[Espanha] A dignidade do mestre libertário

Francisco Portales Sirgado morreu em decorrência de uma paulada na prisão de Valladolid, em 1941; sua bisneta luta por exumar seus restos, depositados na fossa dos pobres do cemitério do Carmen.

Aquele era um dos poucos ramos de flores que alguém depositava na fossa dos pobres. Trazido por María Luisa Hernández Portales, sevilhana de Montequinto, junto com a esperança de poder exumar os restos de seu bisavô. Era verão; mais ainda, era 18 de julho, uma data carregada de significado para os familiares de quem, comoFrancisco Portales Sirgado, morreu pelas mãos dos militares que se revoltaram nesse mesmo dia em 1936. Frente à fossa dos pobres –parcela 89– do cemitério municipal do Carmen, María Luisa não pode conter a emoção. E no mesmo instante, o céu mudou imediatamente: “Foi mágico, como se minhas lágrimas imitassem a chuva”, relembra do outro lado do telefone.

Naquele 18 de julho de 2018, 82 anos depois do golpe militar que provocou a Guerra Civil e desatou as tempestades que acabariam com a vida de seu bisavô, María Luisa pode, por fim, encontrar seus restos.Levava mais de um ano dando tiros cegos, perguntando em locais errados, pesquisando em arquivos de mídia espanhóis e perseguindo rastros incompletos: “Em maio de 2017, visitando o cemitério de Zahínos, município da província de Badajoz, vi a lápide de minha bisavó, Luísa, mas a dele não estava lá. Perguntei e me disseram que o haviam matado depois da Guerra, quando ele estava em uma transferência de prisioneiros em Guadalajara. Mas outros me diziam que morreu em Valladolid. Então comecei a procurar”.

O certo é que seu bisavô, Francisco, não era um homem que passaria despercebido. Nascido no dia 10 de maio de 1871 em Zahínos, havia recebido de seus pais a vocação pelo ensino, que começou a exercer como interino na escola de sua cidade, e também o compromisso político. Como recorda o Grupo de Memoria Histórica da CNT de Valladolid, que reconstruiu sua biografia. Foi eleito conselheiro em 1902 e 1906 e exerceu o papel de prefeito em duas ocasiões, em 1909 e entre janeiro de 1910 e dezembro de 1911. Também teve tempo de participar na criação da Sociedade Civil ‘El Progreso‘, fundada em 1902, e de exercer a vice-presidência em sua junta administrativa.

Filiou-se à CNT e à FAI em plena guerra e lutou ao lado dos republicanos

Pai de 14 filhos –nem todos chegariam à idade adulta–, lhes incutiu seus ideais progressistas e libertários no tempo em que exercia a docência como professor nacional em Santas Martas (León), Sesnández de Tábara (Zamora) e, finalmente, em Guadalajara, onde foi surpreendido pelo estouro da Guerra Civil. Uma de suas filhas, Sucesso Portales Casamar, filiada à CNT desde 1934, foi a fundadora do movimento Mulheres Livres. Francisco se filiou ao sindicato único de ensino da CNT ao final de julho de 1936 e à FAI em outubro de 1938, em plena guerra, elutou ao lado das autoridades republicanas até a definitiva derrota em Guadalajara, no dia 28 de março de 1939, pelas mãos das tropas franquistas.

Por isso não pode escapar. Na prisão de Brihuega foi conduzido à capital de Guadalajara. Submetido, em maio de 1940, a um implacável Conselho de Guerra, argumentos comotê-lo visto com uma touca anarquista foram suficientes para condená-lo a 20 anos e um dia de prisão pelo delito de “auxilio à rebelião”. Um mês depois, o Ministério da Educação ratificava sua separação definitiva da profissão. Ao menos diminuíram sua pena para 12 anos e um dia. No dia 10 de março de 1941 foi ordenado seu traslado à colônia penitenciaria da Ilha de San Simón, em frente ao rio de Vigo, junto a outros cinco presos. Mas ele nunca chegou. A tragédia o esperava na prisão de vallisoletana, onde ingressou como preso transferido e onde, segundo testemunhos da época, vários guardas lhe armaram uma emboscada e lhe apunhalaram por ensinar outros presos a ler. Era 18 de março de 1941. Faleceu no mesmo dia às três da madrugada; faltava apenas um mês e vinte e três dias para completar 70 anos.

Via judicial

Horas mais tarde, o cadáver de Francisco Portales era depositado na fossa dos pobres do cemitério municipal do Carmen (parcela 89). E depois, o silêncio; um silêncio que durou 77 anos, concretamente até o dia 18 de julho, quando sua bisneta, María Luisa Hernández Portales, veio a Valladolid com um ramo de flores e uma dupla petição para a prefeitura: exumar seus restos para dar-lhe uma sepultura digna e colocar uma placa comemorativa na antiga Prisão Nova –edifício que atualmente abriga o centro cívico la calle Madre de Dios– em homenagem às vítimas do Franquismo.

Hoje, no entanto, tudo tem sido mais difícil, pois nem sequer a Associação para a Recuperação da Memória Histórica de Valladolid, com a qual contatou, lhe deu garantias de poder realizar a exumação. Disseram-lhe, entre outras coisas, que essa grande fossa podia ter sido levantada nos anos 80 para sua ampliação e venda de sepulturas a particulares. O que a levou a interpor uma demanda ante o julgamento de Instrução número 2, solicitando a exumação dos restos de seu bisavô, que no início de agosto foiprescrita e arquivada por não ser “competência deste Tribunal”.

Longe de render-se, María Luisa segue fiel à sua missão e tem o apoio doGrupo de Memória Histórica da CNT vallisoletana, que além de somar à petição de exumar os restos de Francisco Portales “aproveitando as atuações que o consistório vallisoletano, por meio da ARMH, está realizando no cemitério do Carmen”, reclama a “participação ativa” em ditos trabalhos tanto das organizações históricas como das próprias famílias afetadas. O último passo que María Luisa deu foi recorrer à justiça argentina através de seu Consulado em Cádiz. Disse que não se renderá, que recorrerá ao que for necessário para restaurar a dignidade ferida de seu bisavô, o mestre libertário.

>> Foto: Francisco Portales, com seus alunos da escola de Zahínos em 1915.

Fonte: https://www.elnortedecastilla.es/valladolid/dignidad-maestro-libertario-20190225200152-nt.html?fbclid=IwAR1_AaSkKrwX0WrA1Ifc9d2IopyMipLd0PMIEdvXzsBoE3zAaQl6R2iFUwQ

Tradução > Daitoshi

agência de notícias anarquistas-ana

Se mira na poça
de lama do pátio
a lua vaidosa

Luiz Bacellar