
30/07/2025
Escrevemos estas linhas, não por prazer, mas por necessidade, para combater a apatia, os discursos e narrativas que pretendem nos enterrar. Após várias décadas militando no movimento anarquista e depois de viver momentos de luta e compromisso muito mais intensos que os atuais, de participar em coordenações nacionais e federações que funcionavam como ponto de encontro, debate, formação e ação, que atuavam como freio à ofensiva do Estado-capital, que davam um sentido às nossas vidas. Depois de ter vivido e construído fortes vínculos entre companheiros, de ter enfrentado a repressão, de experimentar grandes cumplicidades, participar de grandes manifestações e explosões, de algumas revoltas e de algumas barricadas. Levamos as ideias à prática e colocamos a luta no centro de nossas vidas. O momento atual nos parece pouco. Observamos perplexos o nosso presente, como o refluxo e o conformismo nos arrastaram para os braços da autocomplacência e da resignação, como a radicalidade e as ideias revolucionárias desapareceram dando lugar ao reformismo mais inerte. Observamos também a fuga de companheiros para o nada, para outras tendências, em sua maioria autoritárias, ou para os refúgios do capital. Agora que contemplamos as cinzas do que um dia fomos e vemos no que nos tornamos, surgem-nos várias perguntas: o que aconteceu, companheiros? onde estamos? o que foi feito dos nossos sonhos e aspirações? será que não fomos nada mais que uma birra da juventude?
Nos recusamos a acreditar que nossa luta foi um momento de juventude, de fato estamos convencidos de que não é assim. Acreditamos que a vida é luta e que nossas ideias são a resposta para muitos dos problemas que assolam nossas vidas e a sociedade inteira. Também nos recusamos a pensar que este escrito é fruto da nostalgia e que o sentimento que se reflete neste texto é apenas nosso. Sabemos que mais de um e mais de dois saíram dos espaços e da militância com pesar, que a vida e os anos nos foram consumindo e que, sem sermos muito conscientes, a inércia foi nos afastando uns dos outros e nos levando para a individualidade ou para a família-Estado mononuclear. Mas não é momento de lamentar, nem de ser complacente, tampouco de nos flagelar, nem de nos resignar. É momento de dar um fim à inércia, de fazer um exercício de reflexão individual e coletiva, de esclarecer conceitos e lançar alguma luz sobre a sombra. É momento de nos reencontrarmos e voltar a formar essa comunidade de luta que um dia fomos. Nós continuamos querendo dar batalha, mais ainda, nos recusamos a que outros nos enterrem ainda vivos. Continuamos esperando por nós, mantendo alguns pontos de encontro na esperança de ver voltar os que se foram e, sobretudo, outros novos companheiros que virão, porque continuamos tendo os mesmos sonhos, a mesma raiva, talvez mais intensa que antes. Sabemos que ninguém é imprescindível e que todos somos necessários. Além disso, estamos mais convencidos do que nunca de que tínhamos e temos razão em nossas propostas de luta e na mais que necessária e urgente transformação da sociedade e do mundo que habitamos. A realidade nos demonstra cotidianamente que se não compartilharmos a luta, só compartilharemos miséria.
Está claro que as soluções individuais não servem e que só as coletivas, e a luta pela justiça social, a luta pela anarquia, dão sentido à vida. O resto são substitutos, mercadorias, egos, misérias…
Para romper com a comodidade na qual transitamos, queremos formular algumas perguntas: acabamos com a desigualdade? com a exploração? construímos esse mundo que carregamos em nossos corações? que futuro espera os que virão? então por que deixamos de lutar? por que deixamos de apostar em manter a comunidade de luta, reforçá-la e cuidar dela?
Acreditamos que não há desculpa para abandonar a luta e menos ainda para renegar ela. Pode ter havido acertos e erros, pode haver desgastes e cansaços, mas nada disso justifica a inação, ou o deixar de ser solidário, ou o deixar de dar uma mão nos momentos difíceis. Fechar os olhos para si mesmo não adianta, nem vai nos salvar da barbárie. Menos ainda será se colocar no alto de um púlpito de onde se olha por cima das lutas, criticar e desacreditar sem se sujar, adotar a pose do lutador cansado, torpedear processos e esforços de companheiros, buscar a teoria para a inação e espalhar discursos desmotivadores e alienantes que só justificam a própria inação e essa forma miserável de estar no mundo. Essas atitudes sempre tiveram um nome, que não é outro senão o de renegado. Pela saúde de qualquer movimento, é melhor que estejam fora, ou melhor ainda, tentar calá-los de forma rápida, e pública se possível, porque o dano que são capazes de fazer é tão grande quanto possa ser sua boca grande, ou pior ainda, o certo status que ainda conservam dentro do movimento.
Porque só ter passado para o lado dos privilegiados pode justificar tamanha covardia e miséria pessoal. Porque desacreditar a luta e os espaços de luta não pode ser a opção para abandonar a militância. Por mais tentador e humano que seja, é preciso superar; ter “classe” para abandonar os espaços com honestidade. Nesse sentido, acreditamos que a opção mais nobre é se manter na retaguarda, contribuindo e apoiando os companheiros mais decididos. Dar ânimo e não tirá-lo, mesmo estando em um momento de desmotivação pessoal, falta de tempo ou cansaço. Porque somos quem somos e sabemos que é difícil se reinventar e sentir prazer no mundo da mercadoria. Nós nos conhecemos e vemos o vazio em seus rostos. Sabemos que é mais difícil quando se tem princípios e uma base sólida antiautoritária e anticapitalista. Quando se lutou, deixar de fazê-lo faz com que alguém se sinta, no mínimo, como um colaborador do inimigo.
Hoje em dia, motivos não faltam, e agora mais do que nunca, já que a besta Estado-capital avança sem freio em direção à mais absoluta das barbáries. Vocês fazem falta, companheiros, faltam mãos e ideias para subverter a ordem atual e poder golpear a besta, sentimos falta dessa comunidade de luta que um dia fomos, onde os problemas de um eram os de todos, e quando golpeavam um, respondíamos todos.
Após vários anos de refluxo social e diante de uma sociedade passiva que caiu no hedonismo tecnológico e de consumo, que abraça o fascismo e o totalitarismo como forma de resolver os problemas sociais; uma sociedade cada vez mais estupidificada e manipulada, que rasteja em direção ao abismo para onde os poderosos nos levam, o anarquismo e os anarquistas ainda temos muito a dizer e a fazer. Então, por que deixou-se de militar? por que se abraçam os prazeres do capitalismo e seu modo de vida? por que nossas posições teórico-políticas se deslocam para o esquerdismo e o conforto militante? Cada um terá suas próprias respostas, daqui só podemos pedir que se dê espaço à reflexão e que se abram as portas ao encontro. Pretendemos simplesmente esboçar algumas respostas em linhas gerais e fazer um chamado à responsabilidade militante e a se manter na luta, contribuindo com base nas possibilidades de cada um, ajudando a fortalecer o movimento anarquista e revolucionário.
Que a luta desgasta é um fato, que os refluxos sociais e os ciclos políticos existem e que é preciso estar preparado para que eles não nos arrastem para a derrota e o conformismo, uma certeza. Que precisamos de espaços saudáveis onde os personalismos não tenham lugar, onde nos desenvolver e lutar, que sejam impermeáveis à sociedade de consumo, aos refluxos, à desmobilização e à repressão, é algo a ser construído e, uma vez construído, mantido.
Acreditamos que manter a tensão com o poder, manter a rua, os grupos de afinidade, os coletivos, gerar assembleias nos trabalhos e nos bairros, conspirar coletivamente, gerar coordenações em nível nacional que respeitem a autonomia dos coletivos e grupos onde fazer uso da estratégia para conseguir os objetivos que a curto, médio e longo prazo estabelecermos, é necessário para não cair em posições confortáveis que são a antessala do conformismo e da derrota.
Olhando para trás e sendo conscientes de que as derrotas das gerações se sucedem, tentaremos apontar a partir de nossa experiência alguns dos fatores que nos trouxeram até aqui. Vamos enumerá-los sem nos alongar demasiado, já que a finalidade deste escrito não é outra senão provocar um debate no seio dos coletivos, nos militantes e ex-militantes, e também nas organizações do movimento anarquista. Este texto pretende ser um revulsivo contra o derrotismo e a apatia. Uma faísca que incite a pôr-se em marcha, uma rajada de ar fresco que busca fortalecer o movimento em toda a sua amplitude, abrir linhas de debate e autocrítica que nos permitam sair do impasse em que nos encontramos.
Acreditamos que os principais males que afligem o movimento podem ser os seguintes e podem ser enumerados da seguinte maneira, por mais triste que seja reconhecê-lo: falta de estratégia, de projeção política para além da juventude. Excesso de lazer alternativo que não propõe nada mais e que funciona como substituto da luta. Não ter objetivos claros e compartilhados, o individualismo mal compreendido, a falta de formação teórica que impeça a intrusão de tendências que isolam e desmobilizam. A parcialidade das lutas que faz abandonar o horizonte comum e nos sentir fraternos. A falta de projetos duráveis, de espaços maduros de encontro e discussão entre coletivos e organizações. A falta de ação direta, a competição entre tendências que convertem o movimento em um campo de batalha em vez de buscar a fraternidade em torno da ideia entendida em toda a sua amplitude e diversidade. O converter as ferramentas em ideologias e paróquias. As críticas públicas e impiedosas para os companheiros que só reforçam os egos. O corporativismo dos organizados, a incapacidade para controlar os personalismos e os desvios de iluminados que, erigidos líderes, levam a tocha para outros espaços políticos para manter seu status. Os renegados e derrotistas que continuam pululando pelos entornos e que semeiam apatia e desolação.
Estas podem ser umas pinceladas gerais para enumerar alguns dos fatores e vícios internos que, em nosso juízo, existem em nossos espaços militantes. Também sabemos que cada grupo ou organização deve ter sempre presente a autocrítica, estar de olhos abertos, não se acomodar, manter-se despertos para não repetir erros passados e evitar que os desvios teóricos. Afastar a todo custo o isolamento, as rixas pessoais, os vícios, o fastio e a depressão que rondam os espaços militantes os levem à derrota.
Agora apontaremos alguns fatores que costumam não ser levados em conta pelas novas gerações que abraçam críticas destrutivas, estéreis e pouco profundas que culpabilizam as gerações anteriores, esquecendo que o inimigo que enfrentamos é poderoso e impiedoso, e que a luta provoca um desgaste forte nas vidas militantes.
Também outras tendências políticas de recente criação, cheias de trânsfugas, utilizam as derrotas alheias como arma arremessada contra o anarquismo e aquelas gerações de lutadores, ocultando os fatores externos, utilizando e ridicularizando o sofrimento de outros, para dar saída ao novo produto político triunfalista que montaram e assim continuar sendo papas. Derrota-se quem trava a batalha, não quem passeia pela academia ou pela política sem chegar a ser um perigo para o poder. A esses se deixa ser para difuminar as forças e promover a opção inerte. Uma coisa é perder e outra ser um “derrotado”. Para a segunda, é necessário perder as vontades de continuar lutando, coisa que a nós ainda não nos aconteceu. E, no que nos diz respeito, menos ainda daremos a outros a potestade de tirá-las de nós. Leia entre linhas quem deva e quem possa.
Não podemos esquecer que há fatores externos que escapam ao nosso controle e que, em ocasiões, o que podemos fazer apenas é tê-los presentes. Isto é, ser mais espertos, não lhes dar de bandeja ao inimigo e nos prepararmos para sua inevitável entrada em cena. Uma realidade que, mais cedo ou mais tarde, sempre termina por se manifestar se pretendemos ser uma ameaça para o sistema e o poder. Foram apontados os ciclos políticos, os refluxos, personagens daninhos e os vícios nos quais não cair como movimento, agora, inevitavelmente, toca falar de repressão.
Porque é preciso recordar que os inimigos que enfrentamos são poderosos, possuem uma grande quantidade de recursos e estratégias, além de uma transmissão de conhecimentos e uma atualização constante dos mecanismos de repressão. Citaremos alguns exemplos para ilustrar estes mecanismos. Entendemos que a repressão é um entrelaçado complexo que busca acabar com o inimigo político e que tem distintas estratégias e táticas. Desde a criminalização e o descrédito das ideias perante a sociedade, ao controle da dissidência como fase precoce e permanente da repressão, com a qual se busca recopilar e analisar grande quantidade de informação. Para depois, à base de peneiragens e investigações, afinar a repressão e conseguir uma maior efetividade. De um tempo para cá, tornou-se especialmente atual a figura do infiltrado, mas também existe o informante, a montagem, as escutas telefônicas e ambientais, o hackeio de veículos, computadores, dos aparelhos digitais e o acompanhamento dos militantes e a monitorização dos espaços físicos e de luta (locais, moradias de militantes, manifestações…).
Com toda esta informação se prepara a estratégia repressiva e se age. Às vezes bastará com a pressão policial-judicial continuada contra os militantes na forma de multas, outras com algumas detenções, busca e fechamento de locais. Outras vezes alguns companheiros entrarão na prisão por uma longa ou curta temporada, o que inevitavelmente centrará os esforços em combater a repressão e desviará o movimento de seus objetivos, ao mesmo tempo que se utilizará também uma marcação forte ao entorno solidário como forma de aumentar o dano para o movimento. Às vezes, os golpes repressivos são a desculpa para testar um entorno que, para o poder e as forças repressivas, é difuso ou opaco e assim poder mapear bem as relações, os companheiros ou a organização a abater. Às vezes, os golpes repressivos são em cascata e espaçados no tempo, o que gera maior sensação de pânico entre o entorno solidário e a militância, provocando assim uma maior desmobilização. Porque, nunca é demais lembrar, a repressão busca a desmobilização de uma comunidade de luta, movimento ou organização.
Vemos que cada estratégia repressiva é diferente e que, embora todas busquem a desmobilização e eliminação do oponente político, não devemos enfrentar todas da mesma forma. Saber que o inimigo está à espreita não pode fazer outra coisa senão nos manter vigilantes sem cair na paranoia que impeça a ação. Por outra parte, é necessário saber que o risco 0 não existe quando sua intenção é combater o poder. Um primeiro passo deveria ser sempre proteger-se e proteger o resto de companheiros. Estabelecer estratégias e metodologias para agir sem deixar rastros, passar despercebidos quando for preciso, maquiar e difuminar os golpes pode fazer parte da estratégia a seguir, assim como compartilhar, atualizar-se, acumular e prover-se de experiências, metodologias e estratégias para enfrentá-la, torna-se estritamente necessário para os grupos e revolucionários que pretendam levar a luta a sério.
A repressão é efetiva, por isso seguem usando-a contra a dissidência, porque a repressão individualiza, porque o assédio policial e judicial, a prisão e as multas geram medo e destroem vidas. Está em nossas mãos nos prepararmos para enfrentá-la, buscar mecanismos para atenuá-la, combatê-la e socializá-la. Ser solidários para que os companheiros que a sofrem não estejam sozinhos, além de devolver os golpes ao poder e redobrar esforços na denúncia da repressão, assim como na continuação da luta, combater as forças repressivas e sua sociedade cúmplice. Porque a melhor homenagem é continuar a luta e porque contra sua repressão, nossa solidariedade.
Sirvam estas linhas para nos situar, nossa intenção sempre foi a de falar claro para poder desenvolver estratégias e práticas de luta contra a dominação. Consideramos a repressão uma estratégia mais das que dispõe o poder para acabar com seus inimigos, tem outras mais sutis como são a integração, a marginalização, a criminalização. E das quais tampouco é fácil escapar, por isso manter-se desperto, sem triunfalismos, atento e decidido é necessário para enfrentar o poder, suas estratégias e seus capangas.
Nossa intenção não é a de desanimar, mas sim, todo o contrário. Tampouco a de vitimizar os lutadores, mas a de combater por um lado os discursos derrotistas e seus porta-vozes, os quais acreditamos que podem chegar a fazer mais dano que a repressão em si mesma; e por outro, combater o sistema e tratar a repressão como consequência da luta que travamos. Para isso é necessário tê-la presente e nos prepararmos para enfrentá-la sendo conscientes de que o inimigo é poderoso e nós teremos que estar à sua altura para acabar com ele. Porque seguimos acreditando que nosso momento não passou e que se nos esforçarmos virão tempos melhores, que as explosões e o combate estão por vir, porque não queremos que nos peguem dormidos e atomizados. Anarquia ou morte.
Está em nossas mãos nos reencontrarmos, pôr-nos em marcha outra vez, voltar a ser perigosos para o poder, vocês sabem onde nos encontrar.
Alguns velhos anarquistas
P.S.: Enquanto se redige este artigo, estão ocorrendo os fatos de Torre Pacheco (Múrcia). Onde a ultradireita midiática e neonazistas estão se dedicando à caça ao imigrante. Situações como esta unidas à precarização da vida, a destruição do planeta, a deriva autoritária e totalitária dos estados tornam mais necessário do que nunca um movimento anarquista forte e organizado que saiba enfrentar o fascismo, o capitalismo e o estado. Assim mesmo, assistimos há mais de dois anos ao genocídio em Gaza, perpetrado pelo Estado de Israel que está decidido a exterminar a população palestina. Em um contexto tão devastador como este, torna-se urgente a articulação de um movimento libertário que aspire a combater e transformar radicalmente a sociedade. Que aspire à revolução social.
Fonte: https://www.alasbarricadas.org/noticias/node/57676
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Rosto no vidro
uma criança eterna
olha o vazio
Alphonse Piché
boa reflexão do que sempre fizemos no passado e devemos, urgentemente, voltar a fazer!
xiiiii...esse povo do aurora negra é mais queimado que petista!
PARABÉNS PRA FACA E PRAS CAMARADAS QUE LEVAM ADIANTE ESSE TRAMPO!
Um resgate importante e preciso. Ainda não havia pensado dessa forma. Gratidão, compas.
Um grande camarada! Xs lutadores da liberdade irão lhe esquecer. Que a terra lhe seja leve!