente discutida; em vez de fugir da palavra, ela respondeu: “Se as livrarias criarem uma seção de gênero ‘radical, positiva para o trabalho sexual, trans feminista, ficção especulativa’ apenas para o meu trabalho, não vou achar ruim.” A discussão deixa claro que sua intenção é apresentar visões de uma revolução com a qual as pessoas possam se relacionar.

* D.D. Johnston’ s Disnaeland (2022) descreve os primeiros meses após o apocalipse em que a ajuda mútua vem à tona entre os sobreviventes que percebem no devido tempo que a verdadeira distopia foi o que aconteceu antes. O livro é alegremente caloroso e engraçado, a natureza terrena especialmente destacada pelo dialeto influenciado pelos escoceses empregado por toda parte.

Johnston é ele mesmo um anarquista, com uma sólida formação como ativista. A revisão de Liberdade de 2023, descrevendo o romance como “talvez o romance apocalíptico mais esperançoso que você provavelmente lerá”, conclui que “não é necessário ser um anarquista para desfrutar da Disnaeland, mas certamente é um romance que tem muito a oferecer aos leitores anarquistas”.

* ME O’Brien & Eman Abdelhadi: Everything for Everyone: An Oral History of the New York Commune, 2052-2072 (2022). Este romance notável é estruturalmente único em ficção científica por ser apresentado como uma coleção editada de entrevistas de história oral com nova-iorquinos que vivem em 2072, em que nenhuma história única predomina, mas coletivamente o leitor aprende sobre as extraordinárias mudanças sociais que ocorreram nos anos anteriores (ou seja, os cinquenta anos desde a data de publicação).

A resposta às mudanças climáticas e ao colapso econômico e político completo aconteceu no mundo todo, exceto em uma Austrália não reconstruída e radical ao extremo. Ocorreu com extraordinária rapidez e sem qualquer consistência utópica, de modo que, em alguns casos, a transição esteve longe de ser pacífica. Mas o mundo em 2072 é agora essencialmente comunista, numa visão que é essencialmente anarco-comunista, embora o termo não seja usado. A visão, bem como a história, está bem concretizada e é amplamente convincente. Este pode ser um julgamento prematuro da minha parte, mas este é talvez, para os anarquistas, o trabalho mais significativo de ficção científica desde Os Despossuídos.

Há muitos mais que poderiam ser mencionados. Acesse o site anarchySF.com, que tem a cobertura mais abrangente sobre esse assunto.

Ben Beck vive em Londres, onde trabalhou apoiando projetos de gestão de habitação comunitária. Ele ainda está ativo em sua própria cooperativa. Ele acompanhou a associação entre anarquismo e ficção científica por muitos anos. Veja anarchySF.com para ficção científica anarquista; livros, filmes, outras mídias.

Tradução > Bianca Buch

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