Em todo o Brasil, no dia 29 de novembro se encerrou o ritual eleitoral municipal, com exceção do adiamento da votação para dezembro, devido ao apagão que atingiu inúmeras cidades no Amapá. Mais uma vez o recorde de votos não foi para nenhum partido-candidato, mas para as abstenções. Ao final da apuração do segundo turno, em capitais como Rio de Janeiro e Goiânia, a soma de abstenções foi superior aos votos dos vencedores do pleito. Analistas políticos em programas de TV aberta, a cabo ou no YouTube justificaram o aumento, desta vez, pela chamada pandemia da Covid-19. Contudo, mesmo que o novo coronavírus tenha intimidado uma parte considerável dos eleitores, pesquisas mostram que desde o início dos anos 2000, o número de eleitores ausentes, mesmo com a obrigatoriedade do voto, só aumentou.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, em 2002, pouco mais de 15% da população apta a votar não votou. Quatorze anos depois, em 2016, o número que não compareceu foi 22% e, agora, no segundo turno, atingiu o patamar de 30%. Segundo pesquisas acerca da distribuição de votos pela cidade (no primeiro turno), o número de abstenções se concentrou, sobretudo, no chamado centro expandido, enquanto votos brancos e nulos marcaram mais as zonas eleitorais situadas nas periferias (não há ainda dados relacionados ao pleito do último domingo).
A partir dos “mapas de votos” investigadores concluíram que em áreas centrais da cidade, na qual mulheres e homens podem realizar as suas atividades em home office fora do município, ou seja, em suas respectivas habitações, no litoral ou interior, a abstenção cresceu mais. Essas mesmas áreas são identificadas ainda por uma população etária mais velha, a chamada população de risco ao novo coronavírus. Todavia, tal leitura reservada somente a 2020 não leva em consideração o que algumas estatísticas apontam há muito tempo que as abstenções não param de subir desde o começo do século.
Mesmo com a ampliação de estudos acerca da abstenção, a permanência do voto obrigatório reintroduzido pela ditadura civil-militar e assimilado por todos os governos do chamado período de retomada da democracia, impede uma compreensão mais clara sobre quem são as pessoas que não se apresentam à convocação eleitoral. A ausência indicaria algum protesto em andamento? E qual?
Por falar em continuidade do voto obrigatório frente ao aumento exponencial da abstenção, nesse ano ela foi similar à das eleições dos Estados Unidos, onde o voto é facultativo. Então, por que não enfrentar de vez essa questão? Espera-se pelo consentimento de uma autoridade do TSE?
O voto obrigatório foi instituído em 1932 no governo de Getúlio Vargas e levado adiante pela ditadura civil-militar. Ainda hoje, trinta e cinco anos depois do ocaso da ditadura, pouco se comenta, mas, o Código Eleitoral ainda em vigor no país foi promulgado pouco tempo após o golpe de 1964 (Lei n. 4.737, de 15 de Julho de 1965). Nesse ano, a obrigatoriedade do voto no Brasil escancarou ainda mais a sua estupidez e violência. Em meio ao crescimento de taxas de transmissão pela Covid-19, mesmo assim milhões de pessoas mascaradas saíram às ruas para exercitar a sua cidadania.
Umas por crerem na democracia e no voto, outras compelidas pela ameaça de punições, outras porque não querem dar mais dinheiro em tributo ao Estado, mesmo que seja um preço mínimo e módico, outras por convicções ideológicas… Enfim, o que se constata é que algo se passa… Inclusive que há adeptos dos tiranos que usam e abusam de democracia e para quem votar é um desperdício, pondo liberais e esquerdistas em sinuca de bico.
Desde o governo do general Castelo Branco, quem não vota e deixa de justificar a sua ausência no ritual fica proibido, entre outras atividades, de prestar concursos públicos ou de deixar o território nacional mesmo para o turismo. Todavia, se o pagamento da pequena multa for efetuado, a situação do eleitor se regulariza novamente. Se o(a) eleitor(a) for a um cartório eleitoral 90 dias depois das eleições, poderá justificar e poupar a multa. E, ainda, pode utilizar a grande novidade do ano, o app do TSE, que promete processar a justificativa para evitar aglomerações — apesar de ter inúmeros erros e falhas para processá-las. Cabe ao eleitor a paciência em submeter sua justificativa até ser aceita. É, também, o que vem acontecendo. Enfim, é cada vez maior o contingente que não comparece às urnas e escolhe acertar passivamente o boleto da multa em alguma agência bancária próxima ao seu cartório eleitoral.
Contudo, não foi sempre assim. Na metade do século XIX, anarquistas já combatiam diretamente a política, incluindo seus rituais eleitorais. E tal combate irrompeu da própria experiência de Pierre-Joseph Proudhon na Assembleia Nacional. Proudhon foi eleito, em 1848, com quase oitenta mil votos, no rescaldo das revoluções que se espraiaram por todo continente europeu naquele ano. Pouco tempo depois de ocupar uma cadeira no parlamento, o autor de O que é a propriedade?, concluiu: “Assíduo, desde às nove horas, às reuniões nas comissões e comitês, não deixava a Assembleia senão à noite, esgotado de fadiga e desgosto (…). Eu não sabia de nada, nem das oficinas nacionais, nem da política do governo, nem das intrigas que se cruzavam no interior da Assembleia. É preciso ter vivido nesse isolador que se chama Assembleia Nacional, para conceber como os homens que ignoram mais completamente o estado de um país são quase sempre os que o representam”.
Anos mais tarde, sob efeito da recusa de Proudhon — um marco para a atitude antiparlamentar anarquista —, Piotr Kropotkin prosseguiu no ataque à centralização e isolamento provocados pela política. O libertário russo, propagador do apoio mútuo, declarou: “seu representante deverá emitir uma opinião, um voto, sobre toda a série, variada ao infinito, de questões que surgem nesta formidável máquina — o Estado centralizado. Ele deverá votar o imposto sobre os cães e a reforma do ensino universitário, sem jamais ter colocado os pés na universidade, nem sabido o que é um cão de caça”.
Os questionamentos de Proudhon e Kropotkin são conhecidos na chamada História do Anarquismo. Assim como os de Emma Goldman, “se votar fizesse alguma diferença, fariam-no ilegal”, ou de Élisée Reclus, “votar é entregar-se a um senhor”. Poucos conhecem as corajosas histórias desses questionamentos no Brasil. Por aqui, em 1917, Edgar Leuenroth recusou incisivamente tornar-se um candidato mesmo depois da ampla mobilização para que ele se tornasse representante dos operários depois da Greve Geral ocorrida em São Paulo. Seu contemporâneo, José Oiticica, além de atacar o voto defendeu a ação direta como única maneira de transformar decididamente a sociedade. E como não lembrar Maria Lacerda de Moura, de seu rompimento com certas mulheres que defendiam o voto como possibilidade política. Com a ditadura civil-militar, na década de 1970 e 1980, os integrantes do jornal O Inimigo do Rei, debochavam: “parlamentar é pra lamentar” e, poucos anos depois, anarcopunks estampavam, pelas ruas, em shows e zines, a abstenção ou o voto nulo.
Não é de estranhar que nas discussões e debates cada vez mais frequentes sobre as abstenções travadas por analistas em seus programas ou podcasts, a prática anarquista de embate anti-eleições não apareça uma vez sequer. É que distinto do que sugere o cenário atual, o antivoto das mulheres e homens ácratas coloca em xeque, simultaneamente, questões sagradas: a obrigatoriedade do voto, o Código Eleitoral, a política e o próprio emprego dos empolados analistas.
O estranho mesmo é como diante do aumento evidente da miséria e dos cadáveres por Covid-19 não acontecer uma revolta em meio às campanhas eleitorais que se espalharam por todo o território brasileiro.
Em meio a um novo crescimento das taxas de transmissão do coronavírus o que se viu, à direita e à esquerda, foram candidatos e candidatas provocando aglomerações pelas ruas das mais variadas cidades, ao mesmo tempo em que condenavam as aglomerações por outros motivos, em uma demonstração de “cuidado” com a saúde do rebanho. Afinal, o que dizem e repetem os súditos é que votar é um direito do cidadão.
Sobre voto e revolta, em “Escuta, eleitor”, o anarquista Sébastien Faure, há quase um século, afirmou: “O Estado é o guardião das fortunas adquiridas; é o defensor dos privilégios usurpados (…) é o que do alto põe um punhado de milionários ao abrigo dos assaltos que lhe lança a torrente agitada dos espoliados. Assim é natural, lógico e fatal que os detentores dos privilégios e da fortuna votem com entusiasmo”. O que Faure e os anarquistas não compreendem é como pobres, miseráveis, pessoas acossadas sistematicamente pelo Estado, votem e aceitem a política que perpetua as violências das quais são alvos.
O trecho de Faure é instigante. O voto é a continuidade dos privilégios, mesmo quando sua bandeira seja precisamente a oposta. A revolta é a possibilidade corajosa de inventar outra vida.
Fonte: Hypomnemata 240 – N° 240, novembro de 2020. Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
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“A próxima descida trará
Mais quaresmeiras em flor!”
Paulo Franchetti
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!
Um puta exemplo! E que se foda o Estado espanhol e do mundo todo!
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Eu queria levar minha banquinha de materiais, esse semestre tudo que tenho é com a temática Edson Passeti - tenho…
Edmir, amente de Lula, acredita que por criticar o molusco automaticamente se apoia bolsonaro. Triste limitação...