[Espanha] O exílio anarquista, o maior esquecido 80 anos depois

Depois de terminar a Guerra Civil na Espanha, milhares de libertários fugiram em busca de liberdade. Embora mal tenham sido oferecidas ajuda das instituições do momento, a CNT poderia se recuperar ao longo do tempo até o dia de hoje, quando os atos de reparação continuam silenciando sua história.

Por Guillermo Martinez | 17/11/2019

Martín Arnal acaba de completar 98 anos. Se anda rápido, se cansa com facilidade, então espera pela primeira ligação logo de manhã ao lado do telefone fixo na casa que construiu em sua cidade natal, Huesca, depois de voltar de um exílio de mais de 35 anos na França. É um dos poucos anarquistas vivos que foi mobilizado para lutar na Guerra Civil, da qual fugiu em 1939 para a França e depois voltou ao seu local de origem, uma vez que Franco já havia morrido.

Sua voz quebrada conta a história viva de um exílio forçado, esquecido por anos e vilipendiado hoje, agora que o 80º aniversário do fim da contenda foi cumprido. Da Fundação Anselmo Lorenzo (FAL), o historiador e professor da Universidade Complutense de Madrid (UCM) Javier Antón curou uma exposição que pode ser visitada até o final de novembro e reúne cronologicamente as diferentes etapas que os milhares de libertários no estrangeiro percorreram durante sua jornada para longe do país onde lutavam pela liberdade e contra o regime fascista de Franco.

“A maioria dos anarquistas exilados foi para a França devido à porosidade dos Pirineus, já que muitos conheciam bem a região por terem lutado nela”, disse o encarregado da amostra. Algo semelhante aconteceu com Arnal quando, aos 17 anos, em 1938, foi forçado a partir para o país francês pela primeira vez, porque as tropas de Franco estavam conquistando a área em que vivia. “Nesse meu primeiro exílio, fiquei doente, mas assim que me recuperei voltei à fronteira para entrar na Catalunha, embora lá não me mobilizassem porque éramos muito jovens”, diz o aragonês.

Os anarquistas são vilipendiados pelas instituições

Seu segundo exílio, que duraria até 1975, começou em 3 de fevereiro de 1939. Como tantos outros, esse anarquista quase centenário que desde os 15 anos de idade está militando na Confederação Nacional do Trabalho (CNT) teve que se virar para sobreviver. “Embora a maioria dos exilados anarquistas tenha passado para a França, a dispersão foi grande: existem referências de até 20 países para os quais eles fugiram, como Argélia, Brasil, Venezuela, Reino Unido ou Bélgica, mas principalmente México e Argentina”, denuncia Anton.

Da mesma forma, o professor da Complutense enfatiza o fato de que os exilados anarquistas eram os piores desempregados no que diz respeito às cotas de pessoas que foram oferecidas asilo em outros países. “O Serviço de Evacuação da Espanha Republicana (SERE) e a Junta de Assistência aos Republicano da Espanha (JARE) ajudaram descaradamente a liderança dos socialistas e comunistas enviando-os para o México e o Chile, embora fossem dois países nos quais também foram enviados importantes cenetistas”, sublinha Anton.

“As instituições deixaram de lado o movimento libertário o máximo que puderam, de modo que a realocação dos exilados foi desigual porque algumas ideologias eram privilegiadas antes de outras, quando todas haviam lutado e derramado sangue contra o fascismo na Espanha”, argumenta o comissário da exposição com base nos números registrados: no Chile, onde 2.500 refugiados chegaram, apenas 400 eram anarquistas, e no México, onde mais de 3.000 pessoas da Espanha chegaram, os libertários constituíram apenas pequena porcentagem.

Note-se que alguns membros da CNT, uma central sindical que se tornaria o eixo da luta anarquista no exílio, receberam ajuda. Segundo Anton, esse auxílio visava “aqueles que ocuparam cargos no governo, na administração ou em estruturas militares, que foram ajudados e bem recolocados”. Nesse sentido, esse professor universitário calcula que 90% dos cenetistas tiveram que ganhar a vida sem a ajuda de ninguém.

Confrontos dentro da CNT

Os membros da associação anarcossindicalista estavam espalhados por todo o mundo, exceto aqueles que continuaram a lutar de maneira armada contra o regime de Franco, integrados aos maquis ou aos guerrilheiros urbanos. É nessa jornada do tempo que há uma divisão dentro da CNT. Isso explica a situação de Julián Vadillo, professor da Universidade Carlos III de Madrid (UC3M), especializado no movimento operário do século XX: “Alguns pensavam que o formato colaboracionista aberto em 1936 deveria terminar com a vitória de Franco, e outros achavam que A Guerra Civil não terminaria enquanto o ditador estivesse no poder, então o sistema colaboracionista deve seguir em frente”.

Essa situação tem consequências na CNT, como a “perda de pragmatismo que caracterizou o movimento libertário devido à repressão e perseguição sofrida pelos anarquistas, o que acrescenta que, naturalmente, eles não estavam desenvolvendo suas atividades no habitat a que estavam acostumados, que era a realidade espanhola”, comenta Vadillo. Mesmo assim, mais de 30.000 anarquistas sediados na França foram afiliados e contribuíram para o sindicato espanhol em meados dos anos 40. Essa dinâmica ainda tem seus ecos no passado mais imediato, já que até 2010 vários delegados enviados por parte dos 250 cenetistas que ainda moravam na França participaram dos Congressos Nacionais da CNT, como enfatizou Miguel García, atual secretário geral do sindicato.

A vida de refugiados na França

Arnal lembra como ele começou sua vida do zero depois de deixar para trás algumas das experiências mais complicadas de sua vida, como o assassinato de dois irmãos que as tropas de Franco capturaram quando se aproximaram das instalações do sindicato para descobrir o que estava acontecendo durante o primeiro dias da contenda. Ou que a casa de sua família foi roubada para venda posterior, bem como a ocupação pelos fascistas das terras que nunca mais seriam trabalhadas pela família Arnal. “Durante a ocupação alemã da França, o trabalho de todos os espanhóis era cortar lenha, de modo que aqueles que nunca pegaram um machado estavam com as mãos cheias de bolhas. Mas eu não, já que trabalhei com meu pai desde pequeno”, lembra esse veterano cenetista.

Nos primeiros anos da década de 40, o governo francês enviou Arnal ao campo de trabalho de Argelès-sur-Mer, onde seria designado à Companhia de Trabalhadores Estrangeiros para acabar lutando com a resistência francesa até que se produziu a “deblace”, em suas próprias palavras, referindo-se à queda do país gaulês nas mãos dos nazistas.

O testemunho e os jornais dos exilados

Os anos se passaram e a vida orgânica da central anarcossindicalista continuou a se desenvolver. Uma boa prova disso agora é exibida no salão da FAL, a fundação cultural da CNT, responsável por guardar a documentação histórica do sindicato, publicar livros ou promover eventos culturais como esse. “Na exposição, fizemos uma seleção de 34 jornais de diferentes confederações no exterior, agrupados por data de aparência e área de publicação, atingindo 12 países, mas principalmente França, México, Argentina e Venezuela”, diz Antón.

Os dois historiadores mencionados concordam com a importância que a publicação de jornais e a criação de editoriais tiveram quando uniram um movimento tão disperso no espaço, “uma característica que permanece nos períodos anteriores”, segundo o professor da UC3M. A exposição percorre, além dos títulos das publicações, acompanhados de fotografias, alguns objetos significativos. “A imprensa mostra especificamente os dois aspectos da CNT no exílio, os setores mais ortodoxo e o mais possibilista”, diz o curador da exposição.

O retorno à terra proibida

“É nos anos 70, após o episódio de maio de 68 parisiense e tendo começado um franquismo tardio e aberturista, quando certos anarquistas retornam individualmente à Espanha, onde alguns são fuzilados porque as ordens de busca e captura que pesavam sob eles ainda estavam em vigor fazia trinta anos atrás”, acrescenta Anton.

O ano da morte do ditador seria a data indicada para o retorno de muitos militantes libertários exilados, “apesar de terem chegado com absolutamente nada, muitos deles ainda estão proscritos e, é claro, sem direito a qualquer tipo de pensão”, registra o professor da UCM. Assim, seguindo a trilha cronológica do movimento, a última imagem que aparece na sala da FAL é datada em 1977, quando a legalização da CNT é solicitada no registro, iniciando assim a reconstrução oficial do sindicato.

Memória histórica libertária hoje

Até hoje, pouco mudou para a memória do exílio anarquista. A voz da experiência incorporada em Arnal resume o seguinte: “Que agora esses republicanozinhos se aproveitam sem fundamento da memória coletiva que é a repressão franquista  e que apenas bandeiras tricolores sejam vistas em atos de reparação… Eu não gosto de guerra de bandeiras, o que precisa ser feito é seguir o coração à frente, porque logo uma bandeira é pega e incendiada, mas apesar disso toda a memória libertária é óbvia”. Uma circunstância, a do esquecimento, em que Vadillo culpa que “a memória anarquista é uma memória mais irritante, e torna-se a grande ignorada em todos os sentidos”.

Na mesma sintonia está Anton, que afirma que “os exercícios de memória que o governo está realizando são apenas retóricos, lembrando os fatos que lhes interessam e sem colocar nada”. Garcia, secretário geral da central anarcossindical, defende: “Deve haver algum medo do governo porque eles não querem se sentar e conversar conosco. A CNT é o apoio mútuo e a ação direta, algo que os faz vacilar como instituição, assim eles nos evitam porque sabem que podemos mudar as coisas”.

Nesse sentido, embora do ponto de vista de Vadillo em nenhum lugar do mundo os atos de reparação estão à altura do próprio movimento libertário, se espera que “o trabalho realizado pelas associações civis e a recuperação da memória histórica possam tornar-se não apenas em um instrumento de estudo acadêmico, mas que também tenham certa utilidade social, que é para onde se deve caminhar”, conclui o historiador.

Por sua parte, Arnal lembra que, para saber exatamente onde seus dois irmãos estavam, tiveram que exumar também cerca de cinco cadáveres do bando nacional: “O povo de Franco jogava muito profundamente o nosso e somente depois jogavam o seu”. “Lá estão os dois, em um poço, jogado pior que o lixo, porque pelo menos o lixo está em recipientes e você pode separar alguma coisa, mas não lá. E quando eles fizeram uma exumação ao lado do corpo do meu irmão, ele estava em um esqueleto e eu fiquei olhando para ele… e parecia que ele estava me dizendo que a justiça tinha que ser feita”, diz esse veterano libertário.

É ele mesmo, Martín Arnal, aquele homem nonagenário que atende meia-hora sentado ao telefone e que já pagou sua cota da CNT até fevereiro do próximo ano que conclui, com certeza: “É terrível, mas assim é a história”.

Fonte: https://www.publico.es/politica/exilio-anarquista-mayor-olvidado-80-anos-despues.html

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Flauta,
cascata de pássaros
entornando cantos úmidos.

Yeda Prates Bernis