Por Antonis Drakonakis
Tomando como marco de experiência o complexo panorama do movimento anarquista grego, o autor analisa o funcionamento dos grupos de afinidade anarquista, que de maneira mais ou menos generalizada, funcionam como base do movimento libertário na Grécia. No texto se repassam as limitações práticas desse modelo organizacional, com especial destaque para o processo de hiperautonomização derivado do isolamento progressivo de muitos grupos de afinidade que operam neste país. Finalmente, o autor levanta a necessidade de melhorar a coordenação e integração das frentes de luta, através da consolidação gradual de uma organização libertária que contribua, em primeiro lugar, para a federação de grupos anarquistas e, por outro, para superar as fraquezas organizativas do movimento anarquista grego.
“Por nossa experiência até agora, acreditamos que a falta de acesso à sociedade é o que nos torna inofensivos para o poder do Estado. Porque a revolução social não a faz o nosso grupo de afinidade, mas todos os explorados, tornando realidade o sonho anarquista. Isso significa que quem não vê a necessidade de estruturar e organizar o nosso campo – com os correspondentes golpes selecionados contra o Estado – está colocando inconscientemente e com uma prática dogmática e míope, obstáculos ao desenvolvimento do movimento anarquista na Grécia e convertendo o sonho anarquista em um pesadelo diário”. É verdade que, na maioria dos casos, e devido a pouca idade prevalecente no movimento anarquista grego, o processo pelo qual se forma um coletivo anarquista/antiautoritário é feita em termos de grupo de afinidade. Isso, a princípio, não se julga de fato como algo negativo: ninguém pode, por exemplo, considerar uma desgraça a criação de um coletivo a partir de um grupo de amigos politizados existente, seja em uma cidade provincial ou um bairro de Atenas. Estruturalmente, criar, assim, um grupo político inicialmente baseado na confiança e amizade não é algo negativo. O problema está em um estágio posterior na evolução e na forma que o grupo experimenta ao longo do tempo.
Uma vez formado, todo coletivo começa o processo de construção de um espaço comum entre os seus membros. Os membros vão tomando forma coletivamente, desenvolvendo o seu discurso político comum e construindo uma vida diária coletiva, que na maioria dos casos se torna “sua própria” realidade. Sobre este último ponto está, em nossa opinião, a fonte do problema. A falta de um controle externo (referimo-nos, obviamente, a um controle coletivo dentro de uma Organização ou Federação mais ampla), o grupo cria uma concepção totalmente sua sobre os eventos sociais e políticos, por não estar comprometidos com nenhum outro coletivo, torna-se mais real a cada momento e com cada ação, incorporada em uma experiência coletiva (o processo de hiperautonomização da assembleia). Essa concepção aparece como uma coordenação de vários fatores tais como as leituras comuns, do cotidiano comum, das experiências comuns do movimento e, finalmente, a influência de personalidades de destaque de cada assembleia, que por várias razões dão ao grupo e aos seus membros a terminologia, as fontes teóricas e a estruturação central de seu pensamento.
Os “capitães invisíveis” ou “combatentes influentes”, de acordo com o termo mais condescendente são, a nosso ver, um fenômeno natural e inevitável, congênito aos princípios da organização coletiva e da evolução humana (idade, experiência, perspicácia, substrato cultural), muito perto da microfísica do poder de Foucault. Mas o problema não é o fenômeno em si, mas o ambiente informal em que se desenvolve e a dinâmica que adquire.
A hierarquia informal não se enfrenta resmungando, mas pelo controle coletivo, democrático epolítico que emana não apenas da vontade de alguns, mas da própria estrutura. O dirigismo político de algumas assembleias de certas pessoas não é problema exclusivo dessas pessoas, mas especialmente da própria assembleia, de seu próprio sistema operacional.
Uma personalidade ocupa o espaço deixado livre pelos outros; não é por acaso que há grupos que, privados de uma ou duas pessoas, vegetam. E é aí que chegamos à questão da acumulação de experiência e conhecimento (uma espécie de capital social ao nível pequeno de uma assembleia).
O referido mostra que os “combatentes influentes” têm algum tipo de “expertise”. Conhecimentos técnicos que, em vez de serem compartilhados com a assembleia, constituem um monopólio nas mãos de certas pessoas que conseguem dominar em uma relação de dependência. Esta experiência não vem exclusivamente de sua habilidade retórica, mas de um processo de acumulação de ganhos de capital intelectual: do capital experiencial acumulado de toda assembleia que, em sua redistribuição, sofre um curto-circuito. Para colocá-lo mais simplesmente, todo coletivo acumula através de suas ações e experiências um capital experiencial e de conhecimentos. Inicialmente, esse capital existe apenas como um produto coletivo, ou seja, existe como capital coletivo do grupo, sem ser individualizado. Mas a inércia de muitos membros, uma falta de objetividade e posições políticas concretas ao nível de grupo (atribuímos a responsabilidade as estruturas e não pessoas), em combinação com a capacidade natural do “lutador influente”, levam este capital acumulado para as mãos de poucos, que, assim, se beneficiam (muitas vezes involuntariamente) das desigualdades estruturais do informalismo.
O que precisamos, então, não é expulsar esses poucos, mas criar um mecanismo para distribuir igualmente esse capital em questão a todos os membros da assembleia. O informalismo é o livre mercado do movimento, e onde há mercado livre, há aqueles que dominam o capital.
O processo de hiperautonomização descrito acima também não é interrompido pelos novos membros de um coletivo que, para um maior ou menor grau, se veem obrigados a serem absorvidos pela microrrealidade do grupo e a velar pela preservação da desejada autonomia.
Os novos membros têm de lidar com uma série de problemas: a partir de um sistema já estabelecido de comunicação interna no grupo (terminologia, frases feitas, humor interno, questões tabu, referencias políticas), até o respeito informal (espontâneo) a seus membros mais destacados/ativos e, definitivamente, a aceitação ou conflito com uma estruturada concepção de sua própria realidade, a “realidade” do referido grupo.
Sob o peso da obrigação de se adaptar a um novo microcosmo, estruturado sem eles, estes novos membros têm três opções básicas: (a) se adaptar ao quadro existente e acolher as regras, (b) tentar mudá-lo, em maior ou menor grau e, finalmente, c) rejeitá-lo e deixar o grupo. O problema é que existe entre as duas primeiras opções uma desigualdade inerente que, a nosso ver, também procede da falta de estrutura.
Numa análise mais aprofundada, vemos que, na grande maioria dos casos, a balança se inclina em favor da primeira opção (ignorarmos a terceira). Isto é, um novo membro se adapta antes ou depois da já configurada realidade do grupo, sem sequer tentar desafiar o quadro existente. Isto é principalmente devido à insegurança que experimenta, não apenas em relação se tem capacidade para fazê-lo, mas se entendeu o próprio quadro, se entendeu o que vai enfrentar. Esta desigualdade está na fraqueza estrutural dos novos membros para alterar o quadro existente. A fraqueza é devido a duas razões principais: (a) a diferença de idade entre os novos e os “veteranos” com tudo que isso implica, e (b) a relatividade do quadro político de cada coletivo.
De início, é bem sabido que a nossa “esfera” atrai novos membros quase exclusivamente de pouca idade, especialmente estudantes e jovens. Assim, para um menino, a diferença de idade, experiência e fundamentação teórica entre ele e os membros mais velhos, se percebe enormemente, sobretudo de sua parte. Além disso, na maioria dos casos, infelizmente, o novo membro não se encontrará com um marco de posições políticas coerentes, configurado por um conjunto mais amplo de pessoas que exceda os limites estreitos do coletivo. Pelo contrário, ele terá de enfrentar um conjunto de ideias e práticas que fazem, como mencionado, a realidade de um grupo de vinte pessoas. A relatividade do objeto, que poderia ser contestada, torna o questionamento sem sentido.
Para colocá-lo de forma mais clara, esta relatividade reside na falta de posições políticas formuladas expressamente e em irresponsabilidade (política) que campeia nos pequenos coletivos desconhecidos, na ausência de uma entidade política mais ampla conhecida e reconhecível. Como consequência dessa relatividade, toda crítica se choca com um funcionamento quase ritual de cada grupo, que na maioria dos casos, tem por consequência que não se pode resolver politicamente as diferenças. Ante a falta de posicionamentos políticos bem estabelecidos, estatutos, etc., toda crítica se produz exclusivamente sobre a “tática” de um coletivo, e não na correlação dessa tática com suas posições. Além disso, se tem que a necessidade de adotar esta ou aquela ação sempre se julga a partir da percepção ou da vontade das pessoas, que formam um coletivo, e não é determinada pela própria necessidade social ou pelo peso de uma decisão mais ampla para uma ação em nível de toda Grécia, a diferença vai surgir em termos de crítica pessoal dentro do grupo, e não em termos de coerência política e responsabilidade social. O que defendemos, então, é que as pressões externas (dentro de uma Organização) não “submetem” a um coletivo, mas, pelo contrário, ajudam a esclarecer o seu marco político, a tomar distância dos pontos ambíguos e politizar suas diferenças e conflitos internos.
Além disso, sua hiperautonomização o converte em um grupo de amigos que resolve suas diferenças com o único critério de sua coesão e sua correlação qualitativa entre as suas particulares aspirações políticas e o rendimento dos seus membros. De acordo com o marco atual, se um grupo consegue realizar suas aspirações políticas, independentemente do que as circunstâncias políticas impõem, está indo muito bem. Ou seja, o seu compromisso começa e termina nas coordenadas dos desejos e aspirações dos seus membros.
Em resumo
Por exemplo, cinco coletivos que às vezes se encontram em processos do movimento e colaboram em um marco político de zero responsabilidade com relação ao outro (que não vai mais além da solidariedade e do apoio mútuo) são, na verdade, cinco grupos diferentes, com um fundo ideológico comum, muito genericamente, que aportam em cada ocasião cinco diferentes realidades. Isso acontece, como dissemos no início, porque, no momento da sua formação não havia nenhum compromisso, nenhuma comunicação (política) essencial e qualquer controle coletivo por uma entidade política superior (organização, federação), com o resultado que a visão da realidade não é “filtrada” coletivamente e não está diretamente questionada por qualquer força que não seja o próprio coletivo.
O grupo de afinidade, crescendo assim em seu próprio mundo, à mercê das desigualdades naturais e sociais implícitas nas relações entre pessoas de diferentes idades, classe social, experiência, vivências, tendências, etc., está lutando a sós com os seus próprios demônios.
Sem o apoio de uma entidade política, o coletivo isolado em si não se percebe como parte de um organismo que constrói a revolução social, mas como um organismo independente, que colabora com os outros por prazer, em vez de necessidade. Como parte de um organismo, está compelido a trabalhar para que todo o corpo funcione em uma relação de interdependência, enquanto que como um organismo independente, basta desejar colaborar com outras pessoas em um dado momento, no âmbito e nos termos que ninguém sabe como se vão determinar.
O organismo/coletivo/grupo de afinidade autônomo é o rei de seu microcosmo. Ele tem seu próprio território, a sua sede, o seu exército, o seu ambiente e o entorno de achegados que, ocasionalmente, reforçam seus blocos e ações. Todos estes reis juntos conformam o âmbito antiautoritário grego; um mundo povoado de maneira dispersa com uma forte comunicação interna formal, estruturado sobre o estranho princípio: o informalismo e os conflitos internos que este implica na base de sua existência, um meio de coesão e harmonia interna.
Para dizer brevemente, o informalismo domina como um mal menor para evitar tempestuosos conflitos dentro da esfera anarquista. Ou seja, como uma troca para manter uma amizade e comunicação interna, com base na proximidade ideológica entre grupos que vivem juntos, estabelecendo uma solvência temporária abusiva não ideológica à custa da responsabilidade social e política de seu tempo.
A realidade do coletivo isolado, sua visão global das coisas, que às vezes é apenas a visão de um único indivíduo, a relatividade do seu marco político e sua hiperautonomização tomam, através do informalismo, elementos do absolutismo, alienação e heteronomia. Por outra parte, a organização em uma entidade política anarquista mais ampla cria os mecanismos de controle coletivos essenciais, com base em princípios e posições decididas coletivamente e publicamente por todos os coletivos que a compõem; desarmando assim estruturalmente as arbitrariedades e abusos e cimentando a verdadeira autonomia de cada parte desse corpo. Adotando, em poucas palavras, o marco político de um “anarquismo social, que busca a liberdade através de estruturas e responsabilidades mútuas (…)”. Portanto, enquanto o informalismo segue a desempenhar o papel da metadona, o movimento anarquista grego seguirá parecendo a um corpo doente que conscientemente se esforça para manter suas dependências. E como a história, aparentemente devido à prática sustentada até agora, é transmitida mais oralmente do que de forma escrita para cada geração, a obsessão anti-organizacional traz o risco do anarquismo na Grécia acabe sendo uma palavra “inofensiva do ponto de vista político e social, um mero capricho que escandaliza de maneira divertida os pequeno-burgueses de todas as épocas”. Nestes tempos em que o movimento anarquista, como a parte mais orgânica do mecanismo para transformar o estabelecido, está pagando um alto preço por sua atitude, a estrutura não é mais apresentada como uma mera possibilidade, mas como uma necessidade para que o anarquismo continue a ser uma palavra politicamente e socialmente perigosa.
Fonte:
http://estudios.cnt.es/revista-estudios-no-4-organizacion-accion/
Tradução > Liberto
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