Uma das fundadoras do coletivo Mujeres Creando, boliviana esteve no Rio de Janeiro para participar do Ciclo Ato Criador — Outros Possíveis, no Oi Futuro Flamengo
“Nasci em La Paz e tenho 52 anos. Sou feminista, mas não radical, do tipo que não faz nada com os homens. Há anos me mandaram embora da Universidade de San Andrés, onde dava uma aula que batizei de ‘Filhos da puta’. Abordava as diferentes formas de paternidade na Bolívia. Creio que me tiraram por inveja e misoginia.”
Conte algo que não sei.
Estamos implementando na Bolívia bordéis com autogestão. Ou seja, prostituição sem proxenetas. Ajudamos as mulheres a obter autorização para abrir os locais, já que não podem e querem permanecer clandestinas. Algumas têm um código de trabalho, que as obriga a usar camisinha e a não permitir o uso de álcool e drogas e a participação de menores.
Acabar com a prostituição, então, não é uma ideia…
Não. Entendo que quando você toca no tema está falando de fora. Pode pensar que é muito grave e que é preciso acabar com o sexo pago. Mas as políticas, ao longo dos últimos anos, têm sido contra as mulheres em prostituição. As tentativas de controlá-las e vigiá-las são uma forma de violência. Defendemos a necessidade de gerir espaços de prostitutas adultas, que se organizam entre elas, tirando o proxeneta do circuito.
Ser feminista é…
Tomar a liberdade de questionar e romper com todos os cânones de feminilidade impostos. Uma maneira prazerosa de construir-se a si mesma. Há uma quantidade muito grande de tiranias sobre o corpo e a vida das mulheres, que pode começar no mandato da maternidade. Por exemplo: ser mãe porque se tem vontade é muito diferente de ter um filho para mostrar-se produtiva, valiosa e respeitável.
São modelos tão antigos… É possível, de fato, rompê-los?
Devemos tentar. A domesticação das mulheres é violenta. Há um condicionamento muito forte desde pequenas. O que me parece interessante é que, se por um lado, uma menina, hoje, no Brasil ou na Bolívia, recebe mensagens de submissão, por outro percebo um sintoma que chamo de “despatriarcalização”. Ou seja, jovens que muito cedo, com 12 ou 13 anos, estão se rebelando contra esses modelos.
O coletivo Mujeres Creando nasceu há 24 anos. Alguma coisa mudou desde então?
Acho que não. E esta pergunta é uma armadilha, faz pensar que somos um fracasso. Estamos na luta há mais de 20 anos, e a discussão é a mesma. É uma situação de sabotagem permanente. Houve um momento em que pensava que isso ia acabar, que conseguiríamos instalar nossa voz. Mas não foi possível concretizar muito do que queríamos.
Por exemplo?
A educação sexual nas escolas. Produzimos os melhores materiais educativos, mas eles nunca foram divulgados na escala que esperávamos. Por isso, desenvolvemos formas de trabalho que não passam pela Justiça, como a divulgação de uma lista pública com nome, idade e local de trabalho de homens violentos. São situações em que a Justiça não decidiu em favor da vítima. Vários tentaram nos processar por difamação, mas não conseguiram, porque a legitimidade do que fazemos é muito forte.
Vocês checam as histórias?
Sim. E damos à vítima o direito de decidir o que fazer. Agimos na ilegalidade porque não pedimos reconhecimento. Não lutamos por direitos; exercemos soberania. Feminismo não é a luta pelos direitos da mulher.
O que é, então?
São diferentes formas pessoais e coletivas que as mulheres adotaram para desobedecer aos mandatos patriarcais sobre o lugar que temos que ocupar na sociedade. Há mulheres que são feministas sem saber. Creio que deveriam se juntar para constituir uma agenda mínima, autônoma, não partidária, do que queremos. Juntas.
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