[Espanha] Socavando a montanha mercantilizada

Nos últimos anos, o processo de esportivização do montanhismo e da escalada tem sido acompanhado por uma progressiva mercantilização de sua prática. No entanto, há algum tempo vêm ganhando força vozes que reivindicam um modelo de alpinismo que não seja permeado pelos valores hegemônicos do capitalismo.

Já vimos isso em demasiadas ocasiões: dezenas de montanhistas fazendo fila para conseguir coroar um cume dos que chamam de míticos. Ou montanhas de lixo acumuladas em paragens alpinas que parecem ter sucumbido à paixão do ser humano pelas alturas. Falamos, claro, dos efeitos colaterais do alpinismo sob o regime do capitalismo de telas.

Já vimos isso pela televisão ou em nossos telefones celulares, mas não é preciso ir muito longe para perceber até que ponto as dinâmicas sociais do capitalismo permearam a prática dos esportes de montanha atualmente. Predação do meio ecológico, turistificação de ambientes naturais, proliferação de academias de escalada vinculadas a grandes grupos empresariais, esportivização extrema… E junto a tudo isso, a quase obrigatória exibição da conquista, a integração do sucesso esportivo na construção da marca pessoal favorecida pelas redes sociais e a busca por uma almejada singularidade que, por um lado, corrói os vínculos humanos e, por outro, nos desconecta de toda a alteridade que a montanha encerra.

Uma tônica generalizada na maior parte dos esportes, sobretudo nos que se praticam individualmente, e que se repete, pelo menos no que diz respeito à exploração da marca pessoal e à busca desesperada por uma singularidade exclusiva, naqueles ambientes fechados destinados à otimização do corpo e da mente, sejam academias, spas ou retiros espirituais.

E é que, atualmente, a prática esportiva e o cuidado do corpo, juntamente com a psicologia positiva e o coaching, dir-se-ia que se tornaram dois elementos-chave na produção de uma subjetividade que contribui para a fragmentação social, a individualização das problemáticas sociais e sua patologização; uma subjetividade que, a partir do exposto, parece nos relacionar com o mundo exterior através de um modo de vida composto por sucessivas experiências de consumo. Porque sim, a montanha também pode ser consumida, e, ao menos para alguns lobbies empresariais, deve sê-lo sem restrições, já que a explotação dos ambientes naturais tem de ser um elemento de primeira linha na reestruturação da indústria de serviços que deve sustentar a nova fase do capitalismo verde.

No entanto, e como em quase todos os âmbitos da sociedade, também na prática do alpinismo e da escalada há vozes dissidentes. No passado 19 de junho, por exemplo, em uma mesa redonda organizada pela Piedra Papel Libros na sede madrilenha da Fundación Anselmo Lorenzo, reuniram-se vários coletivos para falar de montanhismo sob uma ótica anticapitalista e eminentemente libertária. Entre esses coletivos, a Unión de Grupos Excursionistas Libertarios de Madrid, que poderia ser considerada herdeira daqueles grupos anarquistas que, antes da Guerra Civil, faziam da conexão com a natureza uma ferramenta chave para a autoemancipação da classe trabalhadora, aposta por um modelo de alpinismo e escalada que, ao mesmo tempo que fomenta uma prática desmercantilizada e anticompetitiva, contribui para reconectar o alpinismo com o legado de valores revolucionários associados ao anarquismo ibérico.

Precisamente, essas genealogias militantes, mais concretamente, aquela que conecta os coletivos anarquistas de montanha atuais com os grupos naturistas e excursionistas libertários do início do século XX, podem ser rastreadas, ainda que parcialmente, em La bandera en la cumbre, de Pablo Batalla Cueto, autor também de La virtud en la montaña. Vindicación de un alpinismo lento, ilustrado y anticapitalista. Falamos de dois livros que fazem parte de uma fértil safra editorial na qual também podemos citar algumas obras importantes e arriscadas, como Alpinismo bisexual y otros escritos de altura, de Simón Elías, Escalantes e Ingrávidas, de María Francisca Mas Riera, ou Cartografías nómadas, Quebrantahuesos, La montaña apócrifa y Fin de cordada, de Olga Blázquez, responsável também pelo blog Antecima Anticima, onde se podem ler e baixar gratuitamente alguns trabalhos bem interessantes como Sociología del trabajado asociado al montañismo.

Encontramo-nos, pois, em um momento em que a progressiva mercantilização do alpinismo e da escalada está sendo contestada, tanto a nível teórico como prático, por uma pequena constelação de grupos cujo trabalho está abrindo novos caminhos de oposição ao modelo hegemônico. Academias de escalada autogeridas, coletivos anticapitalistas de montanha, grupos excursionistas de inspiração anárquica, livros e fanzines, encontros e jornadas… Não são poucos os projetos e iniciativas que, de diferentes âmbitos, estão apresentando alternativas reais.

Esperemos, é claro, que este movimento cresça nos próximos anos, multiplicando essas vozes dissidentes e evidenciando que é possível intervir em uma arena política — a do esporte — até bem pouco tempo pretensamente despolitizada. Estaremos atentos.

Juan Cruz López, editor da Piedra Papel Libros

Fonte: https://www.elsaltodiario.com/opinion-socias/socavando-montana-mercantilizada

Tradução > Liberto

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Mal o dia clareia
a passarada
em coro chilreia

Eugénia Tabosa

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