No passado domingo, dia 24 de julho, uma maré humana encheu a Alameda sob uma só consigna: Não à AFP. Na capital do saque se vislumbrou tempestades anunciando um novo ciclo proletário de protestos. Já não é apenas por “educação gratuita e de qualidade”, mas pela supressão do regime das AFP, sistema de pensões herdadas do pinochetismo, e aprofundado pelos partidos da esquerda neoliberal. No diversificado protesto, que somente em Santiago reuniu mais de trezentas mil pessoas, não faltaram colunas, grupos e individualidades anarquistas e anarcossindicalistas.
Nesse contexto, no seio do movimento anarquista surgem interessantes debates: se não queremos mais as AFP’s, que sistema de pensões sustentar? Participar e fortalecer o movimento contra as AFP’s é atentar contra os princípios anarquistas? Se tal movimento é reformista, é uma contradição que o movimento libertário dele participe?
Para abordar tais questionamentos de maneira integral, consideremos importante dialogar a partir dos matizes da terminologia vinculada. Para tal efeito, usaremos e abusaremos das palavras de Errico Malatesta e Emilio López Arango.
Para Malatesta o anarquismo sempre foi reformista. Aclara, contudo, que seria mais certeiro qualificar o anarquismo como um movimento reformador (para diferencia-lo do reformismo político vulgar). A revolução, nos explica, no sentido histórico da palavra, significa a reforma radical das instituições, executada rapidamente por meio da insurreição violenta do povo contra o arraigado poder e privilégio. Nesse sentido, o anarquismo não poderia se r outra coisa senão reformista. O anarquismo é revolucionário porque não quer apenas melhorar as instituições que existem agora, mas destruí-las completamente, abolir todas e cada forma de poder do homem sobre o homem e todo o parasitismo, de todo tipo, sobre o trabalho humano. Todavia a revolução não pode ocorrer a pedido. Devemos, então, permanecer como espectadores passivos, esperando que o melhor momento se apresente?
Tudo na história como na natureza ocorre gradualmente. Quando uma represa arrebenta é porque ou a pressão da água cresceu em demasia para que a represa a contenha, ou pela desintegração gradual das moléculas do material de que é feita a represa. De igual modo, as revoluções estalam mediante crescente pressão das forças que buscam a mudança social, e esse ponto se alcança quando o governo existente pode ser derrocado e quando por processos de pressão interna das forças do conservadorismo se debilitam progressivamente.
Mas nunca iremos reconhecer – e é aqui aonde nosso “reformismo” difere daquele tipo de “revolucionismo” que termina surgindo das urnas de votação – as instituições existentes. Haveremos de levar a cabo todas as reformas possíveis no mesmo espírito em que um exército avança sempre arrebatando em seu caminho o território ocupado pelo inimigo. E sempre haveremos de permanecer hostis a todo governo – seja o monarquista de hoje ou o republicano ou bolchevique de amanhã [1].
Com os parágrafos anteriores podemos reforçar a diferença entre o caráter reformador do anarquismo e do reformismo vulgar do parlamentarismo democrático-representativo. Mais que reformista ou propiciador do reformismo, o anarquismo é, para o anarquista italiano, reformador em um sentido revolucionário e libertário. Tal direção anárquica não significa, em embargo, o triunfo garantido do movimento. Em efeito, quando as classes oprimidas formam movimentos de ação direta por uma conquista determinada , ante o temor de que tal investida se transforme em um movimento que venha a destruir a base da sociedade burguesa, ou pelas mesmas necessidades de desenvolvimento do capitalismo, tais demandas usualmente são expressas pelos códigos das instituições burguesas. A maioria das vezes atendendo aos interesses da classe dominante.
No entanto, exigir e construir as bases necessárias para erigir tais conquistas não é em si mesmo reformismo ou revolucionário. Será um ou outro segundo o meio/formas que se empreguem para se aplicar à demanda. Se se protesta mediante métodos proletários libertários (ação direta, protestos, assembleias, anarcossindicalismo) pelo acesso à saúde ou pelo fim das AFP’s, não será necessariamente reformismo. Se o fazemos apresentando-nos como parte de uma candidatura para alcançar tal medida, desde as alturas do poder, será reformismo.
Complexando tais distinções práticas e terminológicas, Emilio López Arango, nos coloca um necessário exercício crítico do reformismo. Para o histórico militante da FORA, o reformismo não se expressa unicamente nas mudanças que sofre a estrutura jurídica do Estado, mas na transferência da riqueza e dos privilégios detidos por uma minoria. Os senhores feudais e a nobreza proletária se viram obrigados a dar espaço em sua mesa para a classe burguesa, dona do poder político. A revolução do século XVIII deu um golpe de morte no feudalismo. Mas o problema social ficou de pé ; com essa transferência de poderes e títulos de propriedade. Poderia o proletariado, mediante um ato de força que lhe deu a máquina capitalista, eliminar de um só golpe todas as diferenças de classe e de casta? Não seria mais provável que, aplicando o método histórico dos marxistas, se criaria em seus seios novos privilegiados e novos governantes, que seriam necessariamente os chefes políticos e os funcionários sindicais? [2]. Assim, o reformismo não apenas se expressa na política proletária ou da socialdemocracia, mas também nos setores que propõe a ditadura do proletariado. O reformismo não está no fato natural de que os obreiros reclamem melhoras econômicas, mas na subordinação da ideologia socialista aut oritária a um programa que tende a perpetuar o regime do salariado [3].
Ademais, das táticas socialistas democráticas dos marxistas ditatoriais, para López Arango, o reformismo também se expressa nos setores sindicalistas apolíticos ou nos companheiros que advogam práticas “livres de dogmatismos”. Tais posturas, ao rechaçar todo compromisso com um “dogma”, deixam sentado o conceito fatalista do marxismo, pois confiam ao desenvolvimento industrial das nações e a prevalência cada vez mais absorvente do capitalismo a tarefa de criar nos povos e nos indivíduos as aptidões necessárias para preparar e realizar a revolução [4]. Tal atitude dos sindicalistas apo líticos e dos companheiros que se deixam levar pelos movimentos sem uma análise teórica anarquista das condições existentes, podem ser arrastados com maior facilidade para o espectro da ideologia dominante. Se na autogestão obreira não se incorpora integralmente o anarquismo – nos adverte Murray Bookchin – a gestão acaba por prevalecer sobre a auto (de si, para si); a administração tente a assumir o controle sobre a autonomia do indivíduo. Graças à influência exercida pelos valores tecnocráticos sobre o pensamento do homem, a individualidade – que reveste uma importância fundamental na concepção libertária de organização, de vida em todos seus aspectos – tende a ser substituída com um jogo sutil, porém inexorável, pelas virtudes de eficazes estratégias administrativas. Como consequência, se vai promovendo a autogestão não com a finalidade libertária, mas com metas funcionais, e isso ocorre incluso entre os sindicalistas mais comprometidos [5].
Retornando à López Arango, cabe destacar que este considera que seria um grande erro sustentar que todas as conquistas do proletariado são estéreis e que nada representam na marca do progresso. Acaso é o mesmo – questiona o autor – trabalhar dez ou doze horas que limitar a jornada a seis ou oito horas de trabalho? (…) Rechaçar esse positivo melhoramento nas condições materiais do salariado com o argumento de que perdura o sistema capitalista mesmo que a jornada de trabalho caía para quatro ou duas horas, supõe defender a teoria da miséria como fator da revolução. De outro lado, é possível evitar o esforço que reclama a luta cotidiana contra a exploração capitalista, conservando todas as energias para dar o golpe de misericórdia ao capitalismo quando se esgote a paciência dos trabalhadores? Pode-se acumular em alguma parte a energia que se perde a espera do grande acontecimento? Ou será que a inércia constitui um caudal de forças ignoradas que se concentram em algum ponto da terra e que explodem a mágica conjuração de um gênio desconhecido pelos homens?
A realidade nos demonstra que toda conquista fundamental está condicionada por conquistas parciais. Não de pode chegar a revolução social dando um salto ao infinito sem partir de um dado ponto e seguir uma determinada trajetória de esforços e realizações. Um programa totalmente anarquista, que não extrai nenhuma experiência do presente, que não se manifesta em nenhum propósito atual, termina sendo uma negação, ao passo que defender a tese empírica do “tudo ou nada” equivale a negar a possibilidade de que os trabalhadores realizem por si mesmos sua emancipação econômica e soci al [6].
Notas:
1 – Errico Malatesta: Anarquismo e Reformas, Tradução para o castelhano por: @rebeldealegre
2 – A oposição ao marxismo no movimento obreiro – Emilio López Arango
3 – O valor das conquistas imediatas – Emilio López Arango
4 – Emilio López Arango: Reformismo apolítico (1924)
5 – A autogestão, quando não existem indivíduos capazes de se gerirem autonomamente, corre o risco de se transformar em qualquer coisa que seja exatamente seu oposto: uma hierarquia baseada na obediência e no mando. A abolição das classes não compromete minimamente a existência dessas relações hierárquicas. Estas podem subsistir no interior da família, entre os sexos e entre os diferentes grupos de idade, bem como entre grupos étnicos e no interior dos organismos burocráticos, o mesmo que nos grupos sociais administrativos que pretendem realizar a política de uma organização ou de uma sociedade libertária. (Autogestão e novas tecnologias: a imaginação contra a máquina – Murray Bookchin)
6 – O valor das conquistas imediatas – Emilio López Arango
Fonte: http://noticiasyanarquia.blogspot.com.br/2016/07/afps-reformas-reformismo-y-anarquismo_26.html
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Tangerina cai
e a casca ferida exala
gemidos de dor.
José N. Reis
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!