Catalina Muñoz foi executada aos 37 anos em setembro de 1936 durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha e enterrada com o brinquedo do bebê de nove meses, que só ficou sabendo da história 83 anos depois
por Nuño Domínguez | 09/05/2019
Em agosto de 2011, uma equipe de arqueólogos se deparou com um chocalho dentro de uma vala da Guerra Civil Espanhola. Era um brinquedo rosa e amarelo brilhante, em forma de flor, que estava ao lado de um cadáver borrifado com cal viva e enterrado sem caixão. Na hora do almoço, os escavadores não falavam de outra coisa: o objeto poderia ser de 1936?
Parecia uma piada”, recorda Almudena García-Rubio, antropóloga da Sociedade de Ciências Aranzadi, que estava naquele dia em escavações já perturbadores por si só, uma vez que buscavam 250 vítimas da repressão franquista enterradas sob os balanços das crianças no Parque La Carcavilla, na cidade de Palência, onde na época ficava o cemitério municipal.
O chocalho foi levado ao etnógrafo Fermín Leizaola, que cortou um pedaço do plástico e o aproximou de uma chama, onde rapidamente acendeu, deixando um “cheiro característico de cânfora”. Isso provou que era celuloide, um plástico desenvolvido em 1870 e muito usado em objetos do cotidiano até os anos setenta do século XX. O brinquedo poderia ser da época. “Este é o objeto mais chamativo e comovente que pôde ser retirado de uma fossa da Guerra Civil”, opina García-Rubio, que destaca que é o único do tipo extraído de mais de 700 fossas exumadas na Espanha até agora.
Este objeto e a história por trás dele serviram para uma família inteira recuperar a memória de eventos que estavam enterrados. Os registros do antigo cemitério de Palência indicavam que o cadáver era de Catalina Muñoz Arranz, de 37 anos, natural de Cevico de la Torre, um povoado a 30 quilômetros da capital de Palência. Tinha quatro filhos quando a mataram. O menor, de 9 meses, era provavelmente o dono do chocalho.
O bebê é hoje um homem de 83 anos que vive em uma casa humilde na rua principal de Cevico de la Torre, de cerca de 400 habitantes. Fala pouco, tem o olhar fixo e as mãos muito largas de uma vida inteira de trabalho, pois começou aos oito anos de idade. “Eu era um pastorzinho e depois trabalhei no campo. Nunca fui à escola”, explica, na cozinha de sua casa, onde mora com a mulher e a filha Martina, 56 anos. “De minha mãe não me lembro de nada”, diz Martín de la Torre Muñoz. “Não sei nem como era a cara dela porque não temos nenhuma foto dela, é uma pena”, confessa. Nunca pôde perguntar sobre a mãe e na família quase não se falava do que aconteceu.
Depois da morte da mãe, Martín foi criado por uma tia em Cevico. Seu pai, Tomás de la Torre, estava preso, acusado do assassinato de um falangista em uma briga que aconteceu no povoado em 3 de maio de 1936. Foi condenado a 17 anos de prisão. Sua mulher teve destino pior. Foi detida em 24 de agosto, pouco mais de um mês depois do golpe liderado por Francisco Franco, que triunfou em Palência. E julgada por um conselho de guerra em que o prefeito de Cevico e outros dois moradores disseram que ela ia a manifestações, que a tinham visto lavando sangue das roupas do marido, que dava vivas à Rússia e morte à Guarda Civil, e que dissera: “Ainda vamos vencer e vamos fazer deles tajadillas [fritura de pedaços de carne]”.
Catalina não sabia ler nem escrever, mas podia assinar seu nome, segundo o resumo de seu julgamento, mantido nos arquivos militares de Ferrol. Ela é fichada como uma mulher de 1,51m, morena, com cabelos e olhos negros, apelidada de Pitilina. Em 5 de setembro, ela testemunhou e assinou uma declaração em que admitia ter ido às manifestações, mas negava o restante das acusações.
Apesar da falta de provas, o tribunal a condenou por rebelião militar, com a pena máxima. Morreu em 22 de setembro às “cinco e meia do dia […] por ferimentos causadas por arma de fogo de pequeno projétil no crânio e no peito”, segundo detalha o sumário, que coincide quase à perfeição com a análise osteológica que os antropólogos fizeram em 2011, depois de desenterrar o cadáver. Com o corpo também foram encontrados botões, colchetes de metal e as solas de borracha de seus sapatos, número 36.
Alguns metros mais abaixo da casa de Martín está o único parente que se lembra de Catalina: Lucía, sua filha e irmã de Martín. Está agora com 94 anos, a memória é um pouco frágil e tem as mesmas mãos largas do irmão. Em uma sala de visitas da casa de repouso de Cevico, onde Lucía mora, ela recorda o dia em que prenderam sua mãe. “Saiu de casa correndo com o menino e caiu na parte de trás de uma casa e foram pegá-la. Com o menino não aconteceu nada. Ela estava com um avental de cintura, de abertura preta, para se proteger. É a única coisa que levava quando saiu de casa”, diz. Ela não se lembra do chocalho, Lucía diz que é provável que estivesse no bolso do avental. “Tinha temperamento forte, nisso eu me pareço com ela. Se lhe diziam alguma coisa … Jesus. E por isso eles a mataram. Já faz algumas semanas que não paro de chorar me lembrando”, lamenta com os olhos umedecidos e o olhar perdido. Lucía tinha 11 anos quando fuzilaram sua mãe. Ficou sob os cuidados do avô e começou a trabalhar ainda criança nas casas de pessoas abastadas na cidade, mas não puderam se encarregar do enterro em Cevico.
“Entre a centena, aproximadamente, de mulheres assassinadas nos primeiros meses da guerra na província de Palência, Catalina Muñoz é a única que foi julgada e condenada à morte, o resto eles executaram”, ressalta Pablo García-Colmenares, professor de História Contemporânea da Universidade de Valladolid e presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica de Palência (ARMH). Ele é o autor da obra Víctimas de la Guerra Civil en la provincia de Palencia (1936-1945), editada pela Junta de Castela e Leão.
Quando o pai de Martín saiu da prisão, foi trabalhar em Bilbao. Muitos anos depois, já aposentado, voltou para Cevico e viveu ali os últimos oito anos de sua vida. Nunca conversaram sobre o que aconteceu e Martín não lhe perguntou nada sobre a mãe para não despertar memórias dolorosas.
Martín não sabia que a mãe havia sido enterrada sozinha em Palência e agora viu pela primeira vez a foto do brinquedo levado ao túmulo.
Como ninguém reivindicou os restos e pertences de Catalina, foram enterrados no novo cemitério de Palência com outras vítimas da repressão, mas em uma parte separada. Depois que ficou sabendo da história do brinquedo e seu paradeiro, Martina, a filha de Martín, iniciou os trâmites para recuperar o cadáver e, com ele, o chocalho, que poderá voltar às mãos de seu pai 83 anos depois.
Martina foi pela primeira vez a Palência para ver o monolito de La Carcavilla que lembra as vítimas, onde figura o nome de sua avó, comprou o livro do professor Colmenares sobre as vítimas da Guerra Civil da Espanha e quer fazer uma urna para guardar o chocalho, para que seus filhos e netos conheçam a história. “Ao ver o nome de Catalina gravado no monólito tive uma sensação de vazio muito estranha, mas, por outro lado, estou muito feliz por poder recuperar a minha avó e levá-la para junto de meu avô. Acho que ele não teve culpa pelo que aconteceu com minha avó, como se pensava, mas foi ele quem se entregou para encobri-la, foi um gesto de amor”, explica Martina. Ela diz que seu pai agora fica às lágrimas quando se pergunta se vai morrer antes que lhe tragam a mãe de volta.
Objetos como o chocalho de Catalina são pequenos tesouros para os arqueólogos contemporâneos, que aplicam métodos científicos à recuperação e ao estudo de materiais de episódios da história recente. Às vezes, emblemas militares ou alianças de casamento são fundamentais para identificar algumas vítimas. “Os objetos pessoais recuperados com os corpos permitem uma aproximação do cotidiano das pessoas vítimas da repressão”, explica García-Rubio no livro Mujeres en la Guerra Civil y la Posguerra. Memoria y Educación (Editora Audema). “Um lápis, óculos, um relógio, um pente, um recorte de jornal com o resultado do Tour de France do ano de 1936 são pequenos flashes da vida de cada um refletida no que levavam nos bolsos no momento em que foram presos. Às vezes são elementos muito particulares, como abotoaduras com o desenho de um faraó, mas na maioria das vezes são elementos típicos de uma época e de uma ocupação, como as centenas de solas de borracha de sapatos de trabalhar na lavoura recuperadas nas sepulturas de Burgos, Palência e Valladolid”, observa.
Em outros casos, os objetos proporcionam uma visão diferente de episódios da história recente, explica Alfredo González-Ruibal, arqueólogo do CSIC que está há anos escavando trincheiras e campos de concentração da Guerra Civil, dos quais recuperou dezenas de milhares de objetos que são catalogados e arquivados e que, à sua maneira, resumem o conflito. Há medalhas, crucifixos, frascos de perfume, sapatos de salto alto, bem como quilos de estilhaços e munições.
“O poder desse tipo de arqueologia não é contar um episódio já conhecido, mas sintetizar um momento da história com uma imagem”, explicou o pesquisador em uma recente conferência no Museu Arqueológico Nacional, na qual destacou o chocalho de Catalina como um dos objetos que melhor condensam a história da Guerra Civil.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/07/internacional/1557240719_368278.html
agência de notícias anarquistas-ana
por entre os salgueiros
clarão sedoso das águas
enluaradas
Rogério Martins
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!
Um puta exemplo! E que se foda o Estado espanhol e do mundo todo!
artes mais que necessári(A)!
Eu queria levar minha banquinha de materiais, esse semestre tudo que tenho é com a temática Edson Passeti - tenho…