Paula Guerra, socióloga, docente na Faculdade de Letras do Porto e organizadora do KISMIF, conversa com o JN sobre o congresso que saltou da academia para a cidade e nos deu uma semana de eventos e conferências sobre música underground e a cultura do “Do It Yourself”.
Quais os temas centrais que estiveram em debate nesta edição do KISMIF?
Esta edição da KISMIF International Conference decorreu sob os auspícios das culturas DIY, seus espaços, territórios e lugares num contexto de crescente transglobalização. Os temas centrais foram: punk, culturas DIY e espaços de realização; mediações, audiências, mercados e memórias em música; as múltiplas cenas musicais no presente; dilemas da materialidade, historicidade, estética e tecnologias do pop rock na contemporaneidade; carreiras, gênero e envelhecimento nas cenas musicais; dance music, noite e eletrônica; artes, contraculturas, resiliências e resistências; narrativas subculturais; mobilidades e diásporas artísticas e musicais.
Como é que um evento com raiz na academia se projeta na cidade?
Através de um grande esforço de diálogo e abertura da própria academia face à cidade, o que passa por um esforço de mediatização e de reconhecimento de uma sociologia para a ação. Passa também por uma abertura epistemológica a uma práxis, legitimando-a e dando-lhe visibilidade, quebrando fronteiras disciplinares e as barreiras entre a ciência, a teoria e a prática.
Qual a vitalidade do “underground” num ambiente cultural cada vez mais midiático e massificado?
O capitalismo avançado enquadra-se numa lógica de crescente diferenciação como condição de funcionamento, mas também como necessidade de fazer face a todo o conjunto de problemas com que a sociedade atual se depara. Assim, faz muito sentido a emergência de esferas, de espaços e de atividades underground, contra-corrente ao status quo e ao estabelecido. Estas bordas de intervenção sofrem obviamente processos contraditórios de cooptação com o mainstream.
Onde se manifesta, hoje em dia, a cultura do DIY?
Manifesta-se no espírito de iniciativa, traduzido no não estar à espera que existam as condições para fazer algo, mas antes criá-las. Implica também fazer as coisas com pouco dinheiro; é uma forma de autossubsistência e independência; de “empowerment”, emancipação de pessoas e comunidades sem recursos. Manifesta-se como um ethos de rebeldia face às majors; uma forma autêntica e genuína de fazer as coisas. No conjunto dos nossos entrevistados, as formas de v ivenciar o DIY no dia-a-dia prendem-se com as seguintes esferas: no trabalho enquanto músico e/ou editor de música (produção, edição e distribuição de música); na organização de eventos (concertos, festivais de música); na elaboração de fanzines/e-fanzines; nos locais de ensaio, na organização de concertos e tours; na organização de debates; na alimentação (freeganismo, vegetarianismo); na realização de roupas e acessórios, na gravação de discos.
O punk continua a ser uma história em progresso?
O punk é uma forma musical. Mas é também uma forma estética, cultural, política e simbólica. O punk é uma hiperpalavra. Holístico, híbrido, situacionista, dadaísta, o punk encerra um simbolismo muito particular na cultura ocidental contemporânea. Contribuíram para potenciar essa relevância, duas características fundamentais. Primeiro, o punk representou uma inovação, isto é, a vivacidade de uma forma instituinte, numa altura em que o rock dos anos 60 e 70 se encontrava num processo de institucionalização, incorporado pela grande indústria discográfica e aceito, quando não já consagrado, por várias instâncias de legitimação cultural. O punk afirmou-se exatamente como dissidência face a essa lógica de cooptação, prefigurando o underground e estendendo-se para a rua, para a roupa, para a moda, para o design, para a ilustração. Cultura, cena, estética, forma musical: o punk é subversão. Assim, só pode continuar a ser uma história em progresso.
O que podemos esperar do KISMIF 2017?
Primeiro, que vai ter a partir de agora um caráter bianual. Segundo, vai continuar a existir um investimento em termos científicos muito grande, nas parcerias científicas e na relação com a sociedade. Vamos também ter a possibilidade de ter uma coleção de livros editados internacionalmente pela Routledge [prestigiada editora britânica especializada em publicações na área das ciências humanas e sociais] exclusivamente com a marca KISMIF.
Fonte: http://www.jn.pt/cultura/interior/o-punk-e-uma-historia-em-progresso-5298696.html
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