Mais além de um simples gênero musical, o Hip Hop é produto de múltiplos movimentos sociais que mesclam ideias libertárias com correntes artísticas. Nesse texto, Worm traça as coordenadas centrais de como se suscitou esta convergência de elementos.
Worm¹
Domingo, 21 horas. Me encontro lendo a última versão das cartas, manifestos e escritos menores de Albert Camus, intitulados Escritos Libertários. Absorto com sua generosa e insubmissa palavra, em um ambiente tão cheio de rebeldia, não me havia percebido que ao fundo soava uma canção de rap que dava vida a pequena sala. Entre as diversas perguntas que apareceram em minha cabeça, somente duas me deixaram inquieto: que relação tem tudo isso? Tem o ideal libertário alguma proximidade com o movimento hip hop? Consumido por minhas dúvidas, estou aqui, sobre a escrivaninha, com uma folha e um lápis, tratando de esclarecer o assunto, traçando uma síntese que possa – sem pretender fazer um estudo inapreensível – dar-me uma resposta concreta.
O hip hop é um movimento cultural que surgiu ao término dos anos sessenta no seio das duas comunidades afroamericanas mais pobres dos Estados Unidos: o Bronx e Brookyln. Muitos diferenciam no que diz respeito às origens e afirmam que em realidade nasceu na West Coast (a Cota Oeste). Seja como seja, não se pode negar – de nenhuma maneira – que no fundo o hip hop supõe um sincretismo de formas de ver a vida e de ideias, originado de um movimento espontâneo das massas mais vulneráveis nessa época. Patrimônio passado de geração para geração, sua principal influência provem de uma figura oratória familiar na tradição africana: a dos griot, narradores de histórias tradicionais. Assim mesmo, o hip hop tem uma dívida de inspiração e formativa com a poesia revolucionária do grupo The Last Poets, com o funk de James Brown (tão em voga por esses anos), com o soul e o blues. A argila que se utilizou para esculpir seus pés saiu de uma larga história de luta social, rica em ritmos e poesias.
A canção que ressonava na sala era do disco Let’s get free do grupo Dead Prez, que em espanhol significa “vamos ser livres”. A canção leva por título “We Want Freedon” e seu muito contagiante coro diz o seguinte:
I dont’t wanna be movie star (não quero ser uma estrela de cinema)
I don’t drive no fancy car (não quero dirigir um carro luxuoso)
I Just wanna be free, to live my life, to live my own life (quero ser livre, viver minha vida, viver minha própria vida).
A ideia de liberdade, imanente a gleba mais despossuída, mais subjugada pela corrupção do poderoso, tão exposta por Albert Camus – o século de ódio como exemplo, e tão presente para as plumas de Kropotkin, Reclus e Emma Goldman.
Tão pouco se deve deixar de lado o contexto histórico em que surgiu o movimento. No ano de 1977, a cidade de Nova York sofreu um corte de eletricidade que afetou grande parte da cidade, em especial o Brooklyn, e que provocaram saques a mais de mil e quinhentas lojas nesta zona. O resultado: três mil presos, em sua maioria pobre e afroamericanos. Devido à falta de recursos, a discriminação, a miséria, a ideia de vingança e, sobretudo o desespero, o que ocorreu foi a manifestação de mal estar que leva consigo a desigualdade econômica e social em qualquer lugar do mundo e deixou descoberta a necessidade que se vivia em bairros afroamericanos – coisa que não mudou muito. Uma situação chama a atenção sobre esse fato: os objetos saqueados: vitrolas, microfones e aparelhagem de som foram alguns dos objetos que mais se roubaram. Mas, porque me chama a atenção? A razão é precisamente que este fato histórico – deixado nas areias do tempo, de certa maneira proporcionou aos jovens as ferramentas e a possibilidade de fazer música. As novas gerações que se beneficiaram disso, agora podiam se expressar e somar ao ritmo novo que apenas dava sinais de vida nas vizinhanças desses anos: o hip hop. A luta de classes, a ideia de expropriação, a manifestação artística, a crítica ao poder e o ócio criativo tinham uma surpreendente relação com o hip hop. Recorda-me os capítulos sobre bem estar social e expropriação da Conquista do Pão, do russo Piotr Kropotkin, sem dúvida seu livro mais distribuído pelo bando revolucionário na guerra civil espanhola.
Com o passar dos anos o hip hop tomou variadas formas e diversos caminhos, se enfiando em festas de bairros ou block parties e, sobretudo, se alçando sobre os bandos de jovens que enchiam as ruas de Nova York (precisamente foram eles que forjaram aos principais personagens de sua cultura, como DJ Kool, Herc, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, Melle Mel, do grupo The Furious Five). O corte rítmico sobre o disco de vinil, a mistura de funk e a onda disco, os animadores de festas e suas rimas, muitas outras formas e técnicas paridas pela improvisação e os escassos meios da época limparam a zona e deixaram a cena preparada para o florescimento do break dance e os mestres de cerimônia chamados MC’s. Devemos ter em conta, e isso é muito importante, que naqueles anos o hip hop se materializou nos muros das ruas e nos vagões do metrô; a nova cultura forjada em torno dela se mostrava sobre o alambrado elétrico e sobre as pontes das ruas, deixava traços com aerossol sobre qualquer espaço da cidade aonde havia que deixar pegada da desobediência à ordem estabelecida. Atitude! Muita atitude, outrora necessária para alçar a voz e as armar contra o Estado e seus exércitos com as greves gerais. As armas do hip hop foram também as pinturas, algumas delas permanentes, como as linhas de Taki 183 e os postais dos amanhecer do hip hop, tomadas pela reconhecida fotógrafa Marta Cooper, e o famoso Wild Style, estilo selvagem, estilo de rua, estilo rebelde, estilo completamente anárquico.
O movimento hip hop, conformado por seus principais elementos, dança, canto, pintura e os Dj’s, tomou forma e força indissolúvel e de um grande salto se lançou a viver, a se expandir pelo mundo. Nos anos oitenta, a indústria musical deitou seus funestos olhos sobre o hip hop e especialmente sobre seu canto, melhor conhecido como rap (Rhythm and poetry), que consistia na improvisação e rimas sobre uma base musical, o que lamentavelmente contribuiu para a alienação e desgaste de sua essência revolucionária, ao mesmo tempo em que saturava de luxuosas cegueiras e excentricidades o movimento. Isso não é o que me preocupa por hora e nem diz respeito ao que estou buscando. Afortunadamente muitos membros do movimento se deram conta dessa falta e nesses mesmos anos emergiu um grupo chamado Public Enemy, de língua ácida e revoltosa. Seu principal rapper, o MC Chuck D, vociferava um cântico contestatório e sem mordaça: era um discurso para os ouvidos dos dirigentes infames das cidades. Um exemplo claro é sua canção “Fight the Power”, lançada no final dos anos oitenta. Nela está o seguinte verso:
Make everybody see, in order to fight Power that be/ Lemme hear you say/ Fight the power.
Em poucas palavras Chuck D deixa um alerta: “Fique atento, o poder é o inimigo”. Ainda que hoje – depois de trinta anos – tenham terminado abraçados pelas políticas de Obama, o Public Enemy pode ser a primeira conexão imediata do rap com as lutas libertárias. Subitamente, me faz recordar o legado de tantos escritores libertários que nos chamaram a desafiar o poder e seu desenho de servidão humana, tantas manifestações depois da luta social, as revoltas magonistas de princípio do século XX, a Revolução Russa e o exército negro de Néstor Makhno nos campos da Ucrânia, para mencionar apenas uns exemplos.
Dentre todas as lutas sociais que o mundo concebeu, há uma que pode nos dar um raio de luz, uma resposta concludente para as primeiras interrogações que me fiz; é uma luta que se esgarça na cultura hip hop desde os seus primeiros anos, e que se deu no momento em que as comunidades afroamericanas tomaram consciência de seu poder de contestação, a que se não é sua mãe, seguramente é sua irmã maior. Refiro-me ao movimento dos Black Panthers, os panteras negras. Foi em suas aulas, em suas concentrações, em seus espaços; foram os seus membros, seus filhos e seus netos; foi graças a tudo isso que se chegou a uma ideia revolucionária com a que se impregnou o movimento do hip hop.
O hip hop, para além de assumir um ritmo novo e uma nova técnica, é um movimento multicultural, politécnico, multifacetado, original e, acima de tudo revolucionário, que carrega muitos sorrisos e também muitos pesares, uma história completa e um mundo por si mesmo.
No meu rádio toca KRS – One, com sua canção “Free Mummia”. Quem é Mumia? Mumia Abu-Jamal é um escritor afroamericano, jornalista e preso político, acusado injustamente e de forma confusa do assassinato de um policial em 1981. Foi sentenciado a morte, mas sua pena se comutou para prisão perpétua. Mumia foi membro dos Panteras Negras e simpatizante da organização MOVE, e na realidade foram essas suas atitudes que colocaram em cheque o governo da Filadélfia. O rap sempre teve esse rasgo de rebeldia e esse apoio às causas sociais. Esta canção é um exemplo vivo disso. E não por acaso em grandes manifestações internacionais onde participaram intelectuais do porte de Noam Chomsky e David Graeber, dois escritores anarquistas, o show musical foi presidido por grupos de rap. Também o KRS – One tem uma canção com Zack de La Rocha, vocalista da banda Rage Against The Machine, chamada “CIA” (Criminals in Action), que não necessita de descrição, pois o seu título é eloquente.
Nos anos noventa, esta relação entre luta libertária e o hip hop se fez mais exígua, ainda que viva na sombra dos membros do movimento dos anos dourados. Nesse tempo, não obstante, ganharam maior notoriedade os luxos, drogas, misoginia e a violência dos bairros. O valor da luta ficou regalado a poucos cantores de rap dos anos noventa e a uma parte minúscula de seus repertórios e álbuns, ainda que muitos, de maneira independente da fama que ganhavam não se esqueceram do valor da luta e da resistência social. Tupac Shakur, ou simplesmente 2pac, importante rapper da Costa Oeste, filho de uma pantera negra de nome Afeni Shakur e outro integrante do partido, nos deixou canções – para mencionar somente dois de seu enorme repertório musical, que manifestam uma crítica implacável contra o Estado. Uma delas leva o título de “Letter to the President”, e tem um verso que diz “but then America fucked up and blamed up”, que seria algo como “A América (Estado) nos fode e às vezes nos culpa”. Essa frase não recorda Moro e sua utopia? : “que outra coisa é isso senão fazê-los ladrões e os castigar logo”?. Ou uma outra canção que leva o nome de “Killuminati”, em que expressa sem rodeios como as armas e as drogas foram postas nas mãos da população afroamericana para gerar uma guerra entre irmãos da mesma cor e legitimar o poder dos que denomina illuminatis. Todas essas ideias, sua morte repentina e extraordinariamente confusa nas mãos de um sicário, sua ficha policial que carece de provas cruciais e o fato de que as testemunhas chaves foram baleadas em pouco tempo, deixam sobre a mesa muitas teorias conspiratórias que apontam que o governo é o verdadeiro responsável de planejar sue assassinato.
Na segunda metade da década dos anos noventa, muitos grupos e cantores tiveram notoriedade por suas letras e conteúdos críticos. Entre eles podemos mencionar Kool G Rap, Masta Ace, Jeru the Damaja, The Fugees, Dead Prez (presidente morto), KRS – One, Nas, Gza (do emblemático grupo Wu Tang Clan). Capturado pelos eixos comerciais e sociais, o rap não soltava de suas mãos nem o dinheiro e nem sua história e se consolidou e se manteve com estas duas características por muitos anos. Nunca deixou de criticar o sistema e a polícia, mas o certo é que com seu “fuck the Police” e seu “thug life” gerou benefícios econômicos obtidos mediante as vendas de discos e concertos musicais.
Não apenas nos Estados Unidos apareceu o rap combativo ou de conteúdo social. A França teve grupos como IAM, 2 Bal Neg y Ntm; a Espanha, de seu lado, pariu os Violadores do Verso e Frank T; o Chile aos Panteras Negras (já não é casualidade) e De Kiruza. Definitivamente, em qualquer parte do mundo onde o movimento hip hop encontrou um espaço, ele levou consigo a ideia revolucionária, que ainda que não fosse prioridade na manifestação artística, sempre esteve considerada. Essa ideia revolucionária e histórica não chegou a ser protagonista, senão apenas nos últimos anos, em pleno século XXI, quando surgem grupos mais radicais, autodenominados “rap de luta”, ou simplesmente “rap anarquista”. Rap anarquista? Sim, o que andava buscando já é um fato nessa época que transcorre lentamente, cheia de monotonia artificial e sorrisos escravos, acéfalos mecânicos e ruas repletas de vidas decadentes, é aqui aonde podem se enxergar os primeiros vestígios do rap de luta anarquista. São incontáveis grupos musicais que definem esse setor. A questão agora é relacionar as lutas libertárias e anarquistas com o hip hop, e em especial com o rap. Por sorte, a lista desses grupos é grande demais. Os grupos de rap anárquico que tenho em mãos e de maior difusão são Voces Clandestinas e 89 Puñaladas, do Chile, e Lírika Podrida, do México, Aire y Humo, da Espanha; as rappers MC Keny Arkana, da França e Rebeca Lane, da Guatemala.
Ainda que nem todos manifestem essa influência em suas raízes negras rítmicas, criando novos sons, a ideia rebelde segue intacta e a força revolucionária continua sem detrimento.
O movimento hip hop não deixa de lado sua força social, e enquanto siga a par, ombreando com os oprimidos, combatendo as injustiças, será uma arma e uma ferramenta para superar a miséria. Isso é evidente em grande parte na África, em especial na Nigéria e em Senegal. O nervo revolucionário desses países serve para afastar o espectro das drogas e da pobreza extrema; a força que tem o hip hop nesses lugares os ajudou com esses e outros problemas.
Todos deveriam conhecer o sublime trabalho dos hip hoppers aonde quer que o movimento marche com o passo agigantado. São mais de quarenta anos e ainda não há provas de cansaço. Existe algum outro movimento social ou musical que tenha logrado suscitar depois de tanto tempo o que o hip hop suscita em nossos dias? Não sei, mas respirar e fazer hip hop é se encher de lucidez, é aliviar os nossos sofrimentos e de alguma ou outra forma, combater na trincheira desde a que luta a raiva social. É justiça ao nosso modo. Como disse Camus “a justiça nunca vai separada da rebeldia”.
Finalmente, já tendo em mãos as evidencias, posso dizer que tudo que provenha dos oprimidos para enfrentar a miséria é uma luta libertária. Os deixo com o disco “Perdoem se meu silêncio causa tanto ruído [youtube.com/watch?v=2nFl4INm4w8]” (2013), do Voces Clandestinas, com uma introdução de Mumia Abu-Jamal e Christian Ferrer, sociólogo e anarquista argentino.
[1] Worm é uma máscara, uma multiplicidade de rostos que confluem em um, em um que grita, canta e escreve.
Fonte: http://cuadrivio.net/cuadrivio-proteico/el-hip-hop-como-lucha-libertaria/
Tradução > Liberto
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