Uma história esquecida
Hoje gostaria de escrever sobre um livro e um filme que me emocionaram profundamente. Contam ambos sobre a vida de um homem valente e comprometido. Trata-se de James Yates, um jovem negro que veio à Espanha combater nas Brigadas Internacionais. Entre os cerca de 50 mil voluntários de todo mundo que acudiram em defesa da República Espanhola, 3 mil procediam dos Estados Unidos, incluindo uma centena de brigadistas negros.
A história de James Yates (1906-1993) é em grande parte a história dos negros na América. Durante o período conhecido como a Grande Migração (1910-1930) centenas de milhares de afro-americanos saíram desde os estados do sul para os bairros obreiros das cidades do norte, onde as condições de vida, sem serem boas, eram mais toleráveis que em seus estados sulistas, onde ainda em pleno século XX continuam praticamente em um regime de semiescravidão, em um meio de indubitável e feroz racismo.
James Yates fugiu de seu lar ainda adolescente, em busca de um futuro mais promissor. Viajou como clandestino em trens até chegar a Chicago, onde começou a trabalhar nos imensos matadores da cidade. O capitalismo mostra sua pior cara durante a Grande Depressão, e os negros, situados na parte inferior da escala social, são os mais afetados pela situação de desemprego e pobreza generalizada que rapidamente se estende por todo o mundo.
É durante essa época de sua vida – sem trabalho, sem dinheiro e longe da família, que Yates adquiri consciência social e adotou uma postura combativa contra o fascismo e o capitalismo, como grandes geradores de maldade e miséria para a gente humilde e trabalhadora.
Publicado em 1968, este livro é o testemunho em primeira pessoa de James Yates. Ao longo de suas páginas, Yates relata seu encontro com personagens famosos como Ernest Hemingway, Langston Hughes e Oliver Law, o primeiro homem negro a ter o mando de uma unidade militar na história americana. Yates não esquece de que foi na Espanha onde, em que pese os perigos e rigores da guerra, se sentiu livre pela primeira vez.
Mas quais foram os motivos que impulsionou essas pessoas negras a defender uma causa tão distante e aparentemente estranha? Muitos deles eram trabalhadores que haviam vivido os efeitos da Grande Depressão, e em razão da cor de suas peles foram os primeiros a perderem os empregos. Em um ambiente de grande agitação política e social, as pessoas de cor nos Estados Unidos começaram a questionar os problemas que os afetavam, especialmente por meio de uma série de publicações e revistas, muitas delas produto do que se conhece hoje como Renascimento do Harlem ou o “The New Negro Moviment”.
Chicago não era alheia a este movimento, principalmente por um importante periódico: “The Defender” lido por toda comunidade negra. A política inunda as ruas. São nos comícios de rua que Yates se educa politicamente. Aprende ouvindo aos oradores que subiam em simples caixas de madeira. Com 17 anos, em plena Depressão, Yates se sente atraído pelas ideias comunistas que, por meio das páginas do jornal “The Liberador”, insistem nas raízes comuns da pobreza e do racismo, advogando pela unidade internacional frente a exploração.
Yates se muda para Nova York buscando trabalho e não tardou a enfrentar uma dura realidade: dormiu em bancos, vagou pelas ruas e engrossou as fileiras dos indigentes.
Em 1935 se produziu a invasão da Etiópia pelas forças fascistas italianas – um feito que comoveu a população negra americana, e pouco mais tarde, em julho de 1936, começou a guerra civil espanhola, enfrentamentos ambos que se converteram em símbolos da resistência contra o fascismo.
Tudo isso – guerra, racismo, pobreza – conduz Yates, junto com outros milhares de homens e mulheres comprometidos com a causa da liberdade e da justiça social, a alistarem-se como voluntários para combater na Espanha.
E isso é o que nos conta com grande sensibilidade, emoção e dignidade em seu livro de memórias, centrado principalmente em seu período espanhol. Assim, este livro tem o mérito de ser a visão de um homem negro sobre a guerra civil espanhola, o que não deixa de fazê-la singular e diferente ante a maioria das histórias conhecidas por todos.
Os brigadistas voluntários que lutaram na Espanha não só pagaram com sua vida e saúde, mas também quando voltaram aos seus lares, sendo duramente perseguidos pelas autoridades como suspeitos políticos e ficaram imediatamente marcados para sempre. Ante as dificuldades existentes para um homem negro e sem estudos, James Yates teve ainda que fazer frente a perseguição policial e do FBI, que frequentemente colocavam travas e dificuldades para que pudesse ganhar a vida com normalidade. Essa foi a recompensa que ganharam ao regressar. Sem embargo, não puderam dobrar o espírito de pessoas que, como Yates, continuaram lutando por um mundo melhor. Envolveram-se a fundo contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial, contra a guerra do Vietn&atild e;, lutaram pelos direitos civis, contra a intervenção americana na América Latina, contra o apartheid na África do Sul, entre outras lides na quais estiveram aqueles homens e mulheres que haviam combatido na Espanha.
O nascimento da Brigada Lincoln é conhecida. Foi composta por 2800 norte-americanos, que defenderam a República Espanhola, lá chegados junto com outros 50 mil voluntários procedentes de outros 54 países. Menos conhecida é a presença de 85 voluntários afro-americanos. Essa é sua história, uma página inédita na historiografia dos Estados Unidos e Espanha. A peripécia de uns heróis invisíveis que acudiram para uma guerra distante que lutaram contra o fascismo que ameaçava conquistar o mundo.
Baseado nas entrevistas do veterano James Yates, e de vários outros combatentes da Brigada Lincoln, além de historiadores especializados, juntamente com abundantes imagens de arquivo, o documentário Heróis Invisíveis conta a história desses valentes homens e mulheres.
A guerra civil espanhola foi a prova de que somente existe uma revolução: a dos humilhados e ofendidos contra os tiranos e déspotas; a da cultura e da razão contra a barbárie e ignorância; a da liberdade e justiça contra a opressão e iniquidade. Em definitivo, se trata da eterna luta do bem contra o mal, uma guerra que não acabará nunca. Essa revolução vem ocorrendo no mundo inteiro desde o princípio dos tempos, e a revolução anarquista de 1936 foi tão somente mais uma batalha dessa guerra mundial que, igualmente a tantas outras, fracassou lamentavelmente, condenando os espanhóis a quarenta anos de atraso e ditadura, cujos efeitos se sentem até os dias de hoje, quando vemos os pol íticos mentir e enganar sem nenhum pudor as pessoas que supostamente representam.
Eu sou internacionalista e me considero cidadão do mundo e espanhol, apenas como uma mera circunstância pessoal. Estou a favor da revolução aqui e em todas as partes, ali onde se lutem por um mundo mais justo e solidário, essa é minha revolução, independente do país e de onde ela ocorra.
Sinto grande admiração por aqueles homens e mulheres que saíram de seus lares e embarcaram numa aventura incerta, em um país estrangeiro, de que muitos nada sabiam, somente que seus irmãos de classe estavam lutando contra o fascismo, sendo isso suficiente para abandonarem tudo e virem até a Espanha combater por um ideal.
James Yates não era anarquista, mas um espírito verdadeiramente libertário no que de mais nobre e generoso tem o ser humano, quando lutou por gente desconhecida, quando lutou por um mundo melhor sem se importar que a luta tivesse lugar a milhares de quilômetros de distância de seu próprio país. Ele sabia, com muita razão, que a batalha por liberdade e justiça não tem fronteiras. Como bem disse o sindicato IWW: uma injúria contra um é uma injúria contra todos.
• James Yates – De Misisipi a Madrid (Memorias de un afroamericano de la Brigada Lincoln) Editorial La Oficina/BAAM
• Héroes Invisibles (Afroamericanos en la guerra de España). Un documental de Alfonso Domingo y Jordi Torrent
Fonte: http://www.jcaro.es/afroamericanos-en-la-guerra-civil-espanola/
Tradução > Liberto
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