Mudou a canção francesa – trouxe-lhe erudição, poesia e combatividade. Mantém-se como uma voz de culto. Faria hoje 100 anos
A maior injustiça que pode cometer-se com Léo Albert Charles Antoine Ferré, cidadão do mundo nascido no principado do Mônaco a 24 de Agosto de 1916, é identificá-lo exclusivamente como o cantor de Avec Le Temps. Por mais genial que seja – e é – a canção, de 1971, a magistratura de influência deste poeta, compositor, cantor, pianista de cabaret, maestro, combatente político, provocador, excêntrico, estende-se por mais de 50 anos de palco (1941-1992), por 37 álbuns de estúdio e mais oito de concerto (números que não englobam coletâneas nem edições póstumas). Mas, sobretudo, espraia-se por uma densidade, uma consistência, uma capacidade de ruptura, que, apesar de Brassens e de Brel, não conhecem paralelo na música francófona. Poderia ter sido dentista, mas não tinha a vocação de uma das irmãs. Ou advogado, mas não via sonhos nas práticas dos juristas. Ou professor de Ciência Política, se tivesse as mesmas inclinações que um seu colega de curso – em 1937 – chamado François Mitterrand. Nada disso: desde menino, que apesar da I Guerra Mundial, viveu uma infância feliz, sentiu o apelo da música, e não apenas a popular.
O primeiro “culpado” terá sido um tio, Albert, antigo instrumentista da Orquestra de Monte Carlo. Os pais acabaram, mesmo involuntariamente, pelo aprofundar desta paixão: primeiro, o pequeno Léo é inscrito num coro, ocupa o lugar de soprano e descobre a polifonia com as obras de Palestrina. Depois, quando o pai, militar, o força à disciplina de um colégio interno religioso (o São Carlos, de Bordighera, apenas a vinte quilômetros de casa, mas na Itália), Léo aproveita sobretudo para cimentar a paixão pela música e para conhecer os poetas, que devorava em plenas celebrações religiosas, escondendo os livros dentro do missal. Outro desfecho deste “exílio” foi o anti-clericalismo que assumiu, confessando mais tarde que este sentimento vinha dos abusos sexuais a que ele e os colegas eram submetidos por alguns padres professores. Já quanto aos sinais exteriores do caráter, a primeira viagem para Itália assinala a sua estreia no repúdio da prepotência: a mãe tinha-lhe dado seis bananas para a merenda e para a ceia mas um agente alfandegário ameaçou confiscá-las. O miúdo reagiu: comeu as bananas todas de seguida e entregou as cascas.
Do cabaret para a orquestra
Os primeiros anos em Paris foram de combate pela afirmação, aproveitando todas as oportunidades. Por exemplo: quando conseguiu um emprego de tarefeiro numa rádio, preencheu todas as horas vagas com o piano que havia na sede da estação, exercitando-se e compondo… às escondidas. Percorreu o calvário do circuito dos cabarets da capital francesa, tocando nos mais castiços (casas como Le Boeuf sur Le Toit, Les Assassins, L”écluse, La Rose Rouge ou Le Trou), que nem por isso reuniam as melhores condições. As salas exíguas ench iam rapidamente e, muitas vezes, os clientes estavam mais interessados nas companhias e nas refeições do que naquilo que poderia acontecer no palco. Nos casos em que havia palco…
Ferré não foi exceção na busca de ajudas junto de consagrados do meio. O já consagrado Charles Trenet, apenas três anos mais velho do que Léo, disse-lhe que não via nele vocação de intérprete. Mais tarde, arrepender-se-ia, chegando a frequentar os concertos do monegasco. Com Edith Piaf, tudo foi diferente: à semelhança do ocorrido com Bécaud, Aznavour, Montand e Moustaki, só para citar alguns, a Môme apresentou-lhe as pessoas certas para ajudar um desconhecido. E ainda gravou Les Amants de Paris, uma das criações da fase em que Ferr&ea cute; parecia condenado a não se chegar aos microfones. O reconhecimento à generosidade de Piaf foi ao ponto de, muitos anos depois, quando entendeu que Eddie Barclay “inventou” Mireille Mathieu, com a conivência do empresário Johnny Stark, para tomar o lugar de Edith, Léo não ter fugido ao conflito com o editor, que não autorizou a publicação em disco da canção À Une Chanteuse Morte, um violento ataque à nova cançonetista e aos poderosos da indústria. Em tribunal, claro que Ferré perdeu…
Depois de Piaf, outros intérpretes se seguiriam, de Henri Salvador a Yves Montand, passando por Juliette Greco. Por esta altura, já Ferré assinou – em 1947 – um contrato com a editora Le Chant du Monde, ligada ao Partido Comunista. O artista aceita mesmo filiar-se mas, segundo a lenda, essa “militância” durou cerca de meia hora: anulou o cartão, apagou esse gesto e acabou por se manter fiel aos ideais anarquistas, que o seduziam desde o contato com anarquistas espanhóis que conheceu numa digressão à Martinica, que deveria durar três semanas e se estendeu por seis meses. Ironia: aproveita ndo o patrimônio de Ferré, a sua primeira editora só o reconheceu a sério como intérprete quando Léo já se tinha ligado à Odeon.
Apesar do final infeliz, que envolveu uma impensável proibição de Ferré cantar, superiormente respondida com um álbum sugestivamente intitulado Ferré Muet… Dirige (à letra: Ferré mudo…dirige) em que reassumiu o papel de maestro, talvez o melhor período discográfico do artista tenha coincidido com os anos de ligação à Barclay. Aí descobriu a liberdade para, por exemplo, gravar finalmente os seus discos dedicados aos poetas e para registrar também as suas incursões no mundo da música clássica, tanto como compositor como na condi&cc edil;ão de maestro. Esta última faceta rendeu-lhe, de resto, um dos episódios mais insólitos de todo o seu percurso – aquele em que o príncipe Rainier do Mônaco se deslocou a casa do seu conterrâneo para o convidar a compor e a apresentar uma peça, a estrear na Ópera do principado. Ferré respondeu com La Chanson du Mal-Aimé, para quatro cantores líricos, e ainda acrescentou a Sinfonia Interrompida. O feito rendeu-lhe uns assinaláveis 200 mil francos e também com a reconciliação com o pai, com quem andava de candeias às avessas desde a publicação do livro Poète, Vos Papiers!, que o velho militar considerou uma vergonha para a família.
Excêntrico, polemista e militante
Se a obra o foi transformando num nome de culto, as suas excentricidades tornaram-no num alvo fácil para os que são lestos a apontar o dedo à incoerência. Um exemplo: o momento em que o cantor empenhou todos os seus créditos, presentes e futuros, para comprar um castelo na Bretanha, por 18 milhões de francos, descobrindo depois que este só era habitável no Verão. Ou o fato de ter adotado uma macaca – e não há aqui sentido figurado – a que chamou Pepée e a que chegou a dedicar uma canção. De resto, houve uma fase em que Léo e a mulher, Madeleine, chegaram a albergar cinco chimpanzés, a par de uma série de outros animais, mais e menos convencionais. A história acabou em tragédia: deprimida e alcoolizada, adivinhando a separação, Madeleine mandou matar a tiro Pepée e Zaza, as duas macacas favoritas do cantor.
Assinale-se também o seu gosto pela polêmica. Um caso célebre é o do escritor e poeta André Breton, um dos teóricos do surrealismo. A proximidade entre ambos, com elogios mútuos, públicos e notórios, deu lugar a uma série de ataques entre os dois, pouco polidos e ainda menos poéticos. Ferré, no seu notável Préface (do álbum Il N”y A Plus Rien), atira-se ao aburguesamento asséptico da poesia instalada e dissimulada por uma capa de suposta transgressão, um tiro disparado na direção de Breton… Da mesma forma, a exposi&ccedi l;ão das opiniões nunca foi algo que procurasse amaciar – ficaram célebres os seus ataques, sob a forma de canções, ao general De Gaulle, a quem reconhecia o papel de herói na resistência francesa da II Guerra Mundial, mas nada mais do que isso. Apesar da tolerância gaulesa, uma das canções sobre o general-presidente acabaria duplamente censurada: primeiro por uma das editoras discográficas com quem manteve contrato, depois pela própria rádio pública. Há mais, na guerrilha verbal do monegasco: o Papa Pio XII e o generalíssimo Franco também estiveram na mira.
Les Anarchistes, de 1968, valeu como uma declaração de amor que nunca prescreveu. Até ao fim, Léo Ferré manteve sempre a disponibilidade, pessoal e financeira, para ajudar a imprensa anarquista, que, de outra forma, teria soçobrado muito mais cedo. Nos últimos anos, termina os concertos com uma canção que lhe servirá de aproximação ao grande público: antes de sair do palco, pedia aos espectadores que não aplaudissem essa canção de despedida, chamada Avec Le Temps. Ferré morreu a 14 de Julho de 1993. Ou seja, em dia e mês de revolu&cce dil;ão. Recusou todas as condecorações oficiais que lhe foram propostas. Um dos políticos a quem respondeu negativamente, o então ministro Jack Lang, ajudou a escrever o seu epitáfio, quando disse: “Léo Ferré é a memória das nossas revoltas”. Merecia estar vivo e não ser apenas um dos poucos eternos.
Fonte: http://www.dn.pt/artes/interior/o-anarquista-que-comprou-um-castelo-5352987.html
agência de notícias anarquistas-ana
A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia
Alice Ruiz
muy bueno. desconocía su vida, aunque escucho su música