
por Norman Nawrocki
Fifth Estate nº 416, primavera de 2025
Apesar de ser uma das ideologias políticas mais incompreendidas de nossos tempos, o anarquismo possui uma longa e bela história de um pensamento político elaborado, movimentos sociais vastos e bem organizados e uma riqueza cultural de arte, literatura, cinema, música e teatro. Teatro anarquista não-comercial, não-burguês. Teatro anarquista inebriante, impregnado de liberdade e igualdade, humanidade e esperança para todos.
No início do século passado, anarquistas renomados, como a americana Emma Goldman e o igualmente respeitado russo Peter Kropotkin, defenderam fortemente um teatro politicamente consciente e seu potencial radical, referindo-se às peças de Ibsen, Gorky, Tolstoi, Wilde, Erich Mühsam, Voltarine de Cleyre e Louise Michel. Eles enfatizaram que o teatro era um meio ideal para comunicar ideias, aspirações e opiniões políticas dissidentes clandestinas, com foco no conteúdo e não na forma.
Buenos Aires, que já era um polo de anarco-sindicalismo e de organização da classe trabalhadora desde o início do século XX, ostentava não apenas uma, mas uma dúzia de grupos de teatro anarquista, assim como os movimentos camponeses revolucionários na Rússia e na Ucrânia. O teatro surrealista de orientação anarquista floresceu na Europa a partir da década de 1920, inspirado pelo trabalho ardente de escritores franceses brilhantes como Antonin Artaud, Benjamin Péret, Tristan Tzara e outros. Apresentações provocativas aconteciam em cafés, bares e teatros em todo o continente e além. Na década de 1960, o célebre Bread and Puppet Theater de Vermont [Teatro Pão e Marionete] encenou enormes cortejos e desfiles contra a guerra do Vietnã nas ruas. Na década de 1990, a orquestra de rebeldes anarco-cabarés de Montreal, Rhythm Activism, produziu cabarés comunitários teatrais radicais no Quebec para promover os direitos dos moradores e dos pobres.
Mais recentemente, o Montreal International Anarchist Theatre Festival / Le Festival International de Théâtre Anarchiste de Montréal (MIATF) deu continuidade a essa tradição radical com sua celebração anual do teatro contemporâneo e histórico de inspiração anarquista. Um pequeno grupo de anarquistas entusiastas do teatro o iniciou em 2005. Eles decidiram que a reivindicação da cidade como o centro da atividade cultural anarquista na América do Norte precisava de um teatro incendiário para reforçá-la.
Trinta deles se reuniram em um bar de punk rock local para ler e apresentar trechos em francês e inglês de seis peças anarquistas de 1880 a 1980. Peças como L’ami de l’ordre (O amigo da ordem), de George Darien, sobre a Comuna de Paris de 1871, e Land and Liberty (Terra e Liberdade), de Ricardo Flores Magon, sobre a Revolução Mexicana. O evento, “Rebel Words/Les mots rebelles“, a primeira celebração do teatro anarquista bilíngue da cidade, preparou o terreno para o grande festival internacional anual.
No segundo ano, o pequeno coletivo de atores anarquistas, dramaturgos e fãs de teatro enviou uma convocação para peças nas mídias sociais. Dezenas de grupos responderam, da Austrália à Rússia, da África à América do Sul, do Oriente Médio e do Extremo Oriente à América do Norte.
No total, o empreendimento voluntário, que durou dezoito anos, apresentou mais de cento e vinte peças, com quase o mesmo número de trupes formadas por centenas de artistas, e atraiu milhares de participantes curiosos para conhecer esse novo e desconhecido gênero de teatro.
Vieram artistas do Chile, da Itália, das Filipinas, da Alemanha, da França, da Bélgica e de toda a América do Norte, inclusive artistas das Primeiras Nações. Trazer o lendário The Living Theatre de Nova York para Montreal pela primeira vez causou um frenesi midiático e causou lotação esgotada em um local com 500 assentos em duas noites. O aclamado Bread and Puppet Theatre, de Vermont, veio três vezes. Outras trupes profissionais, como Le Krizo Theatre, da França; Chalry Magonza, da Bélgica; Ceetuch Company e Teatro Fresa Salvaje, do Chile; Tallercito, de Berlim; Theatre La Balancelle, de Paris; Le Grand Asile, de Bruxelas, e muitos outros, também participaram.
Sendo uma província bilíngue, inglês/francês, as peças eram apresentadas em ambos os idiomas, mas também em outros idiomas com roteiros projetados traduzidos. Cada edição do MIATF foi dedicada a um ou mais grupos de anarquistas contemporâneos e do passado ou a movimentos, atuais e do passado, nos quais anarquistas estavam envolvidos. E eram compartilhados apelos de solidariedade com prisioneiros políticos, trabalhadores em greve ou estudantes. E a feira de livros anarquista que estava por vir era sempre apresentada como um ótimo lugar para aprender mais.
Em uma cidade onde havia festivais durante todo o ano, inclusive de teatro, o MIATF se diferenciava pelo fato de funcionar sem patrocínio estatal ou corporativo. Ele era autofinanciado por meio da venda de ingressos, doações e eventos beneficentes. A programação anarquista ajudou a desmistificar o termo frequentemente difamado e incompreendido, geralmente vulgarizado na grande mídia.
Todos os anos, muitas peças abordavam questões críticas da atualidade a partir de perspectivas anarquistas: gentrificação, desocupações e resistência; batalhas sindicais anarco-sindicalistas; feminismo e sexismo; discursos contra a guerra; trabalho sexual; e críticas às mídias sociais. Mas também sobre a história anarquista de Haymarket, Chicago, até o movimento Makhnovista na Ucrânia; o movimento antifascista; a história de Sacco e Vanzetti nos EUA; Guantánamo; o anarquismo japonês; a Greve Geral de Winnipeg de 1919 e muito mais. Grande parte do trabalho se concentrou nas experiências dos oprimidos do mundo e nos movimentos em prol da liberdade.
Comédia, tragédia, marionetes e fantoches, mímica e circo, teatro rap e teatro poético, teatro musical – tudo era bem-vindo, inclusive um coral de ativistas locais de combate à pobreza acompanhado de sua própria banda a cantar músicas revolucionárias.
O MIATF esperava incentivar o crescimento do teatro anarquista tanto local quanto mundialmente. Para incentivar os dramaturgos profissionais e amadores a se aprofundarem na história e na prática anarquista ou em seus ideais para se inspirarem e transformarem isso em um teatro relevante para os dias de hoje. O anarquismo é frequentemente associado a protestos e a estar nas ruas.
O festival também se esforçou para oferecer teatro acessível e econômico para todos, não apenas para aqueles que têm dinheiro. Os preços dos ingressos foram deliberadamente mantidos baixos, de dez dólares até a pechincha final de quinze dólares para uma noite com, às vezes, cinco ou seis atos diferentes. O preço do teatro contemporâneo convencional já está fora do alcance de muitas pessoas e tem pouca relevância para suas vidas.
As peças tinham que ter uma visão artística clara, ser acessíveis e bem produzidas. A ênfase era exibir um teatro de qualidade, mesmo que não fosse produzido profissionalmente nem dependesse de fumaça e espelhos tecnológicos caros. A prioridade era o conteúdo, não a forma. A cada ano, o MIATF também buscava equilibrar a programação de grupos visitantes e locais, profissionais e amadores, para apoiar os talentos locais.
Artistas eram sempre incentivados a “assumir riscos, fazer perguntas importantes e explorar o universo da criatividade”. O MIATF ofereceu uma estrutura para o teatro que, de outra forma, não seria aceito em locais de teatro tradicionais por ser “muito político” ou “não ser profissional ou comercial o suficiente”.
A cada ano, o local incluía mesas com literatura anarquista. Os apresentadores ou convidados especiais falavam entre as apresentações sobre anarquismo, a teoria e a prática e o contexto histórico do festival. Mestres de cerimônias poderiam começar a programação descrevendo o anarquismo como “um movimento coletivo para a liberação pessoal”.
Fariam a ligação histórica entre o teatro anarquista, a cultura e o movimento anarquista, explicando como artistas famosos como Cezanne, Courbet, Seurat, Kupka, Pissarro, Frans Masereel e outros foram atraídos pela liberdade de expressão presente no movimento. E como a criatividade ajuda as pessoas a perceberem seu potencial, como ela é fortalecedora e as tira de sua vida cotidiana, revelando-lhes outra maneira de viver.
Durante todo o período do festival, foi organizada uma série de tendas de arrecadação de fundos para ajudar a reabastecer os fundos do MIATF, mas também para convidar e identificar novos talentos para potenciais peças, fazer com que outros colegas testassem novos materiais e iniciar a promoção do festival. As festas de encerramento para arrecadação de fundos também ajudaram a encerrar cada festival. Mas as receitas de bilheteria cobriram a maior parte das despesas operacionais. O déficit era compensado pela organização ou por doações de apoiadores.
Desde o início, o MIATF sempre foi parte integrante do Festival of Anarchy [Festival da Anarquia] de Montreal, que durava um mês, em maio. Era uma celebração extravagante e abrangente de arte, cinema, música, poesia, literatura e festas anarquistas organizada por diversos pequenos grupos que culminava na Montreal Anarchist Bookfair anual [Feira de Livros Anarquista de Montreal], o maior evento anarquista da América do Norte, atraindo milhares de amantes de livros em um fim de semana.
Temos orgulho de dizer que alguns dos primeiros artistas e dramaturgos que colaboraram conosco durante esses dezoito anos (como Joseph Shragge, Caileigh Crow, Emilie Monnet, etc.) ganharam prestigiosos prêmios nacionais de excelência em artes e teatro em homenagem ao seu trabalho. Outros artistas globais que também contribuíram generosamente com seu talento e tempo no MIATF mantêm a tradição viva, continuando a produzir teatro anarquista inovador.
Um dia, outro festival com o mesmo espírito reunirá novamente o melhor que esse teatro tem a oferecer.
O MIATF encerrou sua gloriosa temporada em 2023 com uma apresentação final. Se algum grupo estiver interessado em iniciar outro festival de teatro anarquista, os membros do coletivo terão o maior prazer em dialogar. Veja o arquivo on-line do MIATF em: anarchistetheatrefestival.com
Norman Nawrocki foi cofundador e codiretor artístico do coletivo MIATF. Ele atuou no festival e escreveu e dirigiu peças.
Uma versão mais longa deste artigo está disponível no site do Fifth Estate em https://www.fifthestate.org/archive/416-spring-2025/the-montreal-international-anarchist-theatre-festival/the-montreal-international-anarchist-theatre-festival-long-version/
Tradução > acervo trans-anarquista
Conteúdos relacionados:
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2024/10/10/canada-festival-internacional-de-teatro-anarquista-de-montreal-chega-ao-fim/
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2023/10/06/canada-17o-festival-internacional-de-teatro-anarquista-de-montreal/
agência de notícias anarquistas-ana
Rio seco
silêncio sob a ponte
apenas o vento.
Rodrigo de Almeida Siqueira
entra neste site: www.imprimaanarquia.com.br
Parabéns, camarada Liberto! O pessoal da Ana poderia informar como adquirir a obra. Obrigada!
Obrigado pela traduçao
Oiapoque/AP, 28 de maio de 2025. De Conselho de Caciques dos Povos Indígenas de Oiapoque – CCPIO CARTA DE REPÚDIO…
A carta não ta disponível