(Em memória de Marcelo Salinas, Santiago Cobo, Claudio Martínez, Canek Sánchez Guevara e tantos ausentes.)
“Chamar Revolução ao Estado foi sem dúvida um grande acerto político da ditadura castrista, e aceitar de pé juntos o mais grave erro dialético (e não somente) da esquerda comunista internacional”.
Canek Sánchez Guevara
“É certo que o modelo revolucionário cubano já não é mais – e não o é há um bom tempo – o modelo revolucionário por excelência nessa região do mundo e nem em nenhuma outra; mas continuar guardando silêncio é significativamente suspeitoso de que as lições não estão suficientemente bem aprendidas e que haverá futuramente outras vozes que nos propor& atilde;o novas indulgências a respeito de concepções jacobinas, vanguardistas e, por último, velada ou claramente autoritárias”.
Daniel Barret (Rafael Spósito).
Minha primeira reação ante a notícia de sua morte foi o silêncio. Imediatamente depois decidi que não escreveria uma só palavra a respeito. Um êxito tão trivial não merece sequer uma letra. Ademais, toda uma legião de “cubanólogos” (entre detratores e idólatras) seguramente encarrega-se dessa tarefa nesse preciso instante. Preferia deixar o trabalho sujo para eles e continuar com o curso de minha cotidianidade. Nenhuma morte é razão para interromper a vida, e a de Fidel n&at ilde;o é exceção. Mas minha companheira me convenceu a escrever uma pequena nota que, com o avanço do novo dia, se converteu nessas linhas intempestivas que encadeio e articulo sem outra pretensão que não seja deixar constância e ratificar um posicionamento, que não se alinha com a histeria coletiva do oficialismo e nem com a de Miami.
Depois da declaração pública do presidente-general anunciando sua morte, começaram a fluir nas “redes sociais” mensagens antagônicas. Adoradores e inimigos do defunto ex-mandatário irrompem apaixonados por suas emoções. Júbilo e tristeza são os sentimentos atribuídos aos mais efusivos protagonistas em razão do acontecimento. Luto ou celebração. Como alguém comentou sabiamente: “parecem que morreram dois homens com o mesmo nome, no mesmo dia e na hora exata”.
A megareação também era previsível. Na Ilha, hoje se pretende realizar um desfile interminável de pessoas de luto, começam as longas filas de despedidas e os eternos discursos adoradores, principia a reacomodação oportunista e continuam as piadas e críticas em voz baixa. E não podia ser de outro modo. Na Ilha essa tem sido a realidade por mais de meio século: desfiles intermináveis, longas filas, discursos adoradores, reacomodações oportunistas e o covarde sussurro crítico. Em Miami, uma diversificada celebração tomou a Rua 8 de assalto, comemorand o a morte do tirano. Tão pouco se esperava outra resposta. Miami é uma grande festa, uma comparsa perpétua, uma fatalidade em exílio, consumada e consumista.
Todos procedem como se o corpo do inanimado comandante ainda estivesse quente. Mas Fidel não morreu na noite anterior. Faz uma década que é um cadáver. Não é fortuito que as cubanas e os cubanos a pé o batizaram com o mote de “insepulto”. Sua morte se consumou no momento em que se viu obrigado a demitir como César insular e passar o cetro e os poderes absolutos a seu irmão mais novo, não sem antes “deixá-lo atado e bem atado” dos usos e costumes dessa infame casta. Desde então ficou prostrado atrás das cortina s, limitando suas atuações a esporádicas aparições públicas, nas quais se fazia mais evidente sua fulminante decrepitude e sua senil incontinência. Sem embargo, com seu nome se continuaram assinando “reflexões” – como se tratasse de Corín Tellado – ante a indiferença quase unânime da maioria dos cubanos e a incredulidade daqueles que constatavam que “não checava o número com o bilhete”.
Aquele Colosso infalível, onipresente e onipotente, o senhor da Ilha, o patrão do cemitério, o dono dos cavalinhos, o grande circense, o mago audaz e cheio dos efeitos que ordenou a um adestrador de pombos o treinamento secreto de três pombas brancas para que pousassem em seu ombro durante seu primeiro discurso, ante o olhar atônito de milhares de cubanos, que prediziam bendições e bons augúrios, nada mais nada menos, que do “Espírito Santo”. O arrogante gigante verde-oliva, capaz de converter o país e m uma monumental trincheira, de inseminar vacas, mudar o rumo de furações e decretar a semeadura do café nos jardins. Esse orador impenitente que podia fazer discursos intermináveis onde se dava o luxo de falar e falar durante horas – graças a uma sonda que contornava o desempenho natural de sua bexiga – e inventar cifras e estatísticas que no outro dia obrigava a mudar todos os sensos e registros oficiais. Esse “tudólogo” empedernido que não duvidou em se arvorar sobre arte, biotecnologia, baseball, arquitetura contemporânea, sorveteria, botânica, boxe, hermenêutica e engenharia nuclear. O pai insone que nunca vacilou em desamarrar os cordões na preparação da água morna e as quatro estratégias infalíveis no momento de jogar dominó… Se foi!
Ainda me parece impossível me expressar no tempo pretérito. Mas sim, finalmente se foi o grande sepultador da Revolução cubana. O triste coveiro de todos os sonhos de liberdade e autonomia amplamente acariciados por muitas gerações de infatigáveis revolucionários. O grande traidor da Revolução mundial. O discípulo de Sorel, o admirador de Primo de Rivera, o devoro leitor de Mussolini, o incansável conspirador da Legião do Caribe. O megalomaníaco e egocêntrico Duce caribenho partiu.
Morreu de morte natural aos 90 anos, cercado por sua família e afins, depois de resistir a inúmeras tentativas de assassinato. Concluiu seus dias invicto, como José Stalin, Francisco Franco e Augusto Pinochet. Sem dúvida que os ditadores sabem fazer-se sempre de uma muralha de acólitos e fiéis cães guardiões que evitam a todo custo que as balas libertárias cumpram suas missões.
Finalmente o ditador faleceu. Agora nos cabe assassinar o Fidel que todos levamos dentro de nós. Lamentavelmente ainda pululam ao longo das duas margens milhares de fantoches dispostos a encarná-lo. A serpente morreu, mas sobrevive seu ovo. Fidel desapareceu da face da terra, mas o fidelismo ainda persiste. Esse augúrio não apresentável, essa revoltinha pútrida de oportunismo voraz, nacionalismo galopante, populismo paralisante e fascismo garapeiro, ainda perduram fazendo sombras no presente e ameaçando o futuro.
Hoje resulta inadiável um “corte de caixa” que nos permita fazer um balanço de pouco mais de um século de história, desde a instauração da res pública com o seu imoral cortejo de generais e doutores, até essa ironia que a história nos devolve ao ponto de partida de um sinistro périplo circular, com o legado de um novo presidente-general, uma casta castrense grosseiramente enriquecida e o empobrecimento mais sem vergonha das pessoas descalças, principalmente os afrocubanos. Hoje é um momento de autocrítica – por muito justa que possa resultar-nos a proposta. Nos toca avaliar o nosso desempenho nessa história, o papel que jogamos cada um no cenário dessa lamentável farsa. Ainda é pertinente essa tarefa. Os ditadores não caem do céu, a servidão voluntária os cria e os leva ao poder.
Por isso – e outras coisas mais – ontem a noite não pude levantar meu copo gostosamente pela morte do tirano, como fizeram muitos amigos queridos. Jamais poderei brindar pela morte, tão pouco nunca fazê-lo em memória do Coma-andante. Ontem a noite brindei até a última gota uma majestosa bebida à saúde de nossa memória. Sim, brindei para que não percamos nunca a memória. Para que não esqueçamos esse meio século de atropelos e medo! Para que nunca mais apareçam na Ilha Fidéis, Machados e nem Batistas! Para que não tenhamos que sofrer jamai s no mundo com Castros nem Francos, nem Videlas e nem Pinochets! Para que os cubanos aprendem a lição e comecemos a pensar por nós mesmos e deixemos de sermos os bestas úteis repetidores de consignas dos mandarins de Havana, os hierarcas de Washington ou os corvos do Vaticano!
Acredite-me, ontem a noite brindei com toda minha paixão pela vida, por essa possibilidade remota que se abre de uma nova vida com tardia chegada da morte anunciada. Uma nova vida que nos caberá construir coletivamente com todos os cubanos e cubanas descalços, sem ter que pedir permissão, sem arquitetos messiânicos nem desenhos pré-enlatados, sem “homens fortes” que nos imponham o caminho; sem “pais” insones (amorosos ou castradores) que velem os nossos sonhos e nos tratem como crianças; sem patriarcas que nos exijam sacrifícios para sustentar seus tronos de defuntos e vergonhas; sem l&i acute;deres e nem pastores que nos guiem ao barranco.
Também brindei ontem a noite com todos os meus companheiros ausentes – com esse grupo de pessoas cativantes! – e tocamos os nossos copos para que esse nacional-socialismo bananeiro que nos oprime desapareça para sempre com uma canetada e se converta logo na vaga recordação de um pesadelo. Oxalá meus netos – essa chinesa charmosa e esse árabe de olhos grandes – e meu querido Darío e as e os que faltam por chegar para alegrar nossa existência, que algum dia não somente possam ver com seus próprios olhos todos esses desejos realizados e ainda mais, mas que também contri buam para forjar com suas ternas mãos esse mundo novo que levamos em nossos corações.
Saúde!
Gustavo Rodríguez
26 de novembro de 2016.
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!