Como a história dos movimentos sociais passou a demonstrar claramente, nada aterroriza mais aqueles que dirigem a América que o perigo do advento da verdadeira democracia. Como se vê em Chicago, Portland, Oakland e agora em Nova York, a resposta imediata a uma faísca de desobediência civil organizada democraticamente, mesmo modesta, é uma combinação terrificada de concessões e de brutalidade. Nossos governantes, de qualquer forma, parecem trabalhar sob a crença persistente que se um número significativo de americanos aprenderem o que é o anarquismo verdadeiramente, eles poderão muito bem decidir que seus dirigentes são inúteis.
Quase todas as vezes que fui entrevistado por um jornalista sobre Occupy Wall Street, eu recebi os mesmos enunciados, a mesma leitura:
“Como você pode querer chegar a qualquer coisa se você se recusa a criar uma estrutura de direção ou fazer uma lista concreta de suas demandas? É o que todas essas bobagens anarquistas – o consenso, os “dedos brilhantes”…? Vocês não serão jamais capazes de atender regularmente o americano médio com esse tipo de coisa!”
É difícil de imaginar piores conselhos. Antes de tudo, depois de 2007, um pouco próximo de todas as precedentes tentativas visando a lançar um movimento de amplitude nacional contra Wall Street tocou exatamente naquilo que apontavam os jornalistas – e encalhou lamentavelmente. E somente quando um pequeno grupo de anarquistas em Nova York decidiu adotar a marcha inversa – se recusando a reconhecer a legitimidade das autoridades políticas existentes enquanto formulavam suas demandas; se recusando a reconhecer a ordem política existente, ocupando um espaço público sem pedir permissão, se recusando a eleger os dirigentes que poderiam mesmo ser subornados ou cooptados, declarando, não violentamente, que todo o sistema é corrompido e que o rejeitavam; estando prontos a ter posição firme contra as inevitáveis respostas violentas do Estado – que uma centena de milhares de americanos, de Portland, a Tuscaloosa, começaram a se juntar à luta, e à qual uma maioria se declarou simpática.
Essa não é a primeira vez que um movimento baseado nos fundamentos anarquistas – ação direta, a democracia direta, rejeição das instituições políticas existentes e a tentativa de criar o novo – se desenvolve nos Estados Unidos. O movimento de direitos civis (ao menos para suas linhas mais radicais), o movimento anti-nuclear, o movimento altermundialista… todos tiveram direções similares. Jamais, porém, eles cresceram tão rápido.
Para compreender o porquê, precisa-se compreender que há sempre um fosso enorme entre isso que aqueles que dirigem a América entendem por “democracia”, e isso que significa a palavra para a maior parte dos cidadãos. Segundo a versão oficial, claro, a “democracia” é um sistema criado pelos pais fundadores, baseado nos controles e nos equilíbrios entre o presidente, congresso e o poder judiciário. De fato, nenhuma parte da Declaração de Independência ou na Constituição qualificam os Estados Unidos como sendo uma “democracia”. A maior parte do tempo a democracia é definida como auto-governança coletiva pelas assembléias populares, tanto que ele [os pais fundadores] foram selvagens opositores a ela, argumentando que a democracia seria prejudicial aos interesses das minorias (a saber: os ricos).
Vieram então a definir sua república – modelada menos em Atenas, mais em Roma – como uma “democracia”, compartilhando do entusiasmo dos americanos a propósito desse conceito.
Mas qual é o significado da palavra “democracia” para os americanos médios? Um sistema no qual eles chegam a equivaler com os políticos que os governam? Isso é o que é nos dito hoje, mas isso parece pouco plausível. Depois de tudo, a maior parte dos americanos detestam os políticos, e tendem a ser céticos sobre a idéia de governo. Se o sistema americano pôde universalmente se fazer passar por um ideal político, é somente porque o povo americano ainda acredita, mesmo que vagamente, que nossos sistemas políticos criam a auto-governança – que os pais fundadores tinham a tendência de denunciar como “democracia” ou, como eles igualmente chegaram a chamar, de “anarquia”.
Na ausência de outra coisa, isso ajudaria a explicar o entusiasmo com o qual os americanos adotaram um movimento baseado nos princípios da democracia direta, malgrado à rejeição uniformemente mentirosa dos meios de comunicação e da classe política americana. A maior parte dos americanos está, politicamente, em contradição. Eles tendem a combinar um profundo respeito pela liberdade com uma identificação, atenciosamente inculcada e bem real, sobre o exército e a polícia. Raros são os anarquistas de nossos dias; muitos entre eles não sabem sequer o que significa “anarquismo”. É difícil de dizer quando desejarão finalmente se desfazer do Estado e do capitalismo.
Mas uma coisa que um número crescente de americanos sente, é que qualquer coisa vai terrivelmente mal em seu país, que as instituições chaves são controladas por uma elite arrogante, e que retarda uma mudança radical. Eles têm razão. É difícil de imaginar um sistema político também sistematicamente corrompido – no qual a corrupção, em todos os níveis, foi de toda forma legalizada. A indignação é apropriada. O problema estava no fato de que até dia 17 de setembro, o único lado político a propor soluções radicais era a direita. Mas Occupy Wall Street mudou isso: a democracia explodiu.
David Graeber
Tradução > Tio TAZ
agência de notícias anarquistas-ana
nas ramagens embaciadas
o sol
abre frestas
Rogério Martins
A democracia nasce da dissolução da comunidade primitiva, do desenvolvimento da troca, da mercadoria, da propriedade privada, da sociedade de classes, da geração histórica do indivíduo, da separação do homem com relação ao homem, na produção de sua vida. Seu desenvolvimento é o desenvolvimento da ditadura do valor sobre as necessidades humanas, é o desenvolvimento do terrorismo de Estado contra as classes exploradas. Com a dominação total do valor se valorizando, do caráter fetiche da mercadoria – o terrorismo capitalista -, a democracia chega ao seu apogeu. Não se trata de uma esfera particular, ou de mera forma de dominação, mas da essência invariante que, atomizando e unificando com bases fictícias, perpetua a sociedade do capital. A democracia subsume todos os aspectos da vida, nega praticamente a existência de classes com interesses irremediavelmente antagônicos para afirmar a única comunidade que lhe é própria: a comunidade do dinheiro, que reproduz o indivíduo-cidadão-livre concorrente-homem nacional, cujo corolário é o povo, enquadrado pelas estruturas partidárias e sindicais constitutivas do Estado.
Os direitos e liberdades democráticas nada mais são do que a codificação jurídica das relações sociais capitalistas, que põem os homens em relação enquanto vendedores e compradores de mercadorias em geral e em particular da força de trabalho (codificação, pois, dessa negação prática do proletariado enquanto classe). Os proprietários de mercadorias se encontram como sujeitos jurídicos livres e iguais. Mas essas relações de liberdade e igualdade entre proprietários nada mais são do que a relação reificada entre burgueses e proletários, uns enquanto proprietários exclusivos dos meios de produção, outros como privados de tudo, exceto de sua força de trabalho. O reino da propriedade privada para a burguesia se traduz no reino da privação total para o proletariado. Os direitos e liberdades democráticas – enquanto mecanismos ideológicos que asseguram e afirmam realmente a atomização do proletariado em cidadãos livres para vender sua força de trabalho, que só encontrarão comprador se o capital dela necessitar para se valorizar -, ao mesmo tempo que impõem a livre e mútua concorrência entre proletários, obrigando-os a cuspir cada vez mais sangue e valor ou morrer de fome, são instrumentos de coerção, violência e despotismo, e constituem uma arma essencial da democracia, isto é, da dominação burguesa.
As ideologias burguesas – expressões da limitada compreensão da burguesia, cujo horizonte não vai além de seu próprio sistema de exploração – camuflam permanentemente a verdadeira dimmensão da polarização da sociedade entre burguesia e proletariado. A burguesia parte de seu ponto de vista democrático para explicar a democracia com um enfoque imediatista e a-histórico, ocultando o caráter transitório de seu modo de produção e, em especial, escondendo a única força revolucionária capaz de suprimir esta sociedade: o proletariado. O proletariado, pelo contrário, não teme o devir histórico e, por isso, não exibe ideologia de nenhum tipo. Afirma sua ditadura de classe como negação de todas as classes e como processo de autonegação. Seu próprio ser é a negação da sociedade capitalista, cuja catástrofe o força a se constituir em força internacional que destruirá o capital, com todas as suas ideologias.
O próprio desenvolvimento da democracia se encarrega de esconder a magnitude atual da simplificação/exacerbação das contradições do capitalismo, tentando apagar as fronteiras de classe. É o que se vê, confirmado por formas ideológicas específicas que promovem a confusão mais completa, com base num conjunto de estatutos formais ou jurídicos complexos que dividiriam a sociedade, não em duas classes antagônicas, mas em inumeráveis categorias mais ou menos vagas e elásticas. Assim, por exemplo, num pólo da sociedade, um conjunto de formas jurídicas pseudo-salariais tendem a camuflar a natureza burguesa das estruturas do Estado. É o caso, por exemplo, dos oficiais do exército ou da polícia, dos altos quadros empresariais, da administração ou de burocratas de todos os tipos, que, sob tal cobertura, são classificados como categorias neutras, sem pertencer a uma classe ou, pior ainda, assimilados a “camadas operárias”. No outro extremo da sociedade, produz-se outro tanto. Por exemplo, um conjunto de formas jurídicas de pseudo-proprietários – “campesinato”, cooperativas, comércio ambulante, reformas agrárias, artesãos, camuflam objetivamente a existência de imensas massas de proletários associados pelo capital para produzir mais-valia (regime salarial disfarçado). Estes e outros mecanismos ideológicos tendem a nos apresentar como opostos e com diferentes interesses os diversos setores do proletariado: urbanos/agrícolas, ativos/desempregados, homens/mulheres, operários/funcionários, trabalhadores manuais/trabalhadores intelectuais… Este complexo processo ideológico contribui para manter o regime de exploração e de opressão burguês, ao dissimular e tornar difuso o nosso inimigo e apresentar dividida, debilitada numericamente, a nossa classe. Todo o segredo da perpetuação da dominação burguesa pode se resumir na dificuldade do proletariado para se reconhecer a si mesmo, e para reconhecer, na luta de seus irmãos de classe (em qualquer parte do mundo e sejam quais forem as categorias em que a burguesia os divide), sua própria luta. Isto é condição indispensável para sua constituição em força histórica. Por sua vez, este ciclo infernal se rompe nas sucessivas expressões da catástrofe do sistema capitalista, pela própria luta do proletariado, por sua generalização e a tendência a coincidir no tempo; e que põe à mostra, de maneira cada vez mais inquestionável, a afirmação de uma mesma negação (determinada, para além da consciência dos protagonistas – limitada sempre às minorias comunistas -, pelos mesmos interesses e o mesmo projeto histórico) da sociedade capitalista como totalidade.