Ofereça a si próprio (o Natal é um pretexto), caro leitor, o último livro de Javier Cercas, “O Impostor” (Assírio & Alvim, 2015). Verá que não se vai arrepender. Trata-se da história das vidas (sim no plural) do cidadão espanhol Enric Marco Batlle ou talvez Enrique Durruti nascido a 12 de Abril (ou talvez a 14 de Abril) de 1921.
O hoje nonagenário Enrique Marco Battle nasceu no “manicômio de senoras de San Baudilo de Llobregat” onde a sua mãe havia dado entrada alguns meses antes e do qual nunca saiu até morrer.
Participou no campo republicano em algumas das principais batalhas da Guerra Civil Espanhola em Barcelona e Maiorca. Conheceu muitos dos heróis republicanos e anarquistas que combateram as tropas franquistas. Confirmada a derrota, organizou a resistência ao fascismo na “Juventude Anti-fascista”. Exilou-se em França em 1941, acabou por ser capturado pelos alemães e enviado para o campo de concentração de Flossenburg, aí experienciando os horrores do holocausto até que em 1945 foi libertado pelos canadianos do exército norte-americano.
Regressado a Espanha manteve-se como lutador inflexível contra a Ditadura com o que passou largas temporadas nas suas prisões. Quando Franco morreu envolveu-se na reorganização da histórica e na altura muito popular Confederação Nacional do Trabalho de Federica Montseny e outros (de matriz anarquista). Foi seu secretário-geral, em 1977, até que nos inícios do sec. XXI ascendeu à presidência da associação de antigos internados espanhóis nos campos nazis a “Amical de Mauthausen”.
Nessa qualidade foi condecorado pelas autoridades da Catalunha, presidiu a sessões de homenagem e deixou todos de lágrimas nos olhos (Zapatero incluído) quando no Parlamento espanhol relatou as atrozes experiências porque passou em Flossenburg. Fim da história? Apenas o princípio. Em 2005, o historiador Benito Bermejo prova que Marco nunca esteve em qualquer campo de concentração. E Javier Cercas, neste livro, conta o resto: nem presença nas batalhas da guerra civil, nem organizações anti-franquistas, nem exílio por razões políticas, nem passagens pelos calabouços franquistas por oposicionismo (mas sim por crimes comuns).
A história de Marco, o impostor, é a de um espanhol normal que quis inventar uma vida excepcional. Uma mentira que diz a verdade? Como Dom Quixote que inventa uma vida gloriosa personificada nos combates contra os moinhos de vento?
Ambos querendo transformar a ficção em realidade e mais do que isso vivê-la? O ponto é que Marco inventou o passado no momento em que à sua volta em Espanha quase toda a gente estava a inventá-lo. Foi o que aconteceu em 1975-1976 na transição para a Democracia. Morto Franco muitos começaram a construir o seu passado que encaixasse no presente e preparasse o futuro. Mas o apagão histórico que permite hoje dizer que a democracia em Espanha se construiu sobre uma mentira, uma grande mentira coletiva ou um conjunto de pequenas mentiras individuais, da qual a de Marco é paradigmática, arrasta algumas reflexões sobre a transição democrática (74-75) em Portugal. Deixo isso para o próximo artigo.
Fonte: http://economico.sapo.pt/noticias/o-impostor_237445.html
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Goulart Gomes
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