Enquanto se desenvolviam as atividades da “Semana Santa”, entre 24 e 27 de março [de 2016], ocorreu na cidade de Huila o “Primeiro Encontro de Práticas e Tendências Anarquistas”, um cenário de intercâmbios para um conjunto de correntes do movimento que faz algumas décadas mantém presença em nosso país (e muito além da noção estendida que se relaciona com caos e destruição – uma clara tergiversação do termo) que reúne em seu seio uma variedade de propostas e éticas políticas em torno de outras formas de vida e sociedade, sem autoritarismos de nenhum tipo (políticos, econômicos, religiosos, de gênero, etc…). O encontro se dá em outra série de atividades levadas a cabo, como a feira anarquista do livro e da publicação, as jornadas libertárias e a “assembleia anarquista”, entre outras.
Reconhecer-se e tecer
Longe de adentrar nos embates ideológicos, a agenda do encontro foi abordada desde o início como um cenário de articulação, confrontação e re-conhecimento mútuo daquelas propostas que apostam em ultrapassar a realidade imperante e a miséria que tenta invadir todos os espaços de nossa existência.
A agenda de discussão girou em torno de círculos temáticos de afinidade, surgidos nos processos desenvolvidos por aqueles que responderam a convocatória. Os temas tratados servem para poder transmitir ao leitor as alternativas que o movimento libertário disputa junto à hidra capitalista, e como propostas para a sociedade do presente temos os seguintes temas:
Ecologia libertária. A América Latina, por sua posição geopolítica, sua riqueza em matérias primas e biodiversidade, é um dos territórios mais importantes para a exploração da terra e de material genético. O Estado, aliado com grandes corporações multinacionais e burguesias nacionais, rompe os tecidos sociais e biológicos do território, impedindo que as comunidades locais possam decidir com autonomia sobre o porvir do lugar que habitam, bem como assumir sua relação com a natureza de maneira mais equilibrada.
Autogestão e cooperativismo. A autogestão é um dos princípios ácratas fundamentais. Autogerir a vida diária é uma alternativa necessária de luta contra o capitalismo, sem embargo, é preciso avançar em uma maior capacidade de confrontação e transformação. A autogestão implica, também, a criação coletiva em termos de relação produtiva desde perspectivas horizontais e cooperativas, que pratiquem o apoio mútuo, que permitam o desenvolvimento técnico próprio e que mantenham a autonomia dos processos no que diz respeito à política, ou melhor, à antipolítica.
Aprendizagens livres. Se entende a educação institucionalizada não apenas como um lugar no qual se privilegiam certo saberes acima de outros, mas também como uma ferramenta ideológica do Estado, como instituição de governo, onde nos ensinam a forma como devemos viver, contribuindo com a reprodução dos aspectos opressivos do sistema, do colonialismo, do patriarcado e do autoritarismo.
As práticas pedagógicas, ou como denominam alguns coletivos “antipedagógicas” e des-escolarizadas não desconhecem o papel fundamental que a sociedade tem na produção e transmissão do conhecimento para a formação da vida em comum e o desenvolvimento do espírito humano; em virtude disso o que se deseja é a reflexão, a configuração de práticas e múltiplos cenários de aprendizagem que impulsionem a autonomia, a paixão pelo saber e a solidariedade.
Sexualidades transgressoras e dissidentes. Assumimos que o pessoal também é político e que nos corpos também se exerce poder, regulações e constrangimentos, fazendo deste também um espaço de disputa; sem embargo, nos distanciamos daquelas posturas que pretendem obter uma inclusão institucional em um plano meramente formal, convertendo-as em algo regulável ou erotizável. Se propõe a respeito a desestigmatização e o reconhecimento sociocultural legítimo de todas as expressões sexuais e de gênero.
Anticarcerário e antipsiquiatria. O sistema carcerário (que abarca entre outros as prisões, os hospitais psiquiátricos e a sociedade/polícia) é uma macroestrutura de controle materializada nas relações que nos atravessam todos os dias, nas quais somos francos potenciais de sermos castigados em qualquer situação que transborde o limite imposto pelo “controle”, a “normalidade” e a lei. De tal modo, se incentivam as práticas que confrontem ao sistema panóptico, com práticas que atacam as instituições psiquiátricas, penitenciárias, de hegemonias disciplinares, tanto a nível simbólico como corporal, ao invés de manifestar e fortalecer grupos de apoio e solidariedade com aqueles que são os presxs desses sistemas de isolamento e castigo.
Propostas de contrainformação. A disputa pelo sentido da mensagem em particular, e pela opinião pública em geral, é um dos cenários estratégicos de construção da sociedade. Na atualidade, o grande capital ostenta na Colômbia o monopólio da informação, ou melhor, da desinformação; sua postura promove o consumismo, a acumulação de capital e a frivolidade acrítica, mediante a redução da informação ao espetáculo, impondo sua maneira de interpretação, desqualificando como delinquentes e terroristas todos aqueles que questionam a autoridade do Estado, assim como os interesses e privilégios dos mais acomodados¹.
Identidade
Ante os magros resultados evidenciados pelos governos de esquerda e progressistas latino-americanos, que depois de dar golpes no neoliberalismo acabaram revivendo os velhos demônios da modernidade ocidental, mantendo a depredação à natureza, o vanguardismo neoestatista, o desprezo por certos grupos sociais e restringindo a liberdade de seus governados, ganha mais atualidade o porvir da luta desde uma perspectiva ácrata.
O panorama político aberto na Colômbia por um eventual cenário de pós-acordo com a insurgência, mais que possível, faz urgente a renovação dos métodos, mas também dos ideais emancipatórios, pois até o momento só tivemos revoluções frustradas. O anarquismo deve romper com as caricaturas e com os absurdos com que o poder e a esquerda tradicional o desqualificaram, negações que ressaltam a ignorância que os assiste.
O zapatismo, as municipalidades libertárias europeias, o Curdistão, os movimentos indígenas autônomos, as comunidades urbanas, assim como os pequenos coletivos expressos no encontro e os que surgem todos os dias em seus territórios, são a evidência da vigência da luta libertária no presente, que está longe de ser derrotada por completo, que tem sua própria tradição, sua própria teoria, estratégia e tática, que merece sua oportunidade de existir.
Desafios
Não obstante, aqueles que desejem assumir este grande objetivo devem ser conscientes da debilidade em que nos encontramos, e ir avançando por meio de objetivos estratégicos que permitam apontar sucessos de longo prazo sem que por isso deixemos de realizar a revolução no presente. A posição anarquista indica uma incidência nas conjunturas sociais de nosso território, por exemplo: lutas agrárias, étnicas, ecologistas, dissidências sexuais, trabalhadores urbanos, etc, pois devemos assumir a configuração e construção coletiva de um projeto político anarquista de caráter geral e internacionalista.
Devemos reconhecer nossas contradições sem autoritarismos, dispondo das condições para disputar outro mundo, afastar-nos das constipadas interpretações dogmáticas de nossas (e outras) correntes e tirar delas todo seu potencial emancipatório, de maneira que avancemos até análises mais rigorosas, práticas mais acertadas, pois o anarquismo encontra sua potência em ser uma teoria sempre inacabada e, como dizia Malatesta, “para que a revolução seja anarquista, dependerá da vontade e compromisso militante dos anarquistas; conscientes de que a revolução do povo se fará pelo povo e não por nós”. Que fazer? Como fazer do anarquismo um projeto político de maiorias sociais? Como nos construir e construir situações e sujeitos sociais revolucionários? Quais são as trincheiras sociais desde as quais destruiremos o Estado?
É necessário que nos abramos a outros projetos e atores, que nos fortaleçamos, mas também tecer com aquelxs que sem se declarar anarquistas pratiquem os princípios da autogestão, do autogoverno, da horizontalidade, do federalismo, da solidariedade e do apoio mútuo. Por isso propomos ter em conta a iniciativa formulada pelo Encontro de gerar a meio prazo um encontro nacional de processos organizativos de base, autonomistas e libertários.
Isso é somente uma desculpara para convidá-los para conhecer e contribuir para com o debate. Felicito, assim, a realização deste primeiro encontro. Saúde e anarquia.
[1] No curso do Encontro se expôs a experiência do periódico “El Aguijón” (“O Ferrão”), em especial sua edição Nº 29 e do portal “Anarcol”.
Tradução > Liberto
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