
Por Tate Williams | 03 de novembro de 2025
Alguns filmes têm mais chance de vir à mente quando o assunto é cinema anarquista. A maioria deles é meio óbvia, você poderia dizer. Eles aparecem regularmente em listas online que destacam clássicos mais explicitamente políticos, como O Sal Da Terra (1954) e A Batalha De Argel (1966).
Nada contra esses filmes, que são dignos de serem estudados e muitos dos quais são muito bons. Mas, honestamente, se você prestar atenção, vai ver que tem filmes anarquistas em todo lugar, prosperando fora da academia e do cinema de arte. Eles abrangem muitos cenários e gêneros, são estrangeiros e nacionais, são independentes e de Hollywood. São mais eruditos e mais populares. Alguns deles são para crianças. E muitos deles são fantásticos.
Pra destacar algumas dessas joias pouco divulgadas, a lista a seguir tem alguns clássicos, mas busca uma visão mais aberta do que podemos considerar um filme anarquista. Uma visão que pode não usar a terminologia exata ou se aprofundar em política num sentido literal, mas que de qualquer forma representa o que queremos dizer quando falamos de anarquismo – libertação coletiva, organização não-hierárquica, resistência a todas as formas de dominação, ajuda mútua, e bastante revolta.
As pessoas que forem ler a lista com certeza terão ressalvas com algumas escolhas, considerando-as forçadas ou questionando sua visão de política. Não tem problema nisso. No fim das contas, entre anarquistas e cinéfilos, é difícil dizer quem é mais propenso a discutir. Mas, pra manter nossa visão mais ampla, chamaremos esses filmes de Filmes Para Anarquistas (E Para Pessoas Anarco-Curiosas).
Os filmes não estão numa ordem específica; vamos lá.
Flow – À Deriva (2024)
Pra mim, o melhor filme que você pode encontrar sobre ajuda mútua é essa coprodução entre Letônia, França e Bélgica, uma animação distópica e sem diálogos de fantasia e ficção científica. Ele mostra um pequeno gato preto que encontra consolo em um mundo sendo inundado, primeiro pelo isolamento, e depois por um crescente grupo de outros animais num pequeno barco em busca de terra firme. Nosso herói é capaz de sobreviver, fugir da solidão, e encontrar solidariedade com uma matilha de cães famintos, um bando ganancioso de macacos, e até mesmo um monstro do mar próximo da morte. Cada animal encontra um jeito de colaborar enquanto navega suas naturezas conflituosas para poderem sobreviver à inundação.
Cena icônica: Um golden retriever famindo resiste ao impulso de caçar um coelho, e, ao invés disso, ajuda o grupo a salvar uma capivara do perigo.
Frase icônica: [vocalizações animais]
Uma Mulher Em Guerra (2018)
Um filme divertido e incomum sobre uma professora de coral de meia idade que começa a praticar sabotagem pra bloquear a construção de uma fábrica de alumínio da Rio Tinto na Islândia rural. Enquanto Halla reavalia seu sonho por uma adoção em andamento que ela almejou por anos, ela intensifica sua guerra contra a fábrica, primeiro disparando cabos de metal com um arco composto para gerar curtos-circuitos nas linhas de energia, e, em certo momento, simplesmente explodindo tudo. Durante tudo isso, a polícia e os funcionários do governo trabalham com a empresa pra intensificarem sua perseguição, enquanto Halla usa sua conexão profunda com as pessoas e a paisagem da Islândia para fugir deles. No final, tem uma reviravolta engraçada.
Cena icônica: Halla atira contra um drone de vigilância com seu arco e o esmaga com um martelo enquanto usa uma máscara de papel do rosto do Nelson Mandela.
Frase icônica: “Agora a tua jornada é a minha jornada”.
Fuga Das Galinhas (2000)
Pode parecer forçação de barra dizer que esta animação pra crianças é uma representação perfeita de conflitos de interesse dentro de coletivos, mas, saca só. É uma ideia brilhante, em que uma granjeira decide que ela vai conseguir ganhar mais dinheiro com uma máquina que transforma galinhas em tortas. Depois de Ginger, a galinha radical, fracassar nas suas tentativas de fuga e de sabotagem, um galo estadunidense chamado Rocky, interpretado por ninguém mais ninguém menos que o racista Mel Gibson, convence as galinhas de que ele consegue ensiná-las a escapar da fazenda voando (ele não consegue). Rocky é um exemplo perfeito de narcisista arrogante (“Precisamos trabalhar como um time, o que significa que vocês farão tudo que eu mandar”) cujo ego atrapalha a organização do grupo, até que as galinhas eventualmente se mobilizam pra construir uma galinha voadora gigante que elas impulsionam juntas.
Cena icônica: Inicialmente, o Rocky se recusa a ajudar o grupo, dizendo que a coisa mais importante pra ele é a sua liberdade. Ginger diz que ela quer a mesma coisa, felicidade – mas para todas as galinhas.
Frase icônica: A granjeira observando as galinhas: “Elas estão organizadas. Eu sei disso”.
Tudo Vai Bem (1972)
Um filme pras pessoas nerds. “Tudo Vai Bem” é o ápice do período revolucionário do cineasta Jean-Luc Godard, uma série de filmes não-muito-acessíveis inspirados pela revolta de Maio de ’68. O que me chama a atenção nesse filme é a forma com que ele confronta as pálidas consequências da revolução. Jane Fonda interpreta uma jornalista que se vê presa com seu marido diretor de comerciais de televisão, estrelado por Yves Montand, em meio a uma greve numa fábrica de salsicha em Paris. Os atores se dirigem aos telespectadores periodicamente. O Montand chega a substituir Godard, enquanto luta com o mal-estar pós-ativismo e expressa suas dúvidas sobre se um cineasta pode realmente ser um revolucionário.
Cena icônica: Uma longa cena de roubo que acaba em protesto num supermercado corta pra Fonda e Montand discutindo preguiçosamente sobre o futuro do seu casamento.
Frase icônica: “Fora da fábrica, ainda parece uma fábrica”.
As Criaturas Atrás Das Paredes (1991)
Esse filme é uma joia de meio de carreira do Wes Craven, que dirigiu A Hora Do Pesadelo. Nesse filme totalmente maluco, o diretor usa a sátira total pra ironizar a gentrificação, retratando os proprietários como assassinos e sequestradores incestuosos. Pense nesse filme como um Esqueceram De Mim invertido, em que uma criança pobre de uma vizinhança negra invade uma mansão e destrói o sossego dos proprietários de cortiços que moram lá. Uma das várias reviravoltas é que os proprietários estão roubando crianças das famílias ao redor e prendendo elas nas paredes da casa. Pra deixar tudo mais tenso, a cobertura da CNN sobre a Guerra do Iraque toca no fundo periodicamente.
Cena icônica: Depois de uma longa perseguição de gato e rato de filme de terror entre a criança e os assassinos, a vizinhança inteira aparece na porta da frente da mansão para salvar o dia.
Frase icônica: “Meu nome é Ruby Williams e eu represento a associação de pessoas que foram injustamente despejadas, exploradas e que, no geral, se foderam”.
Bisbee ’17 (2018)
A pequena cidade mineradora de Bisbee, Arizona, é palco de um conflito trabalhista histórico, em que uma empresa mineradora conspirou com o governo local para, em nome do esforço de guerra, esmagar uma rebelião de trabalhadores. No fim das contas, o xerife de Bisbee capturou e deportou 1.300 mineradores, quase todos mexicanos e imigrantes, abandonando-os no deserto do Novo México. A ação foi basicamente uma limpeza étnica da cidade. Isso é um exemplo poderoso de como a indústria e o Estado colaboram pra aterrorizar os trabalhadores em território nacional e promover a guerra no exterior. Mas o que é realmente fascinante sobre este documentário é que ele conta essa história por meio de uma encenação feita pelos moradores atuais de Bisbee. Uns têm orgulho da política de seus antepassados, outros têm vergonha. É uma visão caricata e brilhante do sentimento moderno anti-imigrante e anti-trabalhador, exposta por um capítulo pouco conhecido da história trabalhista do sudoeste dos EUA.
Cena icônica: Uma interação perturbadora entre moradores atuais de Bisbee – um homem branco rico que trabalha pra prisões privadas, e um jovem descendente de mexicanos que teve sua mãe deportada.
Frase icônica: “Cidades que são assombradas… parecem ficar entre o passado e o presente, como se duas versões da mesma cidade fossem colocadas uma em cima da outra”.
Freaky Tales (2024)
Se você quiser ver uma versão ficcional do Sleepy Floyd, uma lenda do time de basquete Golden State Warriors, retalhando supremacistas brancos com uma espada katana, pois então eu tenho um filme pra você. Esse filme independente que lembra Pulp Fiction é uma carta de amor a Oakland, Califórnia, aos oprimidos, e aos punks esquisitos multirraciais da East Bay dos anos 80. Esse filme inteiro é sensacional, incluindo um dos melhores dublês que me lembro da história recente do cinema, mas os leitores aqui vão se interessar especialmente pela primeira história, um reconto de um caso muito real, em que a cena punk se juntou para arregaçar nazistas que estavam aterrorizando a lendária casa de shows The Gilman.
Cena icônica: A explosão telecinética de um policial racista.
Frase icônica: “Pra quem é isso?” / “Pros nazistas”. / “Mira no pescoço”.
O Fantasma Que Sentava À Porta (1973)
Se você nunca ouviu falar desse filme aqui, pode ser porque ele foi tirado dos cinemas depois de apenas 3 semanas, por causa de uma pressão feita pelo FBI, de acordo com o cineasta. O Fantasma Que Sentava À Porta permaneceu como um filme pirata até ele ser finalmente relançado e receber seu devido lugar no cânone 30 anos depois. O filme foi dirigido por Ivan Dixon (de Hogan’s Heroes) e baseado num livro escrito por Sam Greenlee; no filme, o cineasta usou a popularidade do Blaxploitation na época para contrabandear uma forte parábola da revolução negra para os cinemas. O enredo envolve um Senador branco em Chicago que, usando a ausência de agentes negros na CIA como cortina de fumaça, convence a agência a contratar Dan Freeman como ato meramente simbólico. Lá, Freeman aprende sobre mudança de regime político via guerrilha, o que vai permiti-lo aplicar essas táticas contra o governo dos Estados Unidos.
Cena icônica: Uma sequência épica de treinamento.
Frase icônica: “Vocês acabaram de viver o sonho americano… agora, vamos transformá-lo num pesadelo”.
O Salário Do Medo (1953) e O Comboio Do Medo (1977)
Vamos fazer uma dobradinha. Entre a versão original de Henri-Georges Clouzot e a adaptação de William Friedkin do mesmo romance, eu diria que a versão dos anos 70 é a mais acessível e divertida, que estrela um Roy Schneider excelente e que é compactada pra uma audiência moderna. Mas com certeza ambos valem a pena assistir. O enredo envolve um grupo de pessoas socialmente excluídas presas numa vila da América Central que, por desespero, se voluntariam para dirigir dois caminhões cheios de nitroglicerina por um caminho montanhoso pra uma petrolífera estadunidense que está tentando apagar um incêndio em um de seus poços. Os dois filmes são tensos e sombrios, mostrando o terror que é a vida no capitalismo global, em que um só erro pode te explodir. Ao mesmo tempo que fez sucesso na França, os distribuidores americanos censuraram O Salário Do Medo, cortando 20 minutos considerados “anti-americanos” ou excessivamente homossexuais.
Cena icônica: A travessia de uma ponte frágil em O Comboio Do Medo é uma das sequências mais angustiantes da história do cinema.
Frase icônica: “Aqueles mendigos não têm sindicato, nem família. E se eles explodirem, ninguém vai vir me encher o saco pedindo indenização”.
Prestes A Explodir (2022)
Embora os enredos sejam bem diferentes, esse filme similarmente tenso por Daniel Goldhaber parece um sucessor do Comboio Do Medo no estilo e no tema, repleto de música de sintetizador que lembra a partitura de “1977” do Tangerine Dream – a trilha sonora de Comboio Do Medo. Uma interpretação fictícia do livro de mesmo nome, pelo autor e ativista climático Andreas Malm, o filme debate a ética da sabotagem climática por meio de uma história imaginada de oito jovens que decidem, bem, explodir um oleoduto no oeste do Texas. Os membros da equipe vêm de várias origens diferentes, todas diretamente impactadas pela crise climática, e os conflitos ideológicos entre eles serão familiares pra qualquer organizador político. Quando o filme foi lançado nos EUA, 23 entidades federais e estaduais lançaram 35 alertas sobre o filme, e agências reguladoras de energia e de aplicação da lei intensificaram medidas de segurança e vigilância. Quer você considere ou não o filme tal ameaça à segurança dos EUA, ele é um empolgante filme de assalto, com uma reviravolta final que pode te fazer sentir um pouco de esperança.
Cena icônica: Uma sequência particularmente angustiante de fabricação de bomba.
Frase icônica: “Eles vão nos difamar e afirmar que isso foi violência ou vandalismo, mas isso foi um ato justificado. Foi um ato de auto-defesa”.
Fonte: https://anarchiststudies.org/10-movies-for-anarchists/
Tradução > Caio Forne
agência de notícias anarquistas-ana
Ameixeiras brancas.
Assim a alva rompe as trevas
deste dia em diante.
Yosa Buson
Obrigada por compartilhar! Tmj!
opa, vacilo, vamos corrigir... :^)
compas, ollas populares se referem a panelas populares, e não a ondas populares, é o termo usado pra quando se…
Nossas armas, são letras! Gratidão liberto!
boa reflexão do que sempre fizemos no passado e devemos, urgentemente, voltar a fazer!