Novamente em Massenzatico (localidade perto de Reggio Emilia, Itália) se celebrou outra edição de As Cozinhas do Povo (“Cucine del Popolo”), evento que reúne a cada dois anos estudiosos da arte culinária e amantes do bem comer. Desta vez, o fio condutor das jornadas foi As Cozinhas do Amor (“Le Cucine dell´amore”). Desde 2004, a Federação Anarquista Italiana de Reggio Emilia vem organizando esta grande manifestação de arte, cultura e boa comida. Nós já tivemos a sorte de part icipar da reunião de 2008, de modo que desta vez sabíamos perfeitamente o que podíamos esperar. Mas tivemos uma surpresa agradável porque tudo havia melhorado, o que já era difícil.
Fomos convidados pelos companheiros de Reggio, que não nos deixaram pagar absolutamente nada. Chegamos na quinta-feira, 29 de setembro. Nossos amigos Gianandrea e Eliana nos esperavam no aeroporto, e nos instalaram em sua casa; nos levaram à sede da FAI para ver os demais companheiros (impossível citar todos aqui) e para um jantar fraterno em nossa honra. O espaguete “a la amatriciana” estava delicioso, mas este foi apenas o começo de uma verdadeira jornada gastronômica. Além disso, durante todas as conferências, vimos com o os companheiros atuam, combinando o trabalho intelectual (debates, discursos) com o trabalho propriamente físico (montagem de refeitórios, salão de atos, limpeza, serviço de mesas). E não apenas os de Reggio, muitos companheiros de outras localidades também vieram para dar uma mão.
No dia seguinte, fomos dar um passeio por Reggio, e aproveitamos para cumprimentar Patty em sua livraria, onde não faltam nossos livros e nossa imprensa, tudo sob um letreiro que diz “Aqui ponto FAI”.
Já em Massenzatico, começamos a cumprimentar os companheiros que vinham de outras cidades (impossível listar a todos eles também). O grande companheiro e amigo Roberto (Barone Rosso della Lunigiana) nos preparou uma variedade de iguarias, começando com ostras (sim, sim, ostras!), que desfrutamos ao ar livre. Na parte da tarde, dentro do “La Paradisa” se abriu oficialmente as jornadas com a intervenção de Pietro Bevilacqua, que falou do desaparecimento do nosso “anarcoenólogo” Luigi Veronelli e como o nosso modo de vida mudou em poucos anos. Carla Chelo, falou sobre a cozinha caseira como lugar e também sobre a fome que, nas sociedades industriais como a Itália, parece não ser conhecida.
Há de se pontuar que sempre houve uma alternativa vegetariana (inclusive vegana) para os participantes.
Nós subimos para o primeiro andar para degustar o jantar, também preparado por Barone. Entre os participantes estavam representantes dos “esodati”, um deles falou conosco. Os “esodati” são trabalhadores que foram demitidos de suas empresas concordando com um subsídio até a idade da aposentadoria. Agora, o governo italiano lançou uma lei com efeito retroativo pela qual a sua concessão é cancelada, estando eles agora em uma situação dificílima, pois não trabalham nem podem receber o seguro desemprego.
Após o jantar, voltamos para o andar de baixo para ouvir o show de Fabio Bonvicini e Francesco Benozzo (vocais, flauta e harpa).
No dia seguinte (sábado, 1º de outubro), começou com a atuação de Cecio e Verusca, com um senso de humor que fazia até os mais sérios sorrirem. E assim estiveram por todas as jornadas. Foi distribuído “zabaione”, bebida tradicional à base de ovo que se dava antigamente às crianças para começar o dia. Já estava montado no jardim o posto de livros, fundamental em todas as iniciativas libertárias. Além disso, um acostamento da estrada se encheu de bandeiras vermelhas e negras, o que se via de longe.
Sem sair do jardim, Luigi Rigazzi nos ofereceu uma prova de azeite siciliano e nos deleitou com uma breve conferência sobre as origens do consumo de azeite na Bacia do Mediterrâneo. Então, Arturo Bertoldi nos contou sobre o hábito operário de fumar “palolú”, além de oferecer a quem quisesse provar.
Uma vez dentro do Paradisa, Paolo Passi deu a sua palestra sobre “Pílulas de amor e canções” que, além de muito interessante, nos aprouve com algumas canções tocadas no violão. Após sua intervenção, fomos comer os pratos preparados pela “Cocinera Rojinegra”.
À tarde aconteceu o simpósio de estudos históricos sobre as Cozinhas do Amor, evento central das jornadas. Isso aconteceu no Teatro Artigiano, a dois passos de La Paradisa. Começou com a intervenção de Silvia Fabbi, que falou da cozinha e o amor, um binômio inseparável. Em seguida Alberto Capatti, apresentou uma divertida conferência sobre a cozinha afrodisíaca. Logo, foi a vez de Isabelle Felici, que tratou de uma forma documentada e agradável, a cozinha dos emigrantes e exilados italianos. Por fim, eu intervim falando da alimentação dos trabalhadores espanhóis: “ Colherada e passo atrás”.
Depois de uma hora de bate-papo entre os participantes, o espaço do teatro tornou-se uma sala de jantar, onde mais de duzentas pessoas comeram o “Veglione Rosso”, capeletes que os companheiros no Primeiro de Maio costumavam consumir, menu proibido pelos fascistas e que continuou a ser feito clandestinamente; para sobremesa Stefano Virgilio Enea Raspina nos deliciou com a leitura dramática de “O Sputnik do sentimento”, seguido de um recital de Daniela Veronesi e Hernán Diego Loza, para acabar o dia ingerindo leite de amor, segundo uma antiga receita indiana recuperada por Valentina.
No dia seguinte, após comer zabaione, Luigi Rigazzi nos falou da água de alcaçuz, um produto quase extinto pelas bebidas açucaradas de multinacionais (melhor não citar nomes) além de oferecer uma degustação deste produto tradicional e natural. Refrescante e revigorante.
Stefano Scansani, diretor do jornal “Gazzetta di Reggio”, ofereceu uma pequena palestra sobre “Amores e desamores no comer”. Esse jornal recolheu informações sobre as conferências durante os três dias, e fechou um artigo de página inteira sobre o tema. A televisão regional também dedicou espaço para “Le Cucine del Popolo”.
Depois de um momento de conversa entre os participantes, experimentamos comida cigana e balcânica. À tarde, Gianni Vattimo, o mais importante filósofo italiano da atualidade, falou sobre o amor e seus “arredores”. Em seguida, Philip Corner e R. Phoebe Neville, os únicos sobreviventes da sua geração artística, apresentaram uma performance ao estilo do movimento Fluxus.
Após o jantar, que consistiu em uma “Gnoccata” social, pudemos desfrutar do show de Alessio Lega e seu grupo (percussão, contrabaixo e acordeão), que tocaram várias de suas canções e, é claro, várias canções do repertório anarquista clássico, quando todos cantavam juntos. Estava previsto que a noite – e as próprias jornadas – fossem finalizadas com o canto da Internacional, e assim foi; mas insistimos para que o recital continuasse, o que foi feito dedicando uma música para o octogésimo aniversário da Revolução Espanhola (“La Varsoviana”) e outra aos migrantes que arriscam suas vidas, e às vezes a perdem, para tentar levar uma vida melhor. Com vivas à anarquia, terminaram as jornadas de As Cozinhas do Povo dedicas às Cozinhas do Amor. Em dois anos se realizará uma nova edição, desta vez dedicada às Cozinhas dos Povos.
Aproveitando a estadia por mais alguns dias, nossos amigos incondicionais Eliana e Gianandrea nos levaram para ver placas dedicadas aos companheiros nas cidades vizinhas, a comer na casa de Barone Rosso (que cuida dos amigo com o mesmo cuidado que cuida da cozinha) e a Carrara, cidade tradicionalmente anarquista. Visitamos a cooperativa tipolitográfica, nossa imprensa, quando eles estavam acabando de imprimir o novo número do semanário anarquista “Umanità Nova”. Perto dali, em Gragnana, onde a FAI conserva e mantém ativo o mais antigo ciclo libertário da Itália, companheiros (pedreiros, na sua maioria) no s ofereceram um jantar fraternal que acabou, como não poderia ser de outra forma, a se entoar canções anarquistas. Essa foi a chave de ouro desses dias carregados de boas práticas libertárias, com uma ótima difusão do nosso ideal e que, de alguma forma, demonstram que as ideias que carregamos em nossas mentes e em nossos corações podem ser postas em prática. É uma questão de começar a trabalhar.
Alfredo G.
Fonte: http://www.nodo50.org/tierraylibertad/339articulo8.html
Galeria de imagens: https://www.facebook.com/pg/cucinedelpopolo/photos/?tab=album&album_id=1198124573566507
Tradução > Kysy Fischer
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agência de notícias anarquistas-ana
Pequena flor
Sol contido na cor
Ipê amarelo
Luciana Bortoletto
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!