Yoquese
Vou tentar reproduzir as impressões, frutos de uma viagem, geradas pelo contato com o movimento libertário na Grécia. Lamentavelmente não pude estar muito tempo, nem ver muitos lugares. O escrito aqui não deve ser interpretado nada além do que minha visão pessoal sobre o que vivi com os companheiros de lá, não sendo, portanto, uma análise séria sobre o movimento anarquista – e muito menos sobre a situação do país. Se a isto somarmos que a minha militância é mais orientada ao que poderia denominar-se “trabalho de base” do que à análise e a produção teórica, é certo que cometerei muitos erros. Não obstante, espero que possa dar uma ideia aproximada de alguns aspectos do movimento grego, e sirva de orientação para as pessoas interessadas e que não tenham um contato de primeira mão com ele.
Muito do que ocorre no anarquismo na Grécia tem certa conexão com debates que ocorrem no Estado espanhol, já que, salvo as diferenças, temos muitos pontos em comum, tanto no ambiente libertário como na situação política geral. Seria desejável acentuar os contatos e conexões entre ambos os movimentos e aos outros lugares do mediterrâneo, já que a situação econômica e política obrigam-nos a desenvolver um movimento libertário forte com base nesses pontos.
Além da necessidade de começar a trabalhar em conjunto (e sempre dentro de uma perspectiva internacionalista, sem desmerecer a coordenação nos ambientes mais extensos no planeta), a nível local pode-se aprender muito uns com os outros, para conseguir superar os obstáculos que fazem com que hoje o movimento anarquista (em ambos os países) não consiga ser uma referência ou alternativa política a nível popular. Tudo isso em um momento em que a esquerda partidária, tanto ortodoxa como vestida com roupagens mais alternativas, não consegue articular uma resposta política à evidente regressão de direitos que estamos sofrendo – sem sonhar sequer em implementar modelos sociais de ruptura, e que, apesar da ameaça fascista se cristalizando dia a dia, consegue estabelecer suas próprias parcelas de atuação, tanto nas ruas como nos parlamentos (sobretudo na Grécia e no leste da Europa).
Quando se chega à Grécia, a primeira coisa que chama a atenção é que a política em geral – e o anarquismo em particular – estão muito mais presentes nas ruas que em nosso país. Ao chegar, vendo a paisagem urbana, não é possível deixar de observar a grande quantidade de pichações e cartazes que enchem as paredes e os prédios. Isto se acentua nas universidades, colégios e hospitais. Estão, sobretudo as primeiras, literalmente empapeladas com todo tipo de propaganda política e mostram quase sempre algum cartaz referente a algum tema político. Voltando às ruas, além das típicas assinaturas dos grafiteiros, abundam as antifascistas e, especialmente, os “A” nos círculos. Nos edifícios públicos, como tribunais e escritórios do governo, também têm sempre alguma pichação ou manchas por ser jogada tinta contra elas, apesar de que, como me explicaram, se esforçam em mantê-los limpos. Por outro lado, a presença do fascismo do partido Aurora Dourada aparece também como forma sinistra nas paredes de algumas zonas das cidades, em forma de cruzes celtas, porém sempre riscadas.
Essa importância da política na Grécia se confirma quando se começa a ter contato com as pessoas dali. O número de coletivos políticos, de cidades como Tessalônica ou Ioanina (nas quais estive quase todo o tempo), se multiplica por dez comparando-os à locais de tamanhos semelhantes no Estado espanhol – tanto a nível de partidos de esquerda, de vários tamanhos e tipos, como de grupos libertários, assembleias e coletivos, assim como casas ocupadas e centros sociais que servem de espaços políticos. Para citar um exemplo que me surpreendeu bastante, em Ioannina encontrei-me com uns estudantes de química, que formavam um coletivo de sua faculdade e que se reuniam em um desses centros sociais, e tratavam de questões políticas e sociais, não só referentes ao movimento estudantil. Grupos como este abundam na Grécia, onde podemos ter uma ideia da efervescência política e a quantidade e variedade de coletivos que existem.
Isto nos leva a um aspecto importante (com seus prós e contras) dos movimentos políticos e, especialmente, dos libertários na Grécia: a juventude de seus membros. A impressão que tive destes meninos foi muito positiva, surpreendendo-me a energia e seriedade com que militam. Quando decidem convocar qualquer atividade, se empenham a fundo na hora de divulgá-la e organizá-la, especialmente no caso de ações e manifestações, e também no caso de palestras e eventos. Enquanto que, por exemplo, em grande parte do Estado espanhol uma colocação de cartazes geralmente se faz em um momento, na Grécia enchem a cidade deles, e não me refiro só a espaços em que colaboram muita gente e organizações, mas também em coletivos, sem importar seu tamanho. Esse mesmo ímpeto se pode ver nas concentrações, manifestações e piquetes. Tive a sorte de participar de vários destes últimos – correspondentes a conflitos de ESE – e me impressionou a energia desprendida, assim como a capacidade de convocação de um anarcosindicato pequeno, comparado com os do Estado espanhol. Me surpreendeu ver tantos jovens em um piquete, a forma de gritar as palavras de ordem e a atitude geral, muito ativa, durante um período de tempo prolongado para o habitual aqui.
Em geral há muita vontade de fazer as coisas, muita energia. A impressão que tive dos gregos é que são gente de bom coração, muito nobres, trabalhadores, próximos, parecidos conosco, mas às vezes com algo diferente. São muito rebeldes, muito mais do que vemos por aqui, com uma pitada de algo inocente e idealista (note que venho de uma cidade muito dada à comédia). Têm perspectivas muito abertas em relação ao anarquismo, se nota que não sofrem o peso da história, tradição e organizações que mediatizam o libertário na Espanha. É possível que tenha a ver com o caráter das pessoas do movimento dali, a surpreendente ausência de drogas entre a juventude. Tanto o movimento como o ambiente universitário me surpreendeu, inclusive em festas as pessoas não tomavam nada diferente ao álcool e não havia ninguém vendendo. Segundo me contaram, na maioria das okupas se pegam alguém consumindo algum tipo de droga (incluindo fumar maconha) o expulsam dali. É certo que se bebe, mas não vi a presença do álcool tão constante como aqui, e quase ninguém fuma haxixe ou maconha, muito menos na rua.
Percebi muito menos frivolidade no movimento okupa. É certo que as pessoas têm uma estética mais ou menos reconhecível, mas são mais austeros e abusa-se muito menos dos elementos decorativos (piercings, tatuagens, rastas, etc…). Não vi apenas tribos urbanas e estéticas, digamos, concretas (punks, skins, hipies…). Tampouco se via a sujeira de que se fazem ornamento em outras partes da Europa certos companheiros, tanto a nível pessoal como nos edifícios. Comparadas com as okupas daqui, a maioria das que vi estavam muito mais cuidadas e limpas (com algumas exceções), sendo evidente que as pessoas as trabalham muito mais. Em geral, nas cidades em que estive abundam ocupações tanto quanto moradias de jovens como de centros sociais, em muitos casos misturando ambas as coisas. Parece que os desalojos são muito menos frequentes (por exemplo, estive em uma okupa de Atenas que já está a 20 anos funcionando). A participação nas okupas é muito alta, traduzindo-se em uma grande quantidade de atividades, a maioria com ginásios bem equipados, palestras, concertos, grupos de teatro, bailes, supermercados ecológicos e mil coisas mais. Tenho especialmente boa recordação das que frequentei em Tessalônica (Scholeío e Orfanatrofio) e Ioannina (Antiviosi).
Existe outra forma de manter espaços políticos, conhecidas lá como “Centros Sociais”, que consistem em locais alugados, organizados por assembleia de diferentes coletivos e com um caráter mais estável. Dentre eles, me impressionou o “Micrópoles”, em Tessalônica – um edifício gerido pelo Movimento Antiautoritário (Antieksousiastiri Kinisi). O aluguel se paga com um bar-cafeteria situado no primeiro piso, e nos superiores existem diferentes projetos cooperativos, tais como uma copiadora, um supermercado de produtos locais e provenientes do comércio justo, uma creche, uma biblioteca, uma enfermaria para animais feridos, entre outras coisas. Me surpreendeu bastante o quanto estava bem organizado, mas lamentavelmente não pude conhecer muito sobre a organização do movimento que o coordena, mas parece uma aposta organizativa formal dentro do libertário e bastante centrada no tema da economia social e a recuperação de espaços. As referências que tive por parte de outros anarquistas foram que, em muitos casos, parece uma organização um tanto centralizada, o que têm provocado algum atrito com outros coletivos, embora lamentavelmente não tenha muita informação sobre esse tema.
Um aspecto vital para entender o movimento anarquista grego, já destacado acima, é a falta de tradição e organizações anarquistas mais ou menos clássicas. Como disse antes, isto tem um efeito positivo, já que têm possibilitado um movimento muito jovem, aberto e de grande força e dinamismo. Diferentemente da Espanha, que têm caído no burocratismo, na rigidez e nas polêmicas absurdas que em muitos casos têm gerado o “anarquismo clássico” e suas organizações, e, por outro lado, na frivolidade e superficialidade da que, talvez como reação, peca o anarquismo mais autônomo. Mas é certo que tem seus problemas. Na Grécia, segundo me contaram, existe uma identificação, que chega ao absurdo da organização, com o autoritarismo e os partidos políticos, chegando inclusive a afetar os processos de assembleia em seus aspectos mais básicos. Em muitos casos (aqui falo por ter ouvido, porque não entendia nada nas assembleias que presenciei) o conceito de desenvolvimento de acordos da assembleia, por meio de grupos de trabalho, é desconhecido, colocando inclusive problemas na hora de recolher assinaturas ou ter responsáveis pelas tarefas. Isto se traduz em uma dificuldade na participação de pessoas com menos disponibilidade de tempo que os jovens, e dificuldade de manter estruturas organizativas complexas.
Também existe algo que a “tradição” anarquista (em grande parte pelo anarcosindicalismo) deixou no Estado espanhol e que faz falta: a concepção do anarquismo como expressão da classe trabalhadora e as pessoas humildes em geral. Tampouco por aqui isso esteja sobrando, mas existem mais tentativas nesse sentido, ao menos em comparação com um movimento anarquista de um tamanho consideravelmente maior, como é o grego. Não existem na Grécia tantos movimentos de bairro ou lutas sociais com um caráter antiautoritário, sem ser especificamente anarquistas, como no Estado espanhol. Tudo parece muito mais politizado, não parece existir o conceito de movimentos sociais tal como temos aqui. É interessante a diferente evolução que teve o movimento das praças que começou em Sintagma sobre o 15M espanhol – tendo um caráter muito menos esquerdista o primeiro – e no qual os anarquistas em sua maioria não participaram. Isto é uma vantagem ou um inconveniente? Dada a situação política na Grécia, é possível que, por parte do anarquismo, se possa criar um movimento popular libertário sem ter que participar de movimentos sociais junto com a esquerda estadista, mas não sei se o fato de estar diretamente autodenominado como anarquista possa resultar um limite para a ação política das massas.
Por outro lado, alguns setores anarquistas gregos (os chamados niilistas, que pelo que sei tem grande semelhança ao insurrecionalismo que esteve em voga aqui há alguns anos) ostentam um maximalismo que torna difícil se comunicar com a população e cai no mesmo erro que muitas vezes se comete também aqui: o de ter uma atitude de rejeição às “pessoas normais”. A favor deste setor do anarquismo grego, é preciso dizer que movimentam-se muito mais que por aqui, com ações de uma contundência que todos conhecemos. E, contra este caráter maximalista, os leva muitas vezes a qualificar o resto do movimento ácrata de “não anarquista”, havendo chegado inclusive a ataques contra o resto do movimento anarquista em Tessalônica que levou a uma lamentável luta de tendências.
Há iniciativas muito interessantes como as dos companheiros do ESE, que tentam criar uma organização anarcosindicalista no complicado sistema grego (em que não há sindicatos propriamente ditos como aqui, mas sim espécies de corporações estatais, cujas eleições concorrem grupos sindicais). Como disse, me surpreendeu a energia empregadas nos piquetes, assim como as excelentes relações que têm com membros das okupas anarquistas (participando e sendo apoiado por elas). Me pareceu um grande ponto a favor, onde ser uma organização pequena e relativamente nova não suporta o peso de estruturas e, em muitos casos, folclore herdado, que sofremos no Estado espanhol. Por outro lado, manter a ideia da necessidade de organização e luta no âmbito trabalhista é, na Grécia, uma grande contribuição a um movimento que durante anos rotulou essas lutas como reformistas e contrárias ao anarquismo.
Outra iniciativa muito interessante é a autogestão da fábrica de materiais para a construção de Vio.Me. O empresário quer fechá-la, abandonando-a; em resposta, por parte dos trabalhadores, enfrentam o desafio de continuar com a empresa de forma coletiva, apoiados por ESE, o Movimento Antiautoritário e o resto dos coletivos libertários. Atualmente buscam relançar a produção da fábrica, arrecadando o dinheiro necessário mediante a venda de produtos de limpeza, por meio de um circuito comercial cooperativo, com a perspectiva de participar em um processo de criação de uma economia social que permita uma alternativa às práticas capitalistas.
Como se vê, existem questões semelhantes as que existem no Estado espanhol, com debates parecidos sobre como organizar-se e comunicar-se com o povo. Lamentavelmente na Grécia, apesar da potência do movimento, não vi uma grande relação com as classes populares que estão sofrendo os cortes. Falando com companheiros de Tessalônica deste tema, comentávamos que no CSOA em que estávamos havia muitíssimas atividades, mas quase todos os participantes eram jovens, em maior parte estudantes. Isto é algo que podemos extrapolar ao resto do movimento anarquista grego. À minha pergunta sobre a atividade do partido Aurora Dourada, me responderam que pelo centro da cidade não apareciam, já que está dominado em sua maior parte pelos anarquistas. Nos bairros periféricos e humildes, não sabiam com certeza qual era a situação, sendo certo que haviam aberto uma sede ao lado de uma delegacia para não serem atacados, o que dá ideia de sua debilidade na rua. Suspeitavam que estavam detrás da organização de assembleias nos bairros para protestar contra a prostituição e a imigração no bairro de um companheiro, mas não se participou dela para confirmar essa atividade. Algo semelhante me pareceu quando perguntei em Atenas: ali a presença do partido Aurora Dourada é mais forte, sobretudo nos bairros pobres, enquanto o anarquismo está em uma zona central. Isto deveria levar-nos a uma reflexão importante. No lugar em que há anos era impensável a presença de nazis na rua e a vida política, tem conseguido infiltrar-se nas instituições e começam a ter seus próprios espaços em algumas cidades. Têm sabido ver e aproveitar as frestas que lhes deixaram, manobrando habilmente, usando de forma inteligente golpes de efeitos midiáticos, conseguindo atuar na rua com um pretexto assistencialista, por exemplo mediante distribuição de comida (coisa que impossibilita um ataque direto por parte do antifascismo).
Em geral a imagem que tenho do Aurora Dourada é por um lado menos forte do que o alarmismo criado pela mídia na Europa, mas por outro lado muito mais sinistra e perigosa – a de um movimento escorregadio e que sabidamente é difícil de parar. Deveríamos analisar isto agora enquanto é tempo. Na Grécia até agora, tem conseguido fazer frente a uma maioria esquerdista na rua, surpreendentemente, a um movimento anarquista muito mais desenvolvido e forte que o nosso, assim como um antifascismo muito sério, preparado e arrojado. Mas têm aproveitado a falta de sintonia do anarquismo e da esquerda, com grande parte da população que está sofrendo os cortes na Grécia. Muitos dos que têm sucumbido ao sistema de clientelismo do PASOK (Partido Socialista Grego) e pequenos comerciantes arruinados entram no jogo do Aurora Dourada. Se os companheiros gregos não são capazes de achar a chave, poderão enfrentar um problema muito grave nos próximos anos, já que há um refluxo (como aqui) das massas, cansadas de manifestações e mobilizações que não tem conseguido diminuir o empobrecimento e perda de direitos que sofrem. Se não se consegue construir uma alternativa para as necessidades concretas dos gregos empobrecidos – de comida, trabalho, moradia e saúde – muitos deles vão cair também na chantagem clientelista do Aurora Dourada, nutrindo-os de uma força nas ruas para enfrentar a esquerda e de um apoio nas instituições que pode dar uma volta na situação política. Creio que esta é a grande pendência dos anarquistas gregos, já que a potência do movimento não será suficiente se não articular essa alternativa popular. Nós, aqui no Estado espanhol, também temos que tomar nota disto, porque se em um país como a Grécia os nazis estão conseguindo estas coisas, aqui também podem fazê-lo, e possivelmente com mais facilidade.
Mas creio que os companheiros gregos têm um grande potencial para sair adiante neste embate. São, como já disse antes, gente de grande qualidade militante; estão em um país em que a esquerda sempre foi forte, e sobretudo em muitos casos, expressam um grande interesse em superar o obstáculo que se tem colocado para o movimento anarquista na Grécia, apesar de todo seu vigor: a falta de organização e de conexão com as necessidades dos gregos empobrecidos. Em minha estadia, os debates que mantivemos após umas palestras sobre o movimento pela moradia digna e a ocupação de terras em Andaluzia foram muito interessantes, e me permitiram ver que as pessoas estão refletindo muito sobre essas questões e são conscientes do que está ocorrendo com o auge do fascismo e os cortes por parte do governo. Ao final, as questões e os debates são parecidos com os que temos aqui, ainda que talvez contemos com diferentes recursos na hora de enfrentá-los. Que podemos concluir de tudo isto? Em minha opinião, que para construir um movimento libertário forte e que seja uma verdadeira expressão da luta popular, é imprescindível compararmos experiências, estabelecer vínculos, ver-nos, falar-nos, compreendermo-nos, e, com o tempo, lutarmos juntos, aqui, na Grécia e no resto do mundo. É preciso proceder com calma, escrever com boa letra, mas não podemos dormir. Todo o tempo que perdemos e as oportunidades que desperdiçamos são aproveitadas pelo sistema, tanto em sua vertente “democrática” na hora de fazer-nos retroceder nos direitos que custará muito recuperar, como na vertente fascista, que se prepara como alternativa para o caso de que a instabilidade gerada pela crise a faça útil para os capitalistas.
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
Tarde de inverno
O por-do sol sumiu
em meio a poeira
Antonio Malta Mitori
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!